Dada a repercussão do meu último artigo,
a respeito das capas problematizadas e censuradas dos comics, o dono deste blog me
pediu para escrever um artigo sobre o tal ComicsGate, o movimento de artistas
dos quadrinhos que se contrapõe à lacração na indústria. Já há algum tempo que
tenho acompanhado toda a controvérsia do movimento, mas não conhecia tanto a
respeito de sua história; tive de fazer o dever de casa.
Não é segredo que, nos últimos anos, a
industria dos comics vem passando por
uma transformação; uma transformação praticamente forçada, diga-se de passagem,
a fim de cumprir a agenda corporativa da Disney, no caso da Marvel, e da
Warner, no que concerne à DC Comics. Agenda feita apenas para agradar a alguns
segmentos que não necessariamente são consumidores de quadrinhos. O progressismo
já na última década ganhava força nos quadrinhos, mas avançou muito nos últimos
cinco anos, mais ou menos.
Já faço um parêntesis aqui; estou ciente
que diversidade nos quadrinhos não é novidade. Há muitas décadas, desde os anos
60, vêm sendo criados heróis negros, latinos, asiáticos, heroínas, o que foge
da normatização padrão do super-herói homem e branco. É inegável que a Marvel
foi pioneira ao criar heróis negros, com o Pantera Negra, Falcão, Luke Cage
etc., e também deu um verniz de feminismo em algumas de suas personagens. Não
que isso fosse a maior preocupação de Stan Lee como editor-chefe da Marvel, mas
ele percebeu que não eram mais apenas crianças e adolescentes que liam
quadrinhos, mas também universitários politizados e left-wings, e o titio Stan notou que os quadrinhos da Marvel tinham
grande penetração nesse nicho.
A DC também correu atrás da diversidade
e criou seus heróis negros, como John Stewart, Raio Negro, Tigre de Bronze,
Vixen e outros. A revista da Lois Lane começou a ter um viés mais feminista de
consumo; idem a da Mulher-Maravilha. No caso da amazona, deve-se destacar que
seu criador, William Moulton Marston, era um dos “feministos” pioneiros de sua
época, e sua Mulher-Maravilha já nascia com uma pegada mais feminista, apesar
de pueril. No entanto, ao longo dos anos, ela também começou a ter um
comportamento de mocinha em perigo, como essa cena de uma HQ antiga comprova,
em que Steve Trevor a defende de um babaca importunador. Difícil imaginar essa
cena hoje em dia; provavelmente seria a Diana quem daria um murro no cara.
No entanto, há uma diferença entre a
diversidade comercial dos anos 60, 70, 80 e 90 e a lacração forçada dos anos
2010? Sim, no meu entender, há uma óbvia distinção, que era a pretensa
imparcialidade dos roteiristas das histórias. É evidente que vários escritores
tendiam mais para uma visão mais esquerdista e progressista, porém tentavam dar
uma de “isentões”. Quando o Capitão América e o Falcão discutiam e cada um
apresentava seus argumentos, o roteirista deixava a cargo do leitor decidir
quem tinha razão, sem querer transparecer que um lado estava certo e outro
errado. O sentido era mais de contemporizar mesmo. O feminismo raivoso também
chegava às páginas da Marvel, como essa capa de Marvel Team-Up comprova, em que o Homem-Aranha e a genérica da
Mulher-Gato, Felina, enfrentam a vilã misândrica Matadora de Homens.
Ainda demoraria mais uns anos, mas
personagens LGBTS também começaram a surgir ou a “sair do armário”. A maioria
era constituída por personagens coadjuvantes ou vilões e ex-vilões, como o caso
do Flautista, antigo inimigo do Flash. No entanto, o primeiro herói a se
assumir gay foi um do Marvel, o
Estrela Polar, que já dava pinta desde a fase da Tropa Alfa de John Byrne.
A questão é que, apesar de haver na
indústria de comics escritores e
desenhistas mais “progressistas”, os leitores não necessariamente eram. Na
atualidade, leitores de quadrinhos de super-heróis são constituídos, em sua
maioria, por homens adultos; crianças e adolescentes são a minoria. Houve um
envelhecimento do consumidor de comics. As histórias de super-heróis foram
ganhando complexidade, mas não necessariamente qualidade. Nos anos 90, houve
uma explosão de hipérboles e sexualização feminina.
Vale dizer que, no meio
dos comics, criadores conservadores e progressistas coexistiam e, a despeito
das diferenças políticas, não havia grandes atritos. Todo mundo só queria saber
de fazer quadrinhos e garantir o seu. Entretanto, desgraçadamente, se
aproximava a era do politicamente correto e da polarização das redes sociais. O
que ocorreu também foi que a cultura nerd/geek/fanboy
começou a se tornar mainstream,
graças sobretudo às adaptações cinematográficas dos heróis Marvel e DC.
A última pá de cal foi
a ascensão dos social justice warriors,
um povo que nutria profundo desprezo pelos quadrinhos de super-heróis e pelos fanboys, mas, de uma hora para outra,
começou a exigir mais representatividade nos
comics. Passou a demandar histórias com mais heróis negros, asiáticos,
latinos etc., mais heroínas empoderadas e mais heróis LGBTS. A sexualização se tornou
crime. Um ilustrador fazer arte com uma personagem com corpo escultural passou
a ser um ato hediondo. Era a era do mi mi mi. E Marvel e DC se tornaram muito
suscetível a isso, por razões corporativas e até certo ponto ideológicas.
Nesse ponto é que houve
a virada. O ComicsGate, que seria um contraponto a tudo isso. Não foi muito
fácil encontrar muito material a respeito do movimento. Tive de recorrer
sobretudo a sites gringos, visto que
os sites nerds nacionais que
pesquisei que comentavam a respeito do ComicsGate eram muito tendenciosos, de
extrema-esquerda e que não queriam dar muito detalhes sobre o movimento, com
medo de fazer propaganda. No entanto, como sou um cara que não tem frescura e
não tem medo de botar o dedo na ferida, tentarei esclarecer aqui o que entendi
a respeito de tudo isso. Revelarei não só o ComicsGate, mas também quem são
seus criadores e quais são suas HQs. Sinceramente, acho que nunca um blog nacional de quadrinhos e cultura
pop teve um artigo como este a respeito do ComicsGate.
Pode-se dizer que, na
realidade, a indústria de comics criou
seu próprio monstro, pois vários dos artistas do ComicsGate eram criadores que
trabalhavam para a Marvel e DC e foram demitidos depois de questionarem as
políticas de diversidade e a agenda progressista dessas editoras. O nome mais
proeminente é de Ethan Van Sciver, que trabalhou principalmente para a DC
Comics, desenhando a HQ Lanterna Verde Renascimento e a mensal do herói escrita
por Geoff Johns. Também ilustrou Flash Renascimento, escrita por Johns,
Batman/Mulher-Gato, a mensal do Impulso, Tropa dos Lanternas Verdes etc. Ele
também trabalhou na Marvel, desenhando os X-Men de Grant Morrison. Ao que
parece, Van Sciver, além de questionar a política de lacração, também se
assumiu como republicano e eleitor de Trump, o que ocasionou sua sumária
demissão da DC. No ComicsGate, Van Sciver escreve e desenha uma antiga criação
sua, Cyberfrog. Ele também é o criador mais beligerante do movimento e vive em
discussões no Twitter com a turma da lacração, a exemplo de Mark Waid, Gail
Simone, Tom King, entre outros. Cyberfrog,
como a maioria dos quadrinhos do ComicsGate, é publicado via financiamento
coletivo, pelo Indiegogo.
Estava conferindo os
nomes dos artistas do ComicsGate, e a maioria não é muito conhecida na Banânia,
mas acredito que sejam mais notórios nos EUA. Outro nome mais conhecido pelos
leitores tupiniquins é Chuck Dixon, lendário escritor de Batman e criador de
Bane, mas que também foi responsável por histórias de Asa Noturna, Robin,
Mulher-Gato, Aves de Rapina e Arqueiro Verde. Na Marvel, ele escreveu
Justiceiro, Conan, Marvel Knights, entre outros títulos. O projeto de Chuck Dixon no ComicsGate é um
tal de Jungle Comics, com desenhos de
Kelsey Shannon. Mas parece que Bem Dunn também está envolvido nesse projeto. Ele
é o criador da Noiva Guerreira, que foi adaptada para série da “Lacraflix”. A
sinopse do quadrinho diz que é a revitalização do clássico gênero de aventura
na selva, quando homens eram homens e mulheres eram hot. Sinceramente, fiquei com muita vontade de ler esse quadrinho.
Outro quadrinho do
ComicsGate é esse Jawbreakers, que se
assemelha àquelas HQs de equipes de super-heróis táticas dos anos 90. O autor é
Richard C. Meyer. Ele também é responsável por outro título, Iron Sighs, cujo enredo é a respeito de
dois veteranos do Iraque que se metem em uma guerra de fronteira ao salvarem
uma bela mulher de um cartel.
Há ainda Trump’s Space Force, de Timothy Lin. É
uma óbvia paródia espacial e política com Donald Trump, em que ele cria sua
própria equipe espacial para “tornar o espaço grande novamente”.
Um quadrinho curioso é
esse Ravage – Kill All Men,
da Cautionary Comics, em que dois veteranos do
Exército vão parar em uma selva mística habitada por mulheres tóxicas que
querem matar todos os homens. Uma óbvia paródia ao feminismo radical e ao
empoderamento. Essa é outra HQ que fiquei interessado em ler.
Ademais, temos Greveyard Shift, de Jon Malin, em que
cientistas assassinados voltam à vida como uma tropa tática de zumbis. Parece
bom.
Em seguida, há Brutas, the Badass, escrito por Donal
Daley e ilustrado por Nasser Rabadi, define-se como um quadrinho de comédia e ação
espacial.
Outra HQ é Brand, com roteiro de Antonio Brice e
desenhos de Caanan White, é sobre uma história de amor que acontece em meio à
guerra entre Céu e Inferno. No ComicsGate, temos até amor, vejam só. Essa
ilustração com uma mulher sendo seviciada por um Papai Noel capiroto era comum
nos anos 90, mas hoje gera esperneio.
Destaca-se também The Ember War, de Jon Del Arroz, HQ
inspirada em uma ficção científica espacial e militar de Richard Fox.
E, por último, mas não
menos importante, temos Cash Grab, de Cecil. O
personagem dessa HQ é que proporcionou toda a controvérsia com a capa de Vengeance of Vampirella da Dynamite.
Essa é a única editora que parece demonstrar algum suporte ao ComicsGate. Há
ainda alguns criadores de quadrinhos como Billu Tucci, autor de Shi, que parece se alinhar às diretrizes
do ComicsGate, mas não faz oficialmente parte do movimento.
Acredito
que, por essas informações, já dê para se ter uma ideia do que é o ComicsGate e
como ele se opõe de forma direta ao progressismo, ao politicamente correto e às
pautas de diversidade que permeiam as editoras majors de quadrinhos americanas, particularmente Marvel e DC, mas
não somente; também Image, Dark Horse e outras.
As
chances de alguma editora nacional de interessar em publicar algum quadrinho do
ComicsGate por aqui são para lá de remotas. Não apenas por serem títulos
desconhecidos, mas também pelo fato de que essas editoras ficariam com o cu na
mão. Quem quiser ler esses títulos, terá de pagar em dólar ou então ler na
biblioteca do Jack Sparrow, os populares scans,
mas acho que não é muito fácil achar scans
dessas HQs na Banânia. Penso, sim, que o
ComicsGate pode vingar no mercado doméstico de comics nos EUA, pois o mercado lá é vinte vezes maior que o nosso,
e há possibilidade de escolha. Pode-se consumir os quadrinhos da Marvel e DC
permeados de lacração e os do ComicsGate, que é bem o oposto disso. Mas é de
destacar-se a grande queda de vendas que as HQs da Marvel tiveram uns anos
atrás, justo na época da “Thora”, da Garota Negra de Ferro, do Capitão América
Falcão, da Miss Marvel adolescente muçulmana etc. Faz pensar a respeito de como
o leitor de comics americano, mas não
somente, está reagindo a essas políticas mais progressistas que tomaram de
assalto o meio...
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