A língua tem o poder sobre a vida e
sobre a morte.
Provérbios, 18:20-21.
Ultimamente
tenho lembrado muito da minha professora do primeiro ano. Ela era de baixa
estatura, baixinha, é claro, negra, gentil, mas firme. Era um tempo em que
existiam educadores e, hoje, duvido muito, que houvesse alguém que não
aprendesse com essa criatura que esbanjava uma admirável conduta ética. Tenho
com ela uma dívida simbólica impagável, principalmente no que diz respeito aos
desfiladeiros da linguagem, os nomes e suas flexões sob a égide de uma
gramática perfeita. Aí está um ponto de vista a partir do qual a comunicação e
a expressão têm seu modo de operar a realidade das chamadas operações
discursivas que dirigem as relações entre pessoas e grupos. A partir disso, os
modos de dizer podem vir a ser apenas uma forma de resguardar-se ou de
resguardar certas definições que se quer impor à revelia da realidade chamada
nua e crua ou do óbvio incontestável. E óbvio incontestável é quase um
pleonasmo vicioso, como entrar para dentro ou subir para cima.
Dona
Judite Dantas regia a classe com perfeição, suas aulas nos mantinham, a nós
alunos, concentrados na matéria dada, no assunto tratado em cada uma. Era uma
excelente articuladora. Conseguia atingir todos os circuitos de aprendizagem,
todos modos de assimilação dos alunos. Suas aulas de Aritmética nos faziam
entender perfeitamente porque 2+2 era igual a 4, o que sumia e desaparecia na
operação, como num passe de mágica que resolvia o mistério dos números em sua
sequenciação crescente ou porque 2-2 era igual a 0, em sequenciação decrescente.
Assim, ela sempre nos confrontava com o imponderável, com uma realidade difícil
de contestar, com essa base que, da soma e da subtração, podia-se seguir para a
multiplicação e para a divisão, definidos os fatos fundamentais dessas
operações. A escola era séria e franca, se bem que risonha vez por outra. Os
pontos norteadores, os referentes, estavam sempre à vista, e era bem possível agarrá-los
quando nos encontrávamos em situações limite em que éramos confrontados com o
teor de verdadeiro e de falso em relação a fatos, pessoas, circunstâncias e
mesmo quanto às nossas aspirações.
Não
consigo esquecer de suas aulas de gramática. Era um tempo em que a matéria Português
era chamada de Língua Pátria, mas, em seguida, se tornou Comunicação
e Expressão. Passei a entender como fazer para colocar os termos exatamente
no lugar, com aquela correção impecável em que as frases ditas não fizessem doer
os ouvidos, não surtissem efeitos ambíguos, não causassem mal-entendidos. Essa
artimanha era difícil de realizar, mas não impossível porque não se podia
esquecer das pistas fornecidas pelas categorias gramaticais, por suas
consagradas definições. A Gramática empoderava e, empodera, a língua com uma
versatilidade nunca vista, com uma efervescência inacreditável. Das categorias
gramaticais, a mais versátil e rica é o substantivo, pois se trata das palavras
que nomeiam os seres em geral, que são de tal maneira numerosos a ponto de não
se poder abarcá-los. Há, em sua classificação, até aqueles que são denominados
abstratos, pois o que nomeiam, apesar de não ter descartada a existência, não é
visível e pode estar lá como se não estivesse. E há, também, em sua
classificação o que é regido pela regra e pelo que se faz exceção. No que se
faz regra, não há qualquer variação possível, trata-se de uma posição factual e
incontestável. No que se faz exceção, as variações se apresentam como
inumeráveis e causam espanto e desconserto, mas ocupam seu lugar, ou seus
lugares definidos e não escapam às suas colocações específicas.
Dona
Judite Dantas era bem mais firme que gentil quando se tratava da regra. Desse
ponto de vista as flexões dos substantivos eram inexpugnáveis, determinantes,
fixavam a solidez da língua como um rochedo que nem um terremoto de pontuação
considerável na Escala Richter abalava. As flexões de número, de grau, por
exemplo, se não observadas suas regras, nos faziam correr riscos às vezes
incorrigíveis, implicava distorcer uma estimativa da realidade, as noções de
quantidade e tamanho. Singular e plural, maior e menor se atropelavam, pouco e
muito se confundiam. O espaço ocupado por muito tinha uma dimensão efetivamente
diferente do que aquele ocupado por pouco. As maiorias e as minorias adquiriam
concepções definidas na extensão do mundo. A realidade de fato se tornava mais
clara e mais evidente para todos aqueles ocupantes da sala de aula cuja idade
média era 8 anos. Entretanto, o que mais nos causava impacto e fascínio era uma
flexão extemporânea, que era sinteticamente definida como gênero. Um
dia, Dona Judite entrou na sala, colocou sobre sua mesa a pasta de couro e
começou a aula escrevendo no quadro de giz sua definição: gênero é a flexão
que indica o sexo. E avançou para a formação dos gêneros das palavras,
colocando-nos a todos nas presas da prudência, da coerência e do nexo, ou, quem
sabe do indiscutível, incontestável, irrefutável. O mais incrível é que ela
falava dos gêneros das palavras que designam os animais, entre racionais e
irracionais, o que para alguns colegas meus era uma espécie de absurdo, uma
incidência antropológica revoltante. Hoje, quando me lembro disso, me ocorre um
verso de um dos poemas de Charles Baudelaire: Tenho recordações como quem
tem mil anos. E, a partir daí, me encaro no espelho como uma peça de museu,
ou um ser pré-histórico.
Todavia,
e apesar disso, nossa professora construía e desconstruía as razões e os
meandros da língua com uma simplicidade e uma clareza tranquilizadoras. Os
gêneros eram, como regra geral, dois: masculino e feminino. O primeiro admitia
antes de si o artigo o e o segundo o artigo a. Dona Judite não se
referia às terminações, às chamadas desinências que imitam canhestramente as
declinações latinas. O artigo que precedia a palavra, de imediato, indicava o
gênero e as terminações eram um fato da profusão e da fartura da língua, embora
houvessem certas coincidências entre o artigo e a terminação. Essa explicação
era lapidar e esclarecia o motivo de palavras terminadas em e, o,
ou i, por exemplo, poderem vir precedidas de um artigo ou de outro porque
não se trata de animais. Note-se a lógica: eram vegetais, minerais, pois
assim se referiam os reinos outros da Natureza. Ou diziam respeito às
características dos nomes próprios, das palavras que identificam as pessoas ou as
cidades e que, por definição, não eram comuns, sendo estes uma espécie
ordinária na profusão da língua e que mostravam um domínio bem mais vasto que
aqueles. Também havia, e há, os instrumentos, as designações da ciência médica,
das ciências exatas e de outras ciências que possuem palavras específicas para
comunicar os nomes de suas descobertas.
Os
gêneros das palavras, entretanto iam além, pois havia, e há, aquelas que formam
o gênero oposto acrescentando-se os qualificativos macho e fêmea. Eis aí o
gênero epiceno, aquelas palavras para que não basta o artigo para
identificá-las no feminino ou no masculino. Tudo se tornava menos simples,
apesar de bem definido. Não se podia dizer que existiria, por exemplo, o
anto, pois eram a anta e a anta macho, o artigo não mudava
nada, ou o tatu e o tatu fêmea, pois os neologismos não soavam
bem nem era aplicáveis. Então, vinha a seguir o gênero comum-de-dois que
se diferencia apenas pelos artigos o e a que as antecedem:
estudante era, e é, uma delas. Presidente também. Depois o gênero
sobrecomum, que designam sem diferenças o masculino e o feminino, apesar
de se conservar o artigo o ou a. Carrasco é um exemplo. Por essa
via, e desde o momento em que Dona Judite escrevia aquela definição no quadro
de giz, se enquadravam todas as palavras na flexão que se desdobrava em suas
particularidades. A Gramática não era somente uma via de documentação do
funcionamento da língua, nesse caso específico, era, também, um dom, um dote
que tornava a comunicação e a expressão entre indivíduos, pessoas, animais
racionais, através da fala e da escrita, mais clara e inequívoca.
Mas
havia um mistério: qual seria o gênero das palavras que não cabiam nas
proposições da flexão, que mesmo antecedidas, convenientemente, pelos artigos
não as fazia caber em nenhum deles? Ou que mesmo o artigo não fazia nenhuma
diferença quanto a indicação do gênero, porque ele poderia ser definido para
além, com outras palavras, como nos gêneros epiceno e no sobrecomum
em que masculino ou feminino causam uma enorme confusão. Dona Judite abria a
possibilidade investigativa de nossa língua possuir uma flexão de gênero que
não indicava o sexo, aquela que impunha uma regra democrática e incluía uma
vasta denominação de milhares de seres, objetos e abstrações, sem
especificidade. A exemplo da palavra carrasco, há também vítima, testemunha
e tantas outras que identificam esse viés. Uma possibilidade investigativa que
se colocava daí nos levava ao gênero neutro, uma flexão intolerável que
desacata a tantos que querem submeter validações discricionárias às palavras e
que desperdiçam uma criatividade inusitada. Porque sabemos, desde o início, que
não existem apenas dois gêneros, sejam quais forem, e também sabemos que não se
trata de uma flexão que indica efetivamente o sexo. Ora, gênero, atualmente, pode
indicar pontos de vista ou ângulos de posicionamento que só confirmam a
necessidade mórbida de etiquetar, ou de excluir, expressada por tantos agentes
que se utilizam do mau exercício da língua para atender a certas transposições
ideológicas, políticas e escatológicas. E esses pontos de vista e
posicionamentos são o lado podre pelo qual a língua não pode ser
responsabilizada nem ser usada como justificativa. Pessoas e grupos insistem em
serem reconhecidos (olha aí o neutro plural!) por acepções de gênero que
implicam associá-los a guetos, atitudes e comportamentos bem particulares ou
que pretendem sobrepor diferenças conceptualmente dominantes, mas
relativas, uma vez que se discriminam, desconstruindo os princípios de
igualdade. Ordinariamente, diferença não pode ser confundida com desigualdade e
igualdade não pode ser legitimada através de parcerias e associações viciadas ou
doentias.
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