A afetividade caótica: ou de como Eros e Ágape vivem em guerra

Postado originalmente em: Pensando(a)dor
"The nightmare" (Johann Heinrich Füssli, 1781)
"Amamos o próprio desejo e não o desejado."¹

É curioso como as percepções que carregamos acerca de determinados nichos do conhecimento, especialmente aqueles relacionados ao campo das relações humanas, são maleáveis e, até certo ponto, incognoscíveis. De facto, o modo como entendemos a realidade presente de um determinado arcabouço de particularidades sensoriais é - em substância - afetado pelo envolvimento com que se dá o contato do sujeito com o objeto. Contudo, embora essa introdução conduza à um raciocínio que se erga semelhante à uma espécie de relativismo kantiano, o ponto que aqui quero tratar não é esse.

É possível pensar o campo das relações afetivas como uma norma prescritiva que possa ser abstraída por meio da razão ou toda a composição das características que envolvem esse campo das relações humanas está - necessariamente - entregue à um relativismo barato? Não pretendo argumentar a favor de nenhuma das duas opções, pois não presumo conceber a complexidade do comportamento humano em sua totalidade, tampouco presumo que é tudo uma questão de acaso.

A grande questão que envolve - ao meu ver - esta tratativa, é o cinismo com que somos tencionados a agir quando estamos expostos aos conflitos - internos e externos - que compõem esse campo das relações humanas, como abordei brevemente aqui. O campo das relações afetivas, afinal, é o nicho mais idealizado das relações humanas, fazendo com que a necessidade, quase que compulsória, de uma projeção exterior das pretensões - concretas e abstratas - dos nossos anseios próprios, seja um elemento fundamental daquilo que incorpora toda a atmosfera dessas relações, fazendo com que se delegue as responsabilidades pelas incompletudes específicas de cada indivíduo.

Quase como um amor fati nietzscheano, em um estado de transporte da nossa consciência sensorial da realidade factível para um campo idealizado dessa consciência, que forja percepções incongruentes no objeto de identificação externa, esse cinismo intrínseco alimenta um jogo dialético de poder e submissão que conduz essas relações ao parasitismo existencial, fazendo com que o fim último de toda espécie de relação afetiva seja a perpetuação de uma imagem de sobreposição (de preferência) assintomática.

Essa identidade forjada, impulsionada por todo esse processo narrado anteriormente, produz decorrências consequencialistas caricatas e plásticas, tornando todo o transcorrimento desses eventos em tentativas compulsórias de ratificar as posições que foram pré-estabelecidas nas projeções realizadas do sujeito para com o objeto. Para mais ou para menos, essa compleição de aspectos não consegue ser plenamente superada, o que determina o caminho senoidal pelo qual percorre as sinestesias desse jogo dialético.

O fenômeno da vida estetizante, entendido aqui não apenas como a exposição externa daquilo que estimula essas relações, mas - concomitantemente - também as projeções artificiais elaboradas que, ad hoc, servem de reflexo dos interesses pessoais de cada sujeito, funcionam como um elemento de alienação perante toda essa conjuntura de acepções e entregas que, para o bem ou para mal, estão presentes em qualquer relação afetiva.

Os mecanismos materiais de comunicação afetiva; as exigências e aquiescências corroboradas pelas ambições polarizantes; os elementos de transposição das responsabilidades enternecedoras e demais outros aspectos que compõem essas relações, são - lato sensu - expressões daquilo que entendo por características indicativas da maneira egocêntrica (e orgulhosa) com que esses vínculos afetivos funcionam, das mais variadas formas e ordens. Ainda assim, é compreensível a preferência que é dada à todo esse processo, mesmo considerando sua condição caótica e amedrontadora de funcionar, haja vista que a ausência dele é - por vezes - desconsoladora.
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¹Citação extraída de "100 aforismos sobre o amor e a morte", por Friedrich Nietzsche.

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