The Promised Neverland e o fim da infância

 



Eventualmente, aparece um mangá meio “fora da curva”, que chama atenção, até por conta de seu escopo demográfico. Esse é o caso de The Promised Neverland, mangá que foi iniciado em 2016 na Shonen Jump, a mais célebre antologia de mangás shonen no Japão. A obra é escrita por Kaiu Shirai e ilustrada por Posuka Demizu, que tem um estilo de arte até meio diferente para mangás. Na realidade, The Promised Neverland foi até comparado com Death Note, outro grande hit da Shonen Jump e também considerado um mangá “diferentão”.




Mas, afinal de contas, sobre o que é The Promised Neverland? O enredo da obra é a respeito de um suposto orfanato, a Casa Grace Field, onde vivem algumas dezenas de crianças. Todas elas sob a supervisão e os cuidados da “Mama”. Em certo sentido, realmente tem semelhança com um orfanato comum; as crianças são cuidadas, educadas, vestidas, alimentadas e podem brincar à vontade. No entanto, há algumas características bem estranhas na Casa Grace Field, como o fato de que todas as crianças são submetidas a exames bem pesados, que exigem muito do raciocínio e preparo mental. Além disso, todas as crianças possuem números de identificação no pescoço. Dessas crianças, destacam-se três: Emma, Ray e Norman, que são os protagonistas da história. No início do mangá, as três crianças são as mais velhas e têm 11 anos.






Emma é a que tem mais preparo físico e é também a mais amorosa e positiva do trio. Norman é o gênio da Casa Grace Field, que vai bem em todas as provas. Ray também é brilhante, mas bem fechado e observador, aparentando estar sempre escondendo alguma coisa. O ambiente do orfanato é bem idílico, lembrando uma residência do século XIX, e é tudo paz e felicidade, mas óbvio que isso não poderia durar para sempre.


Certo dia, uma das crianças da casa, Conny, de apenas 6 anos, é adotada e despede-se de todas as outras. Porém, ela esquece seu coelhinho. Ao perceber isso, Emma corre atrás dela, seguida por Norman, e ambos se dirigem ao tal “portão” da Casa Grace Field, que é proibido para eles. Ao chegarem lá, deparam-se com uma cena dantesca: encontram a pequena Conny abatida, assassinada, na caçamba de um caminhão. E ficam aterrorizados ao descobrirem que os responsáveis foram demônios e que a Mama foi cúmplice. A verdade é a pior possível. Eles não vivem em um orfanato, mas em uma fazenda, e não são crianças, apenas gados de demônios. Mama não é sua cuidadora, mas a responsável por sua criação para abate.

Pode-se dizer que The Promised Neverland, além de uma história em que criancinhas são comidas por demônios (no bom ou mau sentido), é a respeito da perda da inocência e do fim da infância, uma vez que, a partir desse ponto, Emma, Norman e, posteriormente, Ray não são mais crianças e têm de lutar por sua sobrevivência e a de seus “irmãos”. O que também surpreende é o infanticídio ser tema do mangá, visto que The Promised Neverland é um mangá shonen, que abrange o escopo demográfico de garotos de 10 a 15 anos, mais ou menos. Claro, não é impeditivo que meninas e até mesmo adultos também leiam o mangá, mas o público-alvo prioritário é esse.






No entanto, é preciso reconhecer que os japoneses têm bem menos tabu com essas coisas que os ocidentais. A Shonen Jump inclusive está mais “Nutella”. Se formos ver como ela era nos anos 80 e 90, o sistema era mais bruto. Havia Os Cavaleiros do Zodíaco, Dragon Ball e Hokuto no Ken, que tinham bastante violência para um mangá juvenil. E Video Girl Ai, que continha nudez e peitinhos. No Ocidente, até há algumas histórias em filmes, séries e quadrinhos com infanticídio, mas é um recurso narrativo bem delicado, porque morte de criança sempre é algo bem pesado. Destaquem-se a morte de Arthur Curry Jr., o Aquababy; a morte de Jason Todd, o Robin II; a morte da Astra, em Hellblazer; e a morte do menino Rob, em Robocop 2.



De volta ao enredo do mangá, Emma e Norman agora têm consciência da verdade, e inicia-se um jogo de gato e rato entre eles e a Mama, que na realidade se chama Isabella, como é revelado depois. Não demora para que Ray se junte a eles. Do trio principal, Ray é quem mais esconde segredos, que vão sendo revelados paulatinamente. Não só os segredos de Ray, mas também de Isabella, da Casa Grace Field e dos mundos dos demônios. Do lado de Isabella, surge outra personagem para equilibrar a balança, a irmã Krone, que se torna outra ameaça com a qual as crianças têm de lidar.

O interessante é que até as vilãs da história têm camadas. Isabella e irmã Krone, apesar de toda a vilania, têm um passado e motivos para suas ações, sendo tanto vítimas dos demônios quanto algozes das crianças. No caso da irmã Krone, ela inclusive tem seu momento de redenção; está certo que é aos quinze minutos do segundo tempo que esse momento ocorre.




A própria descrição e ambientação do mundo dos demônios é fascinante. Revela-se que existem outras fazendas que também criam crianças para abate, e nem todas são “gourmet”. Há as fazendas de baias, que são ainda mais cruéis. Dando um pouco de spoiler do que acontece, depois da fuga da Casa Grace Field, Emma vai parar em um vilarejo que na verdade é um campo de caça para demônios, que preferem caçar e comer, em vez de provarem das crianças provindas das fazendas. Há demônios que não comem humanos criados em fazendas porque sua religião não permite, há demônios mais selvagens e animalescos. Inúmeros tipos de demônios.

Falando da fuga de Emma, Norman e Ray, isso é um parêntesis à parte. Não darei spoilers, mas a forma como tudo ocorre é bem instigante, com muito suspense e tensão. Outro grande mistério é o que aconteceu com o mundo dos humanos e se ainda existem humanos, o que é explicado também.

Óbvio, o mangá não se propõe a fazer uma crítica social profunda, mas a realidade das crianças serem criadas como gado não deixa de ser uma reflexão sobre os abatedouros de animais e a indústria alimentícia. No entanto, ninguém precisa virar vegano ou vegetariano após ler esse mangá.

Para quem quiser informações sobre como ou onde ler o mangá, ele atualmente está sendo publicado pela Panini no Brasil. Eu comprei e li até o volume 10, depois não consegui mais acompanhar impresso. Quem não tiver dinheiro para comprar o mangá, pois ele realmente não é muito barato, pode ir atrás dos bons e velhos scans.




Vale dizer que ainda existe o anime de The Promised Neverland, que inclusive consta do catálogo da Netflix, sendo de fácil acesso. No entanto, quem também não tem dinheiro para assinar a plataforma, pode acessar os streamings de anime piratas. Creio que The Promised Neverland também está disponível no catálogo da Crunchyroll, na qual pode ser assistido de forma gratuita, para quem optar pela versão com anúncios da plataforma.


Também foi produzido o filme live action de The Promised Neverland, que, para variar, causou polêmica no Ocidente, com acusações de whitewashing por parte da “lacrosfera”, em razão de irmã Krone ser interpretada por uma atriz japonesa em vez de uma negra. Porém, apesar de os personagens de The Promised Neverland serem ocidentais, todos os atores dos filmes são japoneses, obviamente. Isso é muito comum no Japão. Basta ver que os live actions de Fullmetal Alchemist e Attack on Titan também têm intérpretes japoneses, a despeito de os personagens dessas obras também serem ocidentais.

Enfim, fica a recomendação dessa obra nipônica, que merece ser apreciada seja em mangá ou anime. Quem se dispor a isso, não irá se arrepender; isso eu garanto. Trata-se de uma obra original e um tanto singular, em que situações não apenas de crueldade, mas também de ternura e inocência se mesclam.


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