M U L H E
R E S
Eduardo
Galeano
Em tempos obscuros e de incompreensível (?) retrocesso social
e político, em grande parte do mundo, um toque literário e libertário do
escritor uruguaio Eduardo Galeano pode fazer a diferença na reflexão
diária de muitos leitores. Para tanto escolhi três textos (em português e em
espanhol), do seu magnífico livro Mulheres (L&PM, 1997), traduzidos
por de Eric Nepomuceno: Pássaros Proibidos (Pájaros Prohibidos); A outra
avó (La abuela) e A cultura do terror (La cultura del terror).
PÁSSAROS
PROIBIDOS
Eduardo
Galeano
tradução
Eric Nepomuceno
Nos tempos da ditadura militar,
os presos políticos uruguaios não podem falar sem licença, assoviar, sorrir,
cantar, caminhar rápido nem cumprimentar outro preso. Tampouco podem desenhar
nem receber desenhos de mulheres grávidas, casais, borboletas, estrelas ou
pássaros.
Didaskó Pérez, professor,
torturado e preso por ter idéias ideológicas, recebe num domingo a visita de
sua filha Milay, de cinco anos. A filha traz para ele um desenho de pássaros.
Os censores o rasgam na entrada da cadeia.
No domingo seguinte, Milay traz
para o pai um desenho de árvores. As árvores não estão proibidas, e o desenho
passa. Didaskó elogia a obra e pergunta à filha o que são os pequenos círculos
coloridos que aparecem nas copas das árvores, muito pequenos círculos entre a
ramagem:
– São laranjas? Que frutas são?
A menina o faz calar:
– Shhhh.
E em tom de segredo explica:
– Bobo. Não está vendo que são olhos? Os olhos dos pássaros que eu trouxe
escondidos para você.
PÁJAROS
PROHIBIDOS
Eduardo
Galeano
Los presos políticos uruguayos no
pueden hablar sin permiso, silbar, sonreír, cantar, caminar rápido ni saludar a
otro preso. Tampoco pueden dibujar ni recibir dibujos de mujeres embarazadas,
parejas, mariposas, estrellas ni pájaros.
Didaskó Pérez, maestro de
escuela, torturado y preso por tener ideas ideológicas, recibe un domingo la
visita de su hija Milay, de cinco años. La hija le trae un dibujo de pájaros.
Los censores se lo rompen a la entrada de la cárcel.
Al domingo siguiente, Milay le
trae un dibujo de árboles. Los árboles no están prohibidos, y el dibujo pasa.
Didaskó le elogia la obra y le pregunta por los circulitos de colores que
aparecen en las copas de los árboles, muchos pequeños círculos entre las ramas:
— ¿Son naranjas? ¿Qué frutas
son?
La niña lo hace callar:
— Ssshhhh.
Y en secreto le explica:
— Bobo. ¿No ves que son ojos?
Los ojos de los pájaros que te traje a escondidas.
A OUTRA
AVÓ
Eduardo
Galeano
tradução
Eric Nepomuceno
A avó de Bertha Jensen morreu
amaldiçoando.
Ela tinha vivido a vida inteira
na ponta dos pés, como se pedisse perdão por incomodar, consagrada ao serviço
do marido e à sua prole de cinco filhos, esposa exemplar, mãe abnegada,
silencioso exemplo de virtude: jamais uma queixa saíra de seus lábios, e muito
menos um palavrão.
Quando a doença derrubou-a,
chamou o marido, sentou-o na frente da cama, e começou. Ninguém suspeitava que
ela conhecesse aquele vocabulário de marinheiro bêbado. A agonia foi longa.
Durante mais de um mês, a avó, da cama, vomitou um incessante jorro de insultos
e blasfêmias baixíssimas. Até a sua voz mudou. Ela, que nunca tinha fumado nem
bebido outra coisa além de água ou leite, xingava com vozinha rouca. E assim,
xingando, morreu; e foi um alívio geral na família e na vizinhança.
Morreu onde havia nascido, na
aldeia de Dragor, na frente do mar, na Dinamarca. Chamava-se Inge. Tinha uma
linda cara de cigana. Gostava de vestir-se de vermelho e de navegar ao sol.
LA ABUELA
Eduardo
Galeano
La abuela de Bertha Jensen murió
maldiciendo.
Ella había vivido toda su vida en
puntas de pie, como pidiendo perdón por molestar, consagrada al servicio de su
marido y de su prole de cinco hijos, esposa ejemplar, madre abnegada,
silencioso ejemplo de virtud: jamás una queja había salido de sus labios, ni
mucho menos una palabrota.
Cuando la enfermedad la derribó,
llamó al marido, lo sentó ante la cama y empezó. Nadie sospechaba que ella
conocía aquel vocabulario de marinero borracho. La agonía fue larga. Durante
más de un mes, la abuela vomitó desde la cama un incesante chorro de insultos y
blasfemias de los bajos fondos. Hasta la voz le había cambiado. Ella, que nunca
había fumado ni bebido nada que no fuera agua o leche, puteaba con voz
ronquita. Y así, puteando, murió; y hubo un alivio general en la familia y en
el vecindario.
Murió donde había nacido, en el
pueblo de Dragor, frente a la mar, en Dinamarca. Se llamaba Inge. Tenía una
linda cara de gitana. Le gustaba vestir de rojo y navegar al sol.
A CULTURA
DO TERROR
Eduardo
Galeano
tradução
Eric Nopomuceno
Pedro Algorta, advogado,
mostrou-me o gordo expediente do assassinato de duas mulheres. O crime duplo tinha
sido à faca, no final de 1982, num subúrbio de Montevidéu.
A acusada, Alma Di Agosto, tinha
confessado. Estava presa fazia mais de um ano; e parecia condenada a apodrecer
no cárcere o resto da vida.
Seguindo o costume, os policiais tinham violado e torturado a
mulher. Depois de um mês de contínuas surras, tinham arrancado de Alma várias
confissões. As confissões não eram muito parecidas entre si, como se ela
tivesse cometido o mesmo assassinato de maneiras muito diferentes. Em cada
confissão havia personagens diferentes, pitorescos fantasmas sem nome ou
domicílio, porque a máquina de dar choques converte qualquer um em fecundo
romancista; e em todos os casos a autora demonstrava ter a agilidade de uma
atleta olímpica, os músculos de uma forçuda de parque de diversões e a destreza
de uma matadora profissional. Mas o que mais surpreendia era a riqueza de
detalhes: em cada confissão, a acusada descrevia com precisão milimétrica
roupas, gestos, cenários, situações, objetos...
Alma Di Agosto era cega.
Seus vizinhos, que a conheciam e
gostavam dela, estavam convencidos de que ela era culpada:
– Por quê? – perguntou o
advogado.
– Porque os jornais dizem.
– Mas os jornais mentem –
disse o advogado.
– Mas o rádio também diz –
explicaram os vizinhos. – E a televisão!
LA
CULTURA DEL TERROR
Eduardo
Galeano
Pedro Algorta, abogado, me mostró
el gordo expediente del asesinato de dos mujeres. El doble crimen había sido a cuchillo,
a fines de 1982, en un suburbio de Montevideo.
La acusada, Alma Di Agosto, había
confesado. Llevaba presa más de un ańo; y parecía condenada a pudrirse de por
vida en la cárcel. Según es costumbre, los policías la habían violado y la
habían torturado. Al cabo de un mes de continuas palizas, le habían arrancado
varias confesiones. Las confesiones de Alma Di Agosto no se parecían mucho
entre sí, como si ella hubiera cometido el mismo asesinato de muy diversas
maneras. En cada confesión había personajes diferentes, pintorescos fantasmas
sin nombre ni domicilio, porque la picana eléctrica convierte a cualquiera em fecundo
novelista; y en todos los casos la autora demostraba tener la agilidad de una
atleta olímpica, los músculos de una fuerzuda de feria y la destreza de una matadora
profesional. Pero lo que más sorprendía era el lujo de detalles: en cada
confesión, la acusada describía con precisión milimétrica ropas, gestos,
escenarios, situaciones, objetos...
Alma Di Agosto era ciega.
Sus vecinos, que la conocían y la
querían, estaban convencidos de que ella era culpable:
– Por qué? – preguntó el
abogado.
– Porque lo dicen los diarios.
– Pero los diarios mienten
– dijo el abogado.
– Es que también lo dice la
radio – explicaron los vecinos. – Y la tele!
*
Ilustrações de Joba Tridente.2019
Eduardo Hughes Galeano (Montevidéu-Uruguai: 03.09.1940
- 13.04.2015): jornalista e escritor uruguaio, cujas obras fundem ficção,
jornalismo, política e história. Galeano foi editor do semanário Marcha, que tinha colabores ilustres como
Mario Vargas Lhosa e Mario Benedetti, do diário Época, da revista Crisis.
Entre os anos 1973 e 1985, viveu exilado na Argentina e na Espanha. Na trilha
do seu célebre livro As Veias Abertas da
América Latina (1971), seguiram obra notáveis como a trilogia (da História
das Américas) Memórias do Fogo: Os Nascimentos (1982), As Caras e as Máscaras (1984) e O Século do Vento (1986); Dias e Noites de Amor e Guerra (1975),
ganhador do Prêmio Casa de Las Américas
de 1978; O Livro dos Abraços (1989); Mulheres (1997); Espelhos – Uma História Quase Universal (2008); Os Filhos dos Dia (2012). Além do Casa
de Las Américas, Eduardo Galeano recebeu o prêmio Aloa (Dinamarca, 1993) e American
Book Award (Washington University - EUA, 1989), entre outros. Fontes:
Wikipédia e Info-Escola. Para saber mais: Wikipédia: Eduardo Galeano; Carta
Maior: Eduardo
Galeano – O Líder dos Indignados; Revista GIZ: O adeus a Eduardo Galeano; Opera
MUndi: Livros
Essenciais para entender Eduardo Galeano; documentário El siglo del
viento: Foro
RebeldeMule Na web há farto material sobre Eduardo Galeano.
Milton Eric Nepomuceno
(Rio de Janeiro-RJ: 1948) é jornalista e premiado escritor e tradutor
brasileiro. Escreveu para o Jornal da Tarde, Veja e revista Crisis.
Publica artigos na Revista 247 e Cult. Traduziu Jorge Luis Borges, Julio
Cortázar, Gabriel Garcia Marques, Eduardo Galeano. Eric Nepomuceno é autor
de Memórias de um setembro na praça (1979); Quarenta dólares e outras
histórias (1987); Hemingway na Espanha (1991); Coisas do Mundo
(1994); A palavra nunca (1997); Quarta-feira (1998); O
Massacre (2008); Bangladesh, talvez e outras histórias (2018). Para
saber mais: Cândido: Eric
Nepomuceno - A paisagem por dentro.
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