A Morte Ronda as Famílias – Impressões sobre o Não Luto em “A Morte da Família”

 Wagner Williams Ávlis*

[Esta crítica é um preparatório para meu ensaio de literatura comparada a se chamar "Famílias em Morte", um comparativo analítico entre as obras "Morte em Família" (1988), de Jim Starlin com Jim Aparo, e "A Morte da Família" (2012), de Scott Snyder com Greg Capullo]. Para conhecer a primeira parte, acesse "A Morte da Família Humana – Impressões sobre o Primeiro Luto na Batfamília

╣██╠ Um introito ao arco
“Não é mal escrito, mas é malsucedido”. Este será o rótulo que o arco Morte da Família (2012), de Scott Snyder com Greg Capullo, carregará para sempre como fardo na gibigrafia do Cavaleiro das Trevas. Grande parte dos leitores, dos veteranos aos neófitos, cravou a reprovação devido ao final que não cumpriu o prometido no título, haja vista ninguém na batfamília ter morrido nem ter acontecido alguma atrocidade. Cunharam o trabalho e todos os spin-offs de um arremedo sensacionalista. Em meu exame como fã e crítico, apesar de sentir que o roteirista Scott Snyder é um sopro de novidades na carreira do maior detetive do mundo, dou razão a eles. Snyder ainda não alcançou o posto de gênio, é apenas um autor criativo, um pouco acima da média, porém de roteiros esquecíveis (a não ser Corte das Corujas, um trabalho promissor). Greg Capullo lhe é melhor como desenhista e as decisões corporativas da DC continuam sendo o grande obstáculo aos artistas. Apesar de tudo, quero ir além, além da negatividade, quero decompor a estrutura do arco, independentemente do juízo de valor que deram-no ou do seu juízo de valor, caro leitor. O que importa à crítica de arte não é se o final é bom ou ruim, e sim se a obra foi bem composta. A Morte da Família, como composição, não é uma obra-prima, mas também não é uma porcaria em nanquim. Para isso demonstrar dividirei esta análise em dois blocos, “grandes falhas do arco” (os defeitos), “decompondo a estrutura” (as qualidades).

╣██╠ Grandes falhas do arco
O núcleo da frustração da saga do Coringa em atingir os membros da batfamília não está no título. O leitor de Batman, novato ou experiente, precisaria ser ingênuo demais para supor que toda a Batsquad seria morta na trama que, embora verossímil, seria impraticável para a editora. O núcleo da frustração esteve no merchandising da DC em torno da saga já apelada no fim de 2012 com insinuações da morte de algum batmembro, no olhar de muitos, um dos robins. Para ficarmos num exemplo, veja o título lúgubre de Batman #18: "Após uma tragédia indizível, Batman corre o risco de perder sua humanidade". Paralela a esta produção corria outra, a Corporação Batman (2012), de Grant Morrison com Chris Burnham, e devido às imposições do careca escocês (leia-se “não mexer no Robin Damian Wayne, minha criação, porque sou eu quem decido o que fazer com ele”), a cogitação de vitimar o 5º Robin em A Morte da Família foi abortada antes mesmo de nascer. Outro óbice foi a descontinuidade antes da saga. Tony S. Daniel estava à frente do arco Faces da Morte (2011) que reinaugurava a “Detective Comics” Novos 52 antagonizando com o vilão Criador de Bonecas, responsável por facilitar a fuga do Arkham e por extrair o rosto do Coringa. Esses dois episódios não tiveram repercussão no decorrer do reboot, terminaram caindo no esquecimento e coube a Scott Snyder aliar as pontas soltas mais de um ano depois, já que esteve ocupado com Corte das Corujas (2011). Todos esses desserviços corporativos influenciaram a tessitura do trabalho de Snyder, culminando numa série de meia-força em marcha-à-ré.
Mas Scott Snyder possui suas próprias falhas na saga em apreço. Para ser conciso, listo em tabela seus erros de composição narrativa.
Querer dar a entender que sua história é algo autêntico e não um pastiche
A Morte da Família nada mais é do que – em seus principais tópicos – um rearranjo do thriller “O Massacre da Serra Elétrica” (1974), por Tobe Hooper.

1) A máscara humana do rosto do Coringa equivale à máscara de pele humana do serial killer Leatherface.

2) A caçada empreendida pelo Coringa (incluindo a ajuda de Pinguim, Duas-Caras, Charada e seguranças manicomiais) contra os membros da batfamília é a mesma que Leatherface e sua família sociopata de mais 3 membros empregaram contra os 6 amigos viajantes do Texas.

3) A cena emblemática da batfamília capturada em redor duma mesa de jantar prestes a comer seus próprios rostos é uma imitação da cena da família mascarada de Leatherface na mesa de jantar, esperando praticar canibalismo contra a vítima Sally.

Afirmar que Dick Grayson, o Asa Noturna, não conheceu o personagem Henry Claridge, o magnata dos diamantes (p.21)
Isso denuncia uma deficiente pesquisa antológica de Scott Snyder. Em Batman #1 (1940), no conto “O Coringa” (Bill Finger/Bob Kane), é o próprio Dick Grayson, um Robin com então 12 anos de idade, quem dá a notícia de jornal a Bruce Wayne sobre o assassinato de Henry Claridge pelo desconhecido Coringa. Nos Novos 52, o filho de Claridge, John, é raptado e morto ao vivo na TV pelo pierrô. Grayson não sabe quem é Henry Claridge e pergunta: “Quem era ele?”
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Nota: na primeira aparição do Coringa suas ameaças às vítimas eram advertidas por ele mesmo no rádio, aparelho em moda nos anos 1940 e que antecedeu a TV. Para contemporaneizar esse fato, Scott Snyder opta por referenciar o conto “O Homem que Ri” (2005), dizendo que o Coringa “surgiu na televisão dessa mesma forma, e anunciou que Claridge morreria à meia-noite”. De modo pessoal não me agradei dessa atualização por desconstruir o cânon, pois Henry Claridge foi ameaçado no rádio e não na TV. Um anúncio em rádio até hoje é usual e não é sinônimo de coisa antiga.

O lugar-comum da onisciência antagonista
Como nos filmes dos “Jogos Mortais” e seu Jigsaw onisciente, o Coringa de “A Morte da Família” também é. Ele está sempre passos à frente da polícia, da administração pública, da batfamília, conhece os passos, rotinas, gostos de cada participante de seu joguete, antecipa as reações meticulosamente previstas, possui um senso de planejamento quase infalível. Esse tipo de composição acabou incorrendo no erro de abrir vazios lógicos, trazendo mais questões por responder (não sendo respondidas):

1) Por onde esteve o Palhaço do Crime durante seu um ano de sumiço?

2) Com quem obteve recursos – em tese, os maiores, mais caros e mais sofisticados, haja vista nenhum vilão ter chegado na metade do que ele conseguiu – para empreender cada etapa de seu plano (o mais ambicioso já visto)?

3) Como teve acesso a algumas rotinas, como a do Comissário Gordon (p.14) e a de Alfred Pennyworth (p.47), se esteve ausente e incomunicável de Gotham?

4) Qual a explicação para que todo o Asilo Arkham tenha se tornado refém e servo de um só interno, o Coringa?

5) Deu-se a entender que o bobo da corte sabia, de antemão, as identidades secretas da batfamília (e por isso mandou fazer moldes da face de cada um). De que forma ele alcançou esse trunfo?

Confusão de retcons e referências
Como um de seus objetivos na trama é fazer uma ode ao histórico de confrontos entre Batman e Coringa, o roteiro quer dar a entender que está permeado de referências à gibigrafia do personagem, porém nem os editores da Panini informam os leitores quando ocorreu tal fato (como fazia a ed. Abril com seus asteriscos de rodapé), tampouco Snyder esclarece. O episódio da luta entre o herói e o vilão num dirigível e o da carta-curinga deixada na batcaverna, por exemplo, não são referências, mas retcons criados pelo autor para dar marcha ao enredo.
Spin-offs desencontrados
Durante a saga as revistas do batverso ficaram interligadas para convergirem na trama principal de Scott Snyder. Porém muitos roteiristas, como a escritora Gail Simone em “Batgirl”, redigiram elementos acessórios à trama e que não foram aproveitados ou explicados por Snyder no desfecho, a exemplo do anel fincado em um dedo extirpado oferecido pelo Coringa à Garota-Morcego. Para piorar, a Panini não incluiu os spin-offs no capa-dura, deixando inexplicável como Coringa conseguiu raptar um a um os vigilantes de Gotham.


Imagens comparativas: note as semelhanças entre o Coringa de "A Morte da Família" com o serial killer Leatherface do filme "O Massacre da Serra Elétrica" (que usa um rosto humano como máscara também), além das cenas da mesa de jantar canibal.
 ╣██╠ Decompondo a estrutura
            O núcleo do enredo e da arte sequenciada em A Morte da Família são duas grandes noções amplamente reiteradas na mitologia do Homem-Morcego: 1) o Coringa como uma ambulante entidade da loucura e um gênio do crime, 2) a mortífera relação entre o Morcego e o pierrô. No primeiro confronto de ambos, em Batman #1 (1940), ficou estabelecido que, no dizer de Bruce Wayne, “o Coringa é um assassino inteligente e diabólico. Muito inteligente e muito perigoso”, ao passo que em A Morte da Família Batman diz, “ele [o Coringa] está reencenando seus crimes. Está escolhendo e usando nossos encontros anteriores. Reencenando-os de maneira inversa” (p.54). Isso significa que pouco menos de meia fração do arco é um tipo de recapitulação antológica dos embates iniciais entre os dois, influenciando, inclusive, na narrativa gráfica. Confiramos quais foram os embates.
Assassinato de Henry Claridge (Batman #1, 1940).
Assassinato de John Claridge, filho de Henry Claridge (A Morte da Família, p.21).

Ameaça de morte ao banqueiro Jay Wilde, ao mafioso Brute Nelson, ao juiz Drake, os três assassinados. Exceto Brute Nelson, uma guarnição policial fez a escolta das vítimas antes de morrerem intoxicadas (Batman #1, 1940).

Ameaça de morte ao prefeito Hady de Gotham City, também escoltado por uma guarnição policial. Hady vive e a guarnição morre intoxicada. Nota: o gás hilariante sempre contraiu a face para resultar num efeito de riso mórbido. Em “Morte da Família” ele contrai para resultar num efeito de tristeza dolorosa. (A Morte da Família, p.26).

Luta contra o Capuz Vermelho na fábrica de baralhos Ace. Antes de descobrir que Coringa era o Capuz Vermelho, Earl Benson fazia o papel de impostor do mesmo Capuz Vermelho. (Detective Comics #168, 1951).

Luta contra o Capuz Vermelho na fábrica de baralhos Ace. Batman descobre que Arlequina é quem está fazendo papel impostor do Capuz Vermelho (A Morte da Família, p.30).

Intoxicação do chefe de polícia do DPGC (Batman #1, 1940). Inutilização do Comissário Gordon através de sequestro (Piada Mortal, 1988).

Inutilização através de intoxicação do Comissário Gordon (A Morte da Família, pp.50-51).

Luta contra Coringa no reservatório de abastecimento d’água de Gotham City (O Homem que Ri, 2005).

Luta contra Coringa no reservatório de abastecimento d’água de Gotham City (A Morte da Família, pp.56-77).

Confronto e sumiço do Coringa na baía de Gotham (Batman #51, 1941).

Confronto e sumiço do Coringa na baía de Gotham – aqui empregado como um retcon (A Morte da Família, p.83).

Entrada de Batman no Asilo Arkham no encalço do Coringa (Asilo Arkham, Uma Séria Casa em um Sério Mundo, 1989).

Entrada de Batman no Asilo Arkham no encalço do Coringa (A Morte da Família, p.91).
A narrativa gráfica de Greg Capullo, mais sofisticada, busca emular alguns dos mesmos enquadramentos daqueles conflitos precedentes. A quadrícula de 1/4 (p.26) com os policiais agonizando no chão em ângulo circular nos lembra as quadrículas de 1/8 com as escoltas policiais em ângulo circular de Bob Kane em Batman #1 (1940). As cores lisérgicas por John Higgins da Piada Mortal (1988) compõem a paleta de cor de FCO Plascencia na cena de Batman vs. Arlequina disfarçada de Capuz Vermelho na fábrica. Ainda nessa cena, Capullo desenha uma angulação parecida com a que fez Bolland em 1988 quando Batman percebe o Coringa impostor, inclusive com a mesma interrogativa do Homem-Morcego. Os ganchos cabeados do Coringa, com formato de dentaduras, disparados da ponte do reservatório d’água, são elementos cartunescos da Era de Prata do Batman, quando todo apetrecho usado pelo Palhaço do Crime tinha uma customização curinga. Nesse episódio, Greg Capullo pincela quadrículas em sobreposição do mesmo jeito que Doug Mahnke fez em O Homem que Ri (2005) igualmente no episódio do reservatório d’água. Toda essa efusão de emulações gráficas cumprem a tarefa de coesão da trama por meio da retomada daqueles acontecimentos mais antigos, bem como da reiteração dos acontecimentos como cânones. Na lógica interna da obra, é uma rememoração, um tipo de reconstrução dos passos dos embates iniciais do herói e do vilão, e que, para os leitores, surge como um diário memorial, ou, nas palavras do próprio autor, Scott Snyder, “uma carta de amor deturpado do Coringa para seu rival”. Nesse ponto da reiteração do cânon, chamo a atenção – mais uma vez – para o desfecho de Piada Mortal interpretado na Morte da Família, portanto tido por canônico. Na página 50 Greg Capullo desenhou duas fotos referentes à obra de Alan Moore/Brian Bolland; numa delas está Coringa no parque de diversões sendo levado algemado à viatura policial logo após a cena da gargalhada com Batman. Na página 144, pela cena do diálogo entre o arlequim e o Menino-Prodígio, o autor Scott Snyder escreve a fala do Palhaço do Crime:

– Mas o Morcego... Ah, sim... Eu fiz ele rir sem ajuda. Só uma vez... Ali na chuva... Antes dos homens da lei chegarem. A gente riu e riu enquanto o carrossel rangia e os cavalinhos de madeira pintados olhavam pra gente.  

Mais uma vez se afirmou a mesma canonicidade: em Piada Mortal, Batman não matou o Coringa.
A atmosfera de "Piada Mortal" é presente na obra de Snyder e Capullo, da angulação ao desfecho da graphic novel.
Sem dúvida, no conto em análise, o brilhantismo é todo delineado ao serial killer mais temido das HQs; é fato que ele é um gênio – não ainda como Ra's al Ghul ou Lex Luthor, mas muito próximo – de total distante da imagem simplista que alguns leitores têm a respeito, em geral, de um ensandecido piadista que antagoniza a esmo, sem planejamento estratégico. Cabe lembrar que ainda nos anos iniciais o Coringa já despontava como um exímio químico, sabendo manipular isótopos complexos, moléculas de hidrocarbonetos, cargas elétricas, o que o possibilitou engendrar o gás hilariante, o ácido sulfuroso da lapela e a luva eletrocutora. A isso se deve seu trabalho na fábrica Ace, como ele diz no clássico “O Homem do Capuz Vermelho” (Detective Comics #168, 1951)

– Na época, minha pele tinha cor de gente, como a de vocês! Eu era técnico de laboratório”.

Em A Morte da Família vemos então toda a potencialidade tática do arquivilão investindo contra não só o Batman como toda a batfamília, coisa que nenhum oponente ousou fazer. Aqui, Snyder transcende o personagem, repotencializa-o ao extremo e às últimas consequências, ascendendo-o do serial killer mais sanguinolento dos quadrinhos a uma carnificínica entidade mítica, histórica, lendária, secular, capaz de encarnar, em si mesmo, todo o conceito e ação da violência, da loucura, do terror, do mal visível, uma força atemporal antagônica e psicótica com o mesmo peso e proporção que têm as lendas do lobisomem, do Drácula, de Satanás, deambulando, surgindo e impondo medo pelas sombras e lugares como um espírito. A composição da trama constrói como nenhuma outra antes dela, para além do tíbio final, um Coringa como uma força extemporânea malévola, superior a qualquer vilão terráqueo do Batman ou da DC, e isso tem de ser admitido por fãs e haters. É o próprio Comissário James Gordon quem pontua:

– Isso é o que mais odeio naquele louco. Com os outros, ainda existe algum tipo de lógica. Alguma motivação que faz mais ou menos sentido. Se você é um detetive bom o suficiente, pode conseguir prever qual vai ser o próximo movimento deles. Mas com ele [o Coringa]... Tudo que dá pra fazer é reagir. E esperar enquanto escolhe seu próximo alvo (p.49).

Como fiz saber alhures, essa característica do personagem não foi Snyder quem a deu (ele a potencializou), e sim seus conceptistas Jerry Robinson mais Bill Finger. As quatro primeiras aparições do “Sr. C.” são revestidas dessa áurea macabra, bizarra, ensandecida, horrenda, que Snyder revitalizou. Inclusive, foi por causa desse perfil lunático-violento que o Palhaço caiu logo no sucesso do público, e, logo depois, na censura do Comic Code Authority das HQs na Era de Prata (1956-1970), tornando-se um trivial bandido-palhaço engraçado. Voltando às consultas de 1940-1941, tem-se

╰▶ o 1º arco, "O Coringa" (1940), traz um personagem louco, inescrupuloso, de feições nada divertidas, mas deformadas e aterrorizantes, ávido por executar milionários para tomar suas joias, a fim de levantar fundos para montar sua própria máfia. Ele é capturado numa penitenciária (e não ainda num manicômio), dado pela Justiça como "caso encerrado". Mas olhe só o que ele diz em monólogo

– [...] Não podem me manter aqui [preso]! Eu conheço uma saída! O Coringa ainda vai rir por último!

╰▶ O 2º arco, "O Coringa Encontra a Mulher-Gato" (1940), é a concretização do monólogo. Evadido da prisão (e liderando uma gangue), Coringa, num combate com Batman, Robin e Mulher-Gato, é vítima do seu gás letal, cai ao chão tomado por chamas de incêndio e deixado para trás pelo trio em fuga. O clima de encerramento é de mistério: teria o Coringa sobrevivido?

╰▶ O 3º arco, "O Caso da Morte Risonha" (1940) é a resposta à pergunta acima. O arlequim reaparece, como que do nada, da morte iminente. Numa luta corpo a corpo com Batman num cruzeiro em movimento, o vilão é ferido e derrubado em águas profundas, sem no entanto emergir do mar. Mais um clima de dúvida se Coringa dessa vez morreu.

╰▶ O 4º arco, "O Caso do Circo do Coringa" (1941) é um súbito retorno do serial killer, dessa vez, mais explicitamente, tratado como uma entidade que "brinca e engana a morte" (p.34). Batman chega a dizer:

– O Coringa atingiu violentamente as águas [do mar] e, em suas profundezas, permaneceu. Será que este é realmente o fim do Palhaço do Crime?

A questão é que não foi. E, ao final dessa história, noutra luta corpo a corpo com Batman, Coringa é arremessado, sem chances de defesa, dentro de um alçapão que era caminho para o precipício do castelo onde lutavam. Repare o que Bill Finger põe nos balões:

Robin: – Parece que, desta vez, o Coringa não escapa tão facilmente [da morte]!
Batman: – Talvez... Mas ele sempre parece ter um meio de trapacear a morte! Bem, seja como for, terminou.
Narrador: "Estará vivo o Coringa? Se os caminhos de Batman e do Arlequim dos Ardis se cruzarem novamente...".

Ou ainda no conto “O Enigma da Carta Desaparecida” (Batman #51, 1941), logo após o corpo decaído do arlequim sumir nas águas revoltas da baía de Gotham:

Narrador: “O Coringa foi de fato derrotado? Ou será que ainda está vivo e com um novo truque na manga? Isso, só as águas revoltas do mar turbulento podem responder...”.

Como se pode notar, o Coringa foi concebido para e continuou a ser uma entidade corporificada da psicopatia e da perversidade, driblando e manipulando a morte, rapidamente assumindo uma forma de lenda-viva urbana de horror e violência para militares e civis. Isso tudo ficou mais concreto com o descarnamento do seu próprio rosto para usá-lo como máscara. O rosto-máscara, no conto, é o símbolo de que a identidade do Coringa não foi perdida, mas é sempre volátil, volúvel, metamórfica, mesmo que mutilada ou em putrefação. Sua marca não é o riso, e sim sua face horripilante, amedrontadora, bizarra, ela mesma que é o suporte de seu riso. Por isso no conto ele vai recuperar seu rosto (deixado como aviso de retorno) na delegacia e toma posse novamente dele. O rosto-máscara funciona, na lógica interna da obra, como um elemento reforçador do enigma que ele é e que encobre sua origem cercada de segredos, seu passado misterioso, sua personalidade sombria, mesmo que use um macacão de serviços gerais (símbolo dos vários “serviços” que ia executar contra os vigilantes de Gotham) com um de seus possíveis nomes civis, “Joe” – de Joseph "Joe" Kerr, como mostrado no filme “Batman, O Cavaleiro das Trevas”, pelo Coringa de Heath Ledger. É a semiótica da HQ ressignificando o discurso da mitologia do personagem, o perfeito casamento entre a linguagem verbal com a não verbal.
O rosto descarnado para usar como máscara do pierrô foi um recurso semiótico bem elaborado no conto, ressignificando, num único elemento, toda a mitologia do serial killer.

╣██╠ Mas afinal, o que foi a pretensa “morte” da batfamília?
A “morte” não acontecida na batfamília foi na verdade uma morte simbólica e não poderia ser de outro jeito, já que seria impertinente toda a batfamília morrer ou um de seus membros em início de reboot. Simbolicamente a morte é o próprio Coringa com toda essa áurea psicopatológica que descrevi; ele é a encarnação da loucura e da morte que, em vez de empreender toda a sua potência contra outros alvos como sempre fez, empreende, única e exclusivamente, contra a Batsquad para atingir seu nêmese, o Batman. A morte simbólica da Batsquad consiste em atingi-la no âmago: eles não são, de fato, uma família, mas um agrupamento de vigilantes cada qual com suas visões de mundo, vaidades, convicções, que, se por um lado estão juntos, por outro não estão unidos, fato que os tornou vulneráveis a cada investida do pierrô. No plano individual contra o personagem de Batman, sua “morte” foi descobrir-se limitado, atado, afetado pela dependência de proteger os membros de seu grupo, como fez saber o vilão

– Mas eles [os batmembros] te tornam tudo o que não quer ser. Tudo o que tem medo de ser. E você sentiu medo quando acolheu esse pessoal (p.184).

É pois a mesma fraqueza que o sultão da vilania Ra's al Ghul identificou no Cavaleiro das Trevas em O Filho do Demônio. Por causa desse ponto fraco, Batman quase sucumbiu, e, no caso do Coringa aqui, mostrou ele de modo subliminar que não assassinou Batman e toda a Batsquad simplesmente porque não quis. Pode-se dizer, sem exagero ou medo, que a batfamília esteve o tempo todo na mão do Palhaço do Crime e fora do controle de Batman. Mesmo com Batman vencendo ao fim, ficou demonstrado, quem ganhou foi o Coringa – eis a “morte” da batfamília. Por força de tais vulnerabilidades, no reboot, depois desse evento, a batfamília permaneceu separada, desunida.
            Faço, por fim, uma interrogação. Será que o arco A Morte da Família não é também uma metáfora que se enquadra na atual crise por que passa a instituição familiar, sobretudo a tradicional? A mesma dispersão, os mesmos pontos fracos, as constantes loucuras que os novos tempos e os novos pais e filhos levam para seus núcleos não seriam, enfim, o Coringa real de cada dia que ronda, como a morte, a vida de cada família?
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(*) Professor de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira, Redação, escritor da Academia Maceioense de Letras, articulista de imprensa. Nas horas vagas, é historiador do Homem-Morcego.



Nota: consultei vários domínios sobre o assunto e nada de relevante foi visto, exceto em alguns poucos sites de texto: vídeos consultados à Canal Soda Pop, Central HQs, Cejaviu HQs – Quadrinhos e Derivados, Claiton Fortes, Conexão Cidadãos HQs, Distopia Cast, Estação Geek, Game Genial, Lucas MG, Lucianobsalve, Luiz Corsi, Nerdicas, Nerdrider#203, Omelete TV#318.1, O Navegando, 2Quadrinhos. Textos consultados à Mansão Wayne, O Vício, Os Batmaníacos, Omelete, Vortex Cultural. 

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