Na volta do trabalho para casa, a pé, já e sempre em companhia do meu filho de 9 anos, passamos pelo grande muro lateral do que foi, em áureas outroras, uma tradicional indústria cervejeira, a Companhia Cervejaria Paulista, cujas instalações servem hoje de um centro cultural, o Espaço Cultural Kaiser.
Em
certo ponto do extenso muro, há uma reentrância, um nicho quadrado, que
se estende do rés da calçada a um metro, um metro e meio de altura, por
mesmas medidas aproximadas de largura e profundidade; um buraco
quadrado, enfim.
Desde
os meus tempos de menino - talvez ele tenha mesmo sido feito com esse
propósito -, esse nicho faz a função de uma pequena capela, um oratório.
Ali, transeuntes anônimos depositam imagens religiosas, oferendas e
acendem velas.
O
cenário da pequena orada muda a cada dia. Ora velas brancas, ora
vermelhas, ora pretas. Igualmente, se alternam e se revezam, e muitas
vezes convivem, imagens de diferentes designações religiosas.
Dentre
os santos católicos, os mais recorrentes são Nossa Senhora Aparecida e
São Jorge (que, na umbanda, é Ogum) - talvez corintianos pedindo pela
vitória do Timão.
Dentre
os da umbanda, os campeões de audiência são Iemanjá e uma figurinha que
tive que pesquisar para saber quem era, um homenzinho de pele negra e
vestido como os antigos malandros cariocas - calças, terno e chapéu
brancos, camisa vermelha, sapato bicolor. Descobri que é o Zé Pilintra,
um espírito de luz da umbanda, do bem, um espírito humilde, patrono dos
bares, rei da vida noturna, boêmio e apaixonado por jogos, disputas e
putas.
Outra
imagem, menos recorrente, mas que volta e meia aparece por lá, é a de
uma mulher-demônio, vestida apenas com minúscula tanga, corpão
acinturado, apetitoso, tipo violão, uns belos duns peitões, chifrinhos
na testa e rabo pontudo. Não consegui descobrir com exatidão a sua
identidade. Talvez uma exu-mulher; mas, mais certamente, trata-se de uma
entidade ligada não à umbanda, sim ao satanismo, ou à magia negra.
Gostosa, a capetinha. Se não fosse pelo provável cheiro de enxofre, eu
botava uma camisinha de amianto no pau, levantava-lhe o rabo e
passava-lhe a vara! Fácil, fácil.
De
onde se infere que tal nicho é espaço dos mais ecumênicos e
democráticos. Nele se acendem, literalmente, uma vela para deus e outra
para o diabo.
Hoje,
ao por lá passarmos, a profusão além do normal de velas acesas e de
fumaça chamou a atenção do meu filho. Havia até dois maços inteiros de
cigarro queimando em oferta a alguma entidade.
Meu filho comentou : "ah, pai, essas igrejas ficam queimando esse monte de velas e só vai piorando o efeito estufa."
Pãããããããta que o pariu!!!! Genial, meu filho - eu disse -, genial!!!
Nem mesmo eu jamais pensara nisso.
Muito
se fala - e com razão - das emissões dos veículos automotivos movidos a
derivados de petróleo, das indústrias, das queimadas e mesmo dos grande
rebanhos bovinos cuja flatulência joga toneladas e mais toneladas do
gás metano para a atmosfera. Mas, da atividade religiosa como fonte
emissora de gás carbônico, nunca ninguém falou.
Só meu filho! Genial, meu filho, genial! - repeti a ele.
Imaginem
santuários católicos como os de Aparecida do Norte, de Fátima, ou de
Lourdes : são verdadeiras chaminés de devoção. De fazer inveja a
qualquer indústria carvoeira da China. Imaginem uma cidade sincrética
como Salvador, por exemplo, com suas centenas (talvez até chegando à
casa do milhar) de igrejas católicas e terreiros de umbanda e candomblé
em plena atividade. De fazer inveja a uma rave de fãs do Bob Marley.
Imaginem todos os templos indianos, budistas e outros que tais
espalhados por todo o planeta, queimando incenso dia e noite. De dar
inveja às "queimadas do Bolsonaro".
Genial,
meu filho, genial! Fiquei tão alegre com a astúcia e, sobretudo, com
este indício, ainda que leve, com este broto, ainda que incipiente, de
um futuro ateísmo de meu rebento, ou, ao menos, de uma visão dele nada
mágica e santificada das igrejas, que entramos numa sorveteria e
comprei-lhe um belo dum sorvetão, uma vaca preta.
Acontece
que meus raros momentos de alegria e deleite duram pouco. Facilmente se
deixam toldar. E a culpa é mesmo minha. Não nasci com uma pulga atrás
da orelha : nasci com uma pulga no meu DNA. Vivo sabotando a mim mesmo
com dúvidas, dilemas, questionamentos e outros entretantos.
Mal
a euforia deflagrada pela marretada do meu filho na igreja tinha
atingido seu pico, ocorreu-me : mas que história é essa de preocupação
com o efeito estufa e outras questões ambientais?
Se,
por um lado, ao que tudo indica, meu filho não irá se tornar em mais
uma ovelhinha de Deus, será que, por outro, se tornará em um desses
ecochatos?
Será
que terei o prazer e a realização de não vê-lo um carola, um comedor de
hóstia, um pagador de dízimo, só para ter o desgosto de vê-lo um
afiliado do Greenpeace? De vê-lo um militante com a fé cega de
que salvará o planeta vendendo camisetas, bonés e broches estampados com
pandas e micos-leões-dourados?
Espanei
a pulga da dúvida para longe. Deixei-a lá, incubada, feito vírus da
herpes. Concentrei-me apenas na alegria do meu filho a tomar o sorvete e
a tagarelar sobre o efeito estufa, sobre os ursos polares e as
foquinhas que estão morrendo de calor, e disse para mim mesmo : um
problema de cada vez, meu velho, um problema de cada vez.
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