Os seus, os meus, os nossos anos 90



“Somos ensinados [...] a olhar com horror para aqueles filhos de seus países que estão prontos, irrefletidamente, para retalhar seus maiores em pedaços e metê-los no caldeirão dos mágicos, na esperança de que, por suas decantações venenosas e encantações selváticas, consigam regenerar a constituição paternal e renovar a vida de seu país”.

           Edmund Burke, Reflexões sobre a revolução na França.*

NOS ANOS 1990, senti-me como um espectador de teatro, colado à poltrona e com a cabeça segura numa armação que me impedia de olhar em outras direções que não em frente, a não ser que usasse os 180º disponíveis no meu globo ocular. Era como se eu fosse uma personagem de Mário Vargas Llosa, lá do romance Conversa na catedral, que se perguntava “quando foi que o Peru se fodeu”, mas, no lugar de Peru, estava Brasil. Estava difícil saber da vida exatamente como era.
        
 
A mesma classe média que elegeu Fernando Collor presidente veio a rejeitá-lo como quem chupa pitomba e depois cospe o caroço que antes só estava recoberto por uma película doce. Pitomba é uma frutinha que dá em cachos como os de uva, recoberta por uma casca firme, mas frágil. Pode ser quebrada facilmente com os dentes. Dentro há um caroço revestido por uma polpa branca e fina que não compensa o trabalho de quebra da casca. Há quem goste de pitombas e passe horas comendo-as para satisfazer-se. A saciedade deve chegar depois que se come uma quantidade enorme de cachos, para que se venha, inclusive a saber de fato qual o gosto que leva a tal empreitada. Há pitombas doces, azedas, insípidas e amargas. De qual tipo era Collor fica difícil de definir, mas pode ser, exceção à regra, alucinógena. Foi o primeiro presidente eleito por voto direto depois de 26 anos de ditadura militar, de repressão, de embotamento civil. A ditadura havia fabricado uma mentalidade que muitos haviam adotado, compactuado e acreditado. Mas havia quem não acreditava nem compactuava e comia o pão que o diabo amassou. Não estou sendo irônico nem ingênuo. Prefiro me expressar assim: há tempos em que as pessoas não conseguem contornar nem resolver muitos problemas de ordem pessoal ou social, não conseguem raciocinar em torno do certo, do errado e do inevitável, não conseguem discernir qual o instrumento mais conveniente a ser usado, por exemplo, para bater um prego na parede. Podia ser uma colher de pau?
         Tivemos nossa era Andy Warhol. Mas quinze minutos de fama era pouco para quem queria ser uma página na história. Quinze minutos eram menos ainda que uma nota de pé de página. Havia gente perdida na instantaneidade da memória, na inutilidade da fantasia usada para reivindicar direitos, sobriedade, honestidade, seriedade de um governo cuja intenção não era nada disso, mas aparecer como a continuidade de uma tradição que remontava Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, mas desenraizados. Todos esqueciam que Fernando Affonso Collor de Mello era, e é, carioca, com outros nomes na história e outros retratos na parede. Os vínculos não eram nada republicanos, mas fascistoides, sem qualquer originalidade, a não ser para os desarrazoados eleitores que o colocaram lá. A juventude promissora que se identificava com o homem e os paranoicos de carteirinha que tinham Luís Inácio Lula da Silva como agente do caos anarcocomunista com devastadoras propostas que levariam o país ao horror populista dos programas sociais, da ascensão da classe média e da mobilização social em que os miseráveis herdariam a terra. Grandes besteiras que seriam subscritas oito anos depois e, de fato, afundariam o país no pseudototalitarismo dos miseráveis e nas portentosas ilusões da autoria de certas iniciativas programáticas que eram originárias dos governos imediatamente anteriores.



         Tenho a convicção plena de que, no Brasil, não existem partidos, mas grupos, conglomerados, que se efetivam em favor de interesses. Nada a ver como que o País demanda, reivindica, revela. Nas eleições, em consonância com essa armação, vota-se nos que comungam interesses, favores, carreiras et cœtera. O chamado “legislador” sempre labora em causa própria, o chamado “executivo” sempre favorece seus pares e os exercitantes do outro poder se manifestam sempre com a justiça para os inimigos e a lei para os amigos. Não estou recontando velhas piadas porque não há velhice nelas. Lígia Fagundes Telles está coberta de razão quando diz que temos memória curta porque há ocorrências absolutamente desagradáveis e insanas a lembrar em nossa História. O esforço para recordar que o diga. Para que avivar lembranças desagradáveis e insanas? Eis a questão. Haveria uma generalização nisso? Lembremos somente do bom e do melhor. Mas a isso se agrega o truísmo de que o brasileiro sempre quer levar vantagem em tudo. O que é desagradável para uns pode ser agradabilíssimo e perfeitamente são para outros. Trata-se de uma relatividade a toda prova. Recentemente, numa fila de caixa de supermercado, o sujeito à minha frente bebia uma cerveja na boca da garrafa. Terminou a cerveja e foi buscar outra que abriu e se pôs a beber. Colocou o casco da outra na parte inferior do carrinho de compras. Ao passar no caixa pagou os itens que estavam na parte superior mais a cerveja que estava bebendo. A outra passou em branco. O fiscal não deu a mínima nem o caixa e o sujeito saiu felicíssimo com a convicção de que passara para a trás o supermercado, deixando o prejuízo. O que quero assinalar aqui não é o furto, mas a naturalidade e o cinismo que reveste o ato como se isso fosse o que há de mais natural e ordinário a fazer quando se vai às compras. Se o individual é o coletivo, imagine-se isso como um costume que se pode testemunhar correntemente, que se pode registrar e assinalar em situações correlatas. Ou seja: contravenções e crimes são atos perfeitamente incorporados ao cotidiano das pessoas, passando a ser enquadrados como comportamentos morais e éticos. A contravenção e o crime são absolutamente viáveis e têm essas definições suplantadas pelo livre arbítrio e pelo ângulo de visão de quem os comete. Qual seria o enquadramento aí? Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão?
       
  Fernando Henrique Cardoso vendeu o que restava do Brasil. Passamos apagar aluguel e royalties aos novos proprietários. A enganação para os que não enxergam, nem enxergavam, um palmo à frente do nariz foram os programas sociais que davam a ilusão aos miseráveis de que eles tinham dinheiro. Também, eles começaram a ter crédito, ter acesso a cartões que perturbavam sua noção de dinheiro na mão – o chamado cash. Começou a ser criada uma mentalidade de que comprar com cartão de crédito é estar concretizando uma equivalência excepcional: compra-se com o cartão e se paga com ele. A ideia que perpassa é de que a fatura não vai chegar com o valor da despesa, da compra ou seja lá o que for. O absurdo é tal que fica difícil descrever que tipo de operação é essa em que o crédito e o dinheiro são o mesmo. Se quem tem dinheiro não compra a crédito, talvez fique mais fácil entender isso. Mas entenda-se que a compra com cartão se encerra quando o sujeito digita a senha ou passa o cartão na máquina. Ele já comprou e pagou a compra nesse simples ato. Imagine-se o dissabor que vai ter quando estiver próxima a data do vencimento com a chegada daquele papel com os valores e o código de barras.
A fantasia desorganizada tomou conta do País e depois de dois mandatos sucessivos de Fernando Henrique, Luís Inácio Lula da Silva se elegeu presidente puxando essa maravilhosa via de progressismo material para os que queriam, e querem, melhorar de vida. De nada adiantaram os esforços sistemáticos de Alfred Marshall para mostrar, em livro, Os princípios de economia, que se trata, a Economia, de uma Ciência Moral. Os eleitos sempre encarnam as projeções dos eleitores, o que determinam sua organização caracterial modeladora de um modus operandi perverso. É isso que define a investidura do apoderamento dos meios para governar em nome do povo, pelo povo e para o povo. Mas o povo, onde o povo? Existe só na mente dos governantes como uma convenção ideológica, aprisionada, que á falada via construção que a linguagem permite como o codinome das piores intenções. Povo deveria ser uma entidade politicamente organizada, com voz e vez baseadas nos fundamentos que a realidade histórica, social, cultural permitem. Não se trata dessa multidão sonâmbula que vaga por aí, dessas pessoas que não passam de sombras, de efígies de gente morta. Há pouquíssima gente nesse País que pode ser digna desse nome.

Como há pouquíssima gente nesse País que pode ser nomeada de elite. Trata-se do que há de melhor na sociedade ou num grupo. Não se trata dos ricos, dos burgueses, dos privilegiados de um modo geral, dos favorecidos pela herança ou pelo estamento. Estes são os aristocratas. Erroneamente, são nomeados de elite, todavia, na verdade, compõem a aristocracia – um tipo de organização social em que é monopolizada por uma classe privilegiada. Essas obviedades, entretanto, não são do conhecimento de muitos vivem sob o beneplácito dos poderes e da fruição das vantagens. Em nosso País, o ranço mumificado do absolutismo faria Luís XIV redivivo ter orgasmos múltiplos. Não há, de fato, avanços sociais apenas existem armações eleiçoeiras. E de armações eleiçoeiras e manutenção de privilégios vivem os governos centrais e periféricos do Brasil desde tráfico de escravos e da extradição, às avessas, de degredados a partir do século XVI. Os degredados eram uma casta composta das mais diversas espécies de bandidos que eram mandados de Portugal para colonizar esse lugar do lado de baixo do equador. Eram ladrões, assassinos, estupradores, condenados às galés que, supostamente, vinham para cá expiar seus pecados hediondos. Os homens e mulheres bons não queriam se arriscar a atravessar o oceano e sentar praça aqui como moradores permanentes, muito menos se misturar com essa raça de meliantes. Os agentes da coroa portuguesa estavam aqui para mandar, recolher os frutos da terra, despachar a féria apurada para o reino ao qual o Brasil devia vassalagem. Essa articulação pode ser ingênua, mas quando penso em Joaquim José da Silva Xavier enforcado e esquartejado, vejo diante de mim o resultado de relações de poder cujo ranço prevalece. A violência desse fato acontecido há séculos me faz entender o significado do terror, a indisponibilidade da lei para liberar e premiar quem propõe a via das situações-limite para instauração do progresso.
Oliveira Lima, um dos nossos grandes historiadores, possuía uma rara sensibilidade para perceber e registrar a matéria prima de nossa dinâmica social. Um de seus grandes livros é D. João VI no Brasil. Lá está um panorama do funcionamento do País nos primórdios do século XIX, sob o modelo do “em terra de sapo, de cócoras com ele”. A institucionalização do tráfico de influência no serviço público, a corrupção, os desvios, nada diferente de hoje. Desde lá, trata-se de comportamentos ordinários. Principalmente, causa espanto hoje a naturalidade com que se furta, desvia verbas, como todos se utilizam do erário para atender seus interesses. O dinheiro e os serviços públicos são “públicos”. Ou seja: qualquer um pode ter acesso e ser useiro e vezeiro. E os anos noventa foram pródigos em pequenos escândalos que faziam estimar apenas as pontas de uma enorme montanha de gelo cuja parte submersa se revelou nos anos 2000 e avançou pelos anos 2010. O chamado “poder político” recrudesceu em seu domínio, enganando os miseráveis em suas aspirações aos benefícios que seriam proporcionados pela arrecadação de impostos. Não há educação, assistência médica, geração de empregos nem segurança. As funções do Estado não são executadas pelo governo, nada funciona e ainda há referência à gratuidade de serviços como se não houvesse pagamento antecipado, via arrecadação de impostos. Não há gratuidade no serviço público, que é público exatamente porque todos podem recorrer a ele, garantidos pela disponibilidade dessa arrecadação, pensando em seu retorno lícito como benefício. Como não há educação, inexiste suporte para a formação acadêmica e profissional; como não há assistência à saúde, inexistem as possibilidades de erradicação de doenças, de acompanhamento médico de crianças, adultos e adolescentes; não há empregos para desqualificados profissionalmente. O óbvio é que, desde a gestação, as pessoas desse país percorrem um trajeto suicida que torna a contravenção, o tráfico, a formação dos mais diversos tipos de meliantes, uma finalidade comum, uma razão de viver. Aqui, tudo está mal para acabar mal. Vivemos, assim, numa guerra civil há mais de quarenta anos, como se vivêssemos num estranho paraíso. Todos os problemas que nos acontecem têm raízes do exterior, nas dificuldades dos outros países, principalmente as econômicas e políticas. Trata-se de uma xenofobia que estabelece a nossa condição de vítimas do stablishment mundial. Mas é uma xenofobia transversa porque não demonizamos os estrangeiros, prestamos-lhes sempre homenagens até nos apropriando de seu vocabulário e denominando aquilo para que já existem palavras demais na nossa língua. O espírito do colonizado acossa e assombra todas as gerações, impelindo falhas identitárias que apontam para o quanto consideramos desconfortável e injusto sermos o que somos. Só reprovamos os estrangeiros ou o resto do mundo quando eventualmente somos afetados pela crise e pelas reviravoltas econômicas e aí os culpamos pela nossa infelicidade, imputamos a eles as nossas desgraças. Pimenta, no olho do outro, é sempre refresco.
Os anos 1990 trouxeram a perturbação e a inquietude para a nossa elite e o começo da fermentação das ideias que levariam os alienados a pensar no paraíso e acreditar nele, excluindo qualquer alternativa diante do futuro que não a de ficar sentado esperando os benefícios que a imobilidade poderia proporcionar. Tudo começou a andar pior para melhorar, uma paráfrase perversa de Tomasi de Lampedusa que escreveu em algum lugar de seu romance O leopardo que as coisas precisavam mudar para permanecer as mesmas. Nossa visão do futuro é a mesma de um poço sem fundo.
Estamos vivendo um estado de paranoia induzida, expressão criada por Éric Laurent: “Tudo é culpa de...” Esse psicanalista quer dizer que a paranoia induzida é o discurso por meio do qual se pretende localizar o lugar da culpa, transformando em um É culpa de... – da crise internacional (política, econômica, social, cultural), dos governos anteriores, dos poderes incompetentes et cœtera. Cada qual, iludido por falsas promessas, sente-se alvo de uma ameaça e, sobretudo, de um desconhecimento e ignorância particulares. O que falta, principalmente, “é uma atenção dirigida à inquietação, à dor, à angústia ante o desconhecido de um estado não definido, de um futuro não esperado, não previsível, ante uma imaginação multiplicada pela ignorância, pela incerteza”.  Para nós o universo histórico é, e foi, sempre, o do silêncio.

  *LAURENT, Éric. A batalha do autismo. Da clínica à política. Parte I, p. 131 (Rio de Janeiro, Zahar, 2014. Tradução de Claudia Berliner).



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