Quem plantou essa HQ na minha cabeça foi o MCU lá nos comentários do post “Salvat Marvel: meu TOP 10 das 60primeiras edições”, com aquele recado simples: “recomendo pra você DEMOLIDOR – REDENÇÃO… quando ler a gente conversa”. Eu nunca tinha dado muita atenção a ela, até porque quase ninguém cita Redenção quando fala do Demolidor nos anos 2000, todo mundo corre direto pra Bendis e Brubaker. Fui atrás do scan em inglês por curiosidade, imaginando “mais um caso jurídico do Matt” e pronto. Só que, conforme fui lendo, percebi que a HQ estava menos preocupada em fazer crítica genérica a religião e mais em mostrar como uma comunidade pequena, muito fechada em suas certezas, pode usar fé, boato e moralismo como atalho pra condenar alguém antes de olhar pros fatos. Não é um “ataque a cristão”, é um estudo de histeria coletiva em cidadezinha do interior. A partir do momento em que eu senti esse peso, vi que valia sair da promessa feita no comentário e dar pra Redenção algo que ela quase nunca recebe: uma resenha inteira só pra ela.
O vilão da vez não está nas
sombras dos becos, mas nas certidões de batismo, nos sermões de domingo e no
olhar de uma cidade inteira decidida a encontrar um culpado, de preferência
alguém que já servia de bode expiatório antes de qualquer crime acontecer.
A premissa parece simples, mas o
jeito como ela é construída é que pesa. Em uma cidadezinha chamada Redenção, no
Alabama, um menino é encontrado morto e brutalmente mutilado. A resposta
automática da comunidade é correr para a explicação mais confortável:
satanismo. E, como em toda histeria moral bem alimentada, é questão de horas
até que alguém encaixe o jovem “esquisito” da cidade no molde de monstro. Joel
Flood vira, da noite para o dia, o rosto perfeito para o ódio coletivo:
adolescente rebelde, família destruída, gosto por música errada, jeito de quem
não pertence. Não precisa de prova. Precisa de narrativa.
É nesse cenário que entra Matt
Murdock, não como vigilante mascarado descendo de prédio, mas como advogado que
resolve aceitar um caso que, desde o primeiro minuto, tem cara de causa
perdida. O que me chama atenção é que Redenção não tenta dourar a
pílula: você sente, página a página, que o Matt sabe que está entrando numa
briga em que a balança já veio viciada. Não é a Cozinha do Inferno, onde ele
conhece cada esquina. É um lugar onde a lei e a fé se misturam de um jeito bem
menos romântico do que os discursos de “nação sob Deus” gostam de vender.
A narrativa trabalha muito mais
com clima do que com espetáculo. A arte do Michael Gaydos é suja, granulada,
quase desconfortável. Ninguém ali parece um super-herói em potencial; todo
mundo tem cara de gente comum carregando frustração, ressentimento, medo. A
cidade parece pequena demais para comportar tanta tensão, e justamente por isso
ela extravasa em fofoca, boatos, acusações sem lastro. Não tem glamour
jurídico. Tem defensoria na marra, sala abafada, juiz que já entrou com
sentença pronta na cabeça.
O texto acerta quando usa o Matt
não como paladino infalível, mas como alguém que precisa encarar as limitações
reais do sistema que ele insiste em respeitar. Tem algo de cruel em ver um
personagem acostumado a “fazer justiça com as próprias mãos” ser obrigado a se
conter exatamente onde a injustiça é mais gritante. Ele sabe que se entrar ali
como Demolidor, resolve meia dúzia de problemas em cinco páginas. Mas também
sabe que isso não mudaria o coração da cidade, nem desmontaria a estrutura que
permite que esse tipo de caça às bruxas aconteça ciclicamente.
Um dos grandes méritos da HQ é
tratar fanatismo religioso não como “vilão de desenho”, mas como combustível
silencioso para um tipo específico de violência. O pastor que insufla o povo,
os fiéis que preferem a versão demoníaca da história porque ela é mais
“coerente” com seus preconceitos do que qualquer laudo técnico… tudo soa
perturbadoramente plausível. A palavra “satanismo” funciona menos como
descrição real de algo e mais como selo que libera as pessoas de terem empatia.
Se é do diabo, não é humano. Se não é humano, qualquer coisa que se faça contra
vira justiça.
E Joel, no meio disso, é talvez o
aspecto mais incômodo da história. Ele não é o “garoto injustiçado perfeito”,
puro e santo. Ele é quebrado, irritado, contraditório, muitas vezes pouco
cooperativo. Justamente por isso ele é real. A HQ não te facilita torcer por
ele transformando-o num anjo incompreendido. Ela te obriga a encarar a ideia de
que, mesmo pessoas falhas, confusas e desagradáveis às vezes, ainda têm direito
a um julgamento justo. É aqui que Redenção dói mais do que muita
história de vigilante distribuindo soco em traficante genérico.
Sem entrar em detalhes de final,
eu diria que Redenção escolhe um caminho desconfortável e coerente. Não
é o tipo de história que fecha com catarse limpa. Tem um gosto amargo que fica
na boca depois que você termina, mas é exatamente isso que faz sentido dentro
da proposta. Se tudo se resolvesse de forma bonitinha, com revelação perfeita,
monólogo arrependido e comunidade curada, seria traição ao próprio tema. A
graça amarga de Redenção é mostrar que, às vezes, a verdade não é
suficiente para mudar a maneira como um lugar escolheu enxergar alguém.
Vale como porta de entrada para o
Demolidor? Depende do que você quer. Se a pessoa está esperando o herói
acrobático, balanceando fé católica com porradaria coreografada em telhado
molhado, eu diria que não é por aqui que se começa. Mas se o interesse é ver o
lado advogado do Matt levado até as últimas consequências, sem a fantasia
salvar o dia, Redenção é leitura obrigatória. É o tipo de história que
coloca o Demolidor mais perto de um drama jurídico pesado do que de um gibi de
super-herói tradicional.
Pra mim, Demolidor: Redenção
funciona quase como um lembrete incômodo: a máscara vermelha e os sentidos
aguçados são luxos que o Matt não pode usar em todo lugar. E, quando ele entra
num terreno onde só a lei e a palavra contam, a sensação de impotência é bem
maior do que enfrentar um Rei do Crime cercado de capanga. No fim, o que fica
não é tanto “mais uma história do Demolidor”, mas o retrato de um pedaço da
América que prefere um demônio inventado a admitir os monstros bem reais que
ela mesma cria.
