| Wagner Williams Ávlis*
Um ponto introdutório
Indo direto ao ponto, toda narrativa ficcional possui uma
estrutura a priori, conforme pode ser
vista no gráfico abaixo.
A
narrativa possui uma previsível linearidade: seu ponto de partida I tende a F, e, no entremeio, ocorrem as perturbações que dificultam I chegar a F – são as reviravoltas. Traduzindo isso, nós, leitores, antes
mesmo de ler uma HQ de super-herói, sabemos, no fim, o personagem vencerá a
adversidade, quer sobrevivendo, quer morrendo, por isso o que importa a nós é o
entremeio, é o que acontece enquanto I
não chegar a F, e é nisso com que
devem se ocupar os roteiristas e os desenhistas. Apesar de a estrutura linear
duma narrativa obedecer a uma lógica de peças marcadas, isto é, o herói
vencendo o vilão no final, restabelecendo o equilíbrio perturbado – e isso
desde os tempos mais remotos, quando a narrativa era oral e hereditária em
torno de fogueiras – nunca deixou de haver leitores (ou ouvintes), de gente
curiosa para saber “o que acontece” ou “como será o final”, e o fato de um
leitor de quadrinhos saber que em qualquer encadernado os X-Men do Brian
Michael Bendis (ou quaisquer personagens Marvel/DC) vencerão as ameaças
impostas, não anula seu interesse pela leitura. Resulta daí que o que vale não
é a história em si, mas o como, a
forma como ela é contada e conduzida, a forma,
esse procedimento que faz com que um conteúdo se diferencie do comum e se
eleve à condição de arte, como preconizaram Roman Jakobson e os formalistas
russos[1],
é nela com que devem se ocupar os bons roteiristas e, no caso dos quadrinhos,
os bons desenhistas também, posto que a imagem é ainda a forma da narrativa.
Quero ainda ater-me à reflexão sobre a estrutura narrativa.
Se, a priori, a estrutura é linear com I tendendo a F (o herói
vencendo o vilão), a posteriori a
estrutura se torna dialética por
causa de R (as reviravoltas); temos
portanto dois planos estruturais paralelos, simultâneos e inseparáveis, um
linear e outro dialético D
(desenvolvimento) e R (reviravoltas),
de modo que a tensão entre os dois é o que dá a dinâmica da leitura. É através
desse último plano, o dialético, que podemos (aqui incluo leitores, críticos,
historiadores, artistas) fazer juízo de valor, se a história é interessante ou
não, bem-feita ou mal elaborada, memorável ou esquecível, e também é dele que
extraímos o sentido de para quê ou por
que se lê o que estamos lendo, já que, a
priori, já sabemos como é o final com nossos super-heróis[2];
saber o final é uma certeza e não um sentido, pois o sentido não está no que é
posto, e sim no que vai se pondo, não é no já,
e sim no ainda não. Além da
criatividade do roteirista, muito desse sentido está no intrincado jogo de
oposições entre herói e vilão, bem e mal, planos e acasos; são grandezas
diametralmente opostas e que, bastando retirar uma delas, o sentido da outra se
perde. Na lógica da narrativa, o herói depende do vilão para tornar-se quem ele
é, e vice-versa; o bem é mais ensejado à medida que o mal recrudescer, o acaso
se mostra mais poderoso quanto mais um plano falhar. Numa narrativa, se retirarmos
os vilões não há sentido para se ter um herói; se retirarmos os heróis não há
sentido para se ter vilões, o bem sem o mal, o mal sem o bem se torna absurdo e
sem razão de ser, e o resultado prático disso seria um épico, um conto, um
romance sem sentido, uma narrativa inenarrável, não haveria motivos para se ter
uma revista em quadrinhos de heróis, consequentemente esgotando a fonte de
receita das editoras. E ponto. O bem necessário é ter o mal necessário, eis uma
verdade logicista e universal a ponto de estar aplicada a praticamente todas as
áreas de nossa vida, aplicada, até, dentro de nosso plano imunológico e a
constante necessidade de aperfeiçoá-lo por meio das lutas entre bactérias e
anticorpos, substâncias e antígenos; é ainda a lógica de todas as religiões e
crenças, de Deus e do Diabo em suas eternas disputas antropocêntricas por uma
nova ordem e pela posse das almas[3],
é, em suma, um dos fundamentos do sentido da existência.
Em Batman Ano Zero (2013)[4], a partir da informação de que o
Cavaleiro das Trevas enfrentará Capuz Vermelho, Dr. Morte, Charada,
independente do como a saga se dará,
sabemos de antemão que Batman vencerá os três oponentes. Esta crítica analítica
buscará se debruçar não só na parte que nos interessa – o desenvolvimento da
saga, o como – mas também em seu ponto zero, o antes do como, isto é, o o quê.
O ponto da análise
Scott Snyder na escrita e Greg
Capullo nos desenhos buscaram trabalhar, por todos os ângulos, uma
metalinguagem da ideia de “zero” como início. Entre os números naturais está o
zero que os precede, ele é o ponto de origem do conjunto e da sequência
numérica, desse modo, aplicado ao título do conto de Batman, o “zero” se torna
um descritor de “uma origem antes da origem”, “um começar tudo do zero”, em
termos mais precisos, Ano Zero é a história de Bruce Wayne antes de querer ser Batman, algo que remete,
sem estar ligado, ao Ano Um (1987), de
Frank Miller com David Mazzucchelli, este, o primeiro ano de vigilantismo do
Homem-Morcego em Gotham City. Essa inferência desmente uma resenha segundo a
qual a saga não é uma reinvenção da origem do Batman e sim uma tentativa de
inclui-lo ao universo dos Novos 52[5]; a obra
é sim um conto de uma nova origem para o super-herói. A metalinguagem trabalhada
com a ideia de “zero” como início é dada
Ø pelo título que sugere origem;
Ø pelas linhas temporais da
narrativa (6 no total) que estão sempre se reportando ao “antes” (o passado);
Ø por elementos da origem
canônica do Batman, como a tragédia com os pais, a claustrofobia, o trauma com
morcegos, os anos de sumiço e treinamento, os disfarces antes do traje
morcegoide, o uniforme indefinido, as luvas roxas[6]
no lugar das manoplas dentadas no início da carreira;
Ø pelo relacionamento amoroso
com Julie Madison, nas primeiras edições de Batman nos anos 1930, a antiga
noiva[7]
de Bruce Wayne;
Ø por grande parte da história se passar pelo
dia, um elemento narrativo que durante as primeiras aventuras do super-herói
era algo comum[8].
Ø Pela rememoração da capa de
Detective Comics # 27 – primeira aparição do Batman (pp.96-97).
Para
esse retorno ao passado (ou melhor, para esse retorno aos passados) o
detalhismo gráfico de Greg Capullo é imprescindível, de forma que seu traçado
meticuloso não só é a forma da narrativa, bem como é o conteúdo; mais do que
desenhar o que está sendo narrado, Capullo dá forma a narrativas sequenciadas
sem balão ou caixa de texto, as chamadas quadrículas ágrafas, faz pequenos
encadeamentos (enjambements) com
quadrículas de flashbacks e o tempo em curso, ligando passado e presente numa
só narrativa gráfica, isso tudo com certa simetria, porém em tamanhos variados
de painel. Um de seus mais chamativos recursos são os quadros únicos, ágrafos
também, que falam pelo desenho agigantado numa só página. O que o desenhista
quer fazer significar com todas essas técnicas é uma certa hierarquia imagética
nas recordações de Bruce Wayne ou nas do foco narrativo, e isso é digno de
reflexão; se pensarmos no real, quando sonhamos ou nos recordamos, as cenas de
nossa memória não se organizam de forma simétrica, homogênea, uniforme; elas
são dispostas por uma ordem gradativa, onde uma cena pode surgir mais rápida,
outra demorada, uma mais curta ou desfocada, uma outra mais ampla ou nítida.
Nossas reminiscências da consciência funcionam como enquadramentos de cena, as
mais marcantes são determinadas por coisas como extensão, duração, enfoque,
iluminação, ou seja, por recursos da pintura, da fotografia, do cinema, que,
por sua vez, nos causam os maiores prazeres, pavores, traumas, saudades. É isso
que Greg Capullo faz em suas quadrículas, manipulando o nanquim de forma
gradativa painel a painel como quem manipula as cenas de recordações do jovem
Bruce. Logo, quanto maior for o painel, maior é a emoção vivida no passado – e
sentida no presente, no ato de recordar-se –, quanto menor for o painel, mais
rápida ou minúscula é a emoção evocada pela cena; quando as quadrículas são
ágrafas é porque a carga emotiva da lembrança se concentrou nos gestos ou na
introspecção e não no discurso; quando há quadrículas de tamanho uniforme é
porque as emoções ali foram vividas e sentidas “por igual” – uma técnica
brilhante pouco vista em HQs mainstream
hoje em dia[9]. Aliada
a isso está a luminária e termal colorização de FCO Plascencia e Dave McCaig.
Intensa iluminação, muito enfoque, cores quentes ou quase total ofuscação em
preto dos desenhos, dos cenários, dos painéis, dão a ideia de que cada linha temporal,
das recordações ao tempo em curso, são fluxos
vivos da consciência.
Para essa proposta da metalinguagem trabalhada
com a ideia do “zero” como início, a seguir, uma relação dos pontos
positivos/negativos do ponto de vista composicional da trama e das imagens. As
mais significativas serão retomadas mais à frente para melhor dissertá-las.
Positivos
|
Negativos
|
“Ano zero” como início, mas também como processo e
culminância
|
Verborragia
e delongamento do arco (duração de um
ano nos EUA)
|
Enfoque nos
treinos preparatórios de Bruce Wayne
|
Nenhum aprofundamento nos “anos perdidos” de Bruce Wayne
|
Espacialidade
dinâmica (exploração das ambiências de Gotham City)
|
Cenas sem sentido, inverossímeis
|
Abordagem
do Batman “explosivo”, visceral, detetivesco, aventureiro, audacioso e vulnerável
dos anos 1980
|
Não haver um Batman inexperiente que cometa erros em início de carreira
|
Explicações
mais convincentes dos motivos da moeda gigante (na batcaverna) e do batsinal
|
Excesso e desequilíbrio de flashbacks
|
Motivações indefinidas e confusas nos planos do Charada
|
|
Furos de roteiro/pontas soltas
|
⎲ Enfoque nos treinos preparatórios de Bruce Wayne/nenhum
aprofundamento nos “anos perdidos” de Bruce Wayne
Na gibigrafia do Cavaleiro das Trevas as edições que
trouxeram suas origens não focaram o processo de treinamento do herói, o que,
do ponto de vista roteirístico, é uma grave lacuna. Costumo chamar os anos
ausentes de Bruce Wayne de Gotham City – em função da sua preparação pré-Batman
– de “anos perdidos”, uma vacância ainda pouco trabalhada pelos escritores e
algo cuja potencialidade literária é fecunda. Scott Snyder chegou a escalar esse
abismo, mas foram seus corroteiristas os responsáveis por descer um pouco mais.
James Tynion IV e Gregg Hurwitz compuseram contos para integrar o percurso
preparatório que o jovem Bruce Wayne trilhou em sua jornada do herói. No
encadernado Ano Zero há três contos
de James Tynion IV com esse fim: “Onde Diabo Ele Aprendeu a Dirigir?”, que se
passa no Brasil (Rio de Janeiro), “Aquela Vez...”, ambientada no Egito, “O
Fosso”, na Noruega. Já nas edições mensais de número zero da série Os Novos 52,
publicadas muito antes de Ano Zero, em
2012, edições essas de título Batman, O
Cavaleiro das Trevas, e Detective
Comics, os contos de treinamento são de Gregg Hurwitz; são eles “A Última
Lição”, que se passa no Himalaia, “A Longa Espera”, com o mordomo Alfred
Penniworth e o retorno de Bruce após seus anos sumidos, “Busca por Significado”,
que narra o emprego de técnicas investigativas por Bruce para chegar ao
assassino de seus pais. De outra monta, Scott Snyder ficou responsável pelo
pós-treinamento, recontando as peripécias do jovem Wayne já treinado de volta a
sua cidade natal, porém sem ainda uma identidade própria, “um vigilante sem
rosto”[10].
Esses contos do Snyder pós-treinamento, situados em Gotham City, um deles
publicado na edição zero da revista Batman
(2012) nos Novos 52, também se interligam às linhas temporais da saga Ano Zero, são eles “Um Passado Novo em Folha”,
quando Bruce Wayne entra em contato pela primeira vez com a gangue do Capuz
Vermelho, “Amanhã” (esse de James Tynion IV), conto que mostra a estreia do
batsinal, as quatro partes de “Cidade Secreta”, o confronto com Capuz Vermelho,
as quatro partes de “Cidade Sombria”, confronto com Dr. Morte, mais as quatro
partes de “Cidade Selvagem”, confronto com Charada, sendo esses doze últimos
contos a centralidade do encadernado em questão. Organizando em esquema todos esses contos de origem, temos os dois
seguintes blocos:
Os “Anos Perdidos” – fase de treinamento preparatório de
Bruce Wayne ao redor do mundo
|
||
Contos
|
Equipe criativa
|
Revista publicada
|
“Onde Diabo Ele
Aprendeu a Dirigir?”
|
James Tynion
IV (roteiro) e Rafael Albuquerque (desenho)
|
Batman n° 21
(2013)
|
“Aquela Vez...”
|
James Tynion IV (roteiro) e Rafael Albuquerque (desenho)
|
Batman n° 22 (2013)
|
“O Fosso”
|
James Tynion
IV (roteiro) e Rafael Albuquerque (desenho)
|
Batman n° 23
(2013)
|
“A Última Lição”
|
Gregg Hurwitz (roteiro) e Tony S. Daniel (desenho)
|
Detective Comics n° 0 (2012)
|
“A Longa Espera”
|
James Tynion
IV e Henrik Jonsson (desenho)
|
Detective
Comics n° 0 (2012)
|
“Busca por
Significado”
|
Gregg Hurwitz (roteiro)
|
Batman, O Cavaleiro das Trevas nº 0 (2012)
|
Estreia do Vigilantismo – fase do pós-treinamento de Bruce Wayne
de volta à Gotham City
|
||
Contos
|
Equipe criativa
|
Revista publicada
|
“Um Passado Novo em
Folha”
|
Scott Snyder
(roteiro) e Greg Capullo (desenho)
|
Batman n° 0
(2012)
|
“Amanhã”
|
James Tynion IV (roteiro) e Andy Clarke (desenho)
|
Batman n° 0 (2012)
|
“Cidade Secreta”
I-IV
|
Scott Snyder
(roteiro) e Greg Capullo (desenho)
|
Batman n°
21-24 (2013)
|
“Cidade Sombria”
I-IV
|
Scott Snyder (roteiro) e Greg Capullo (desenho)
|
Batman n° 25-29 (2014)
|
“Cidade Selvagem”
I-IV
|
Scott Snyder
(roteiro) e Greg Capullo (desenho)
|
Batman n°
30-33 (2014)
|
Embora
tenha havido um esforço das equipes criativas para perfilar os anos perdidos do
nobre gotamita, não tivemos um aprofundamento dessa intenção, até porque a
noção de unidade entre os contos se perdeu durante o reboot, sendo eles, aqui e
acolá, publicados de modo esparso por entre títulos e números. A edição
encadernada da editora Panini não ajudou, pois não anexou ao volume grande
parte dos contos dos dois blocos[11].
De modo pessoal, elegi como os melhores “Aquela Vez...”, “O Fosso” e “A Última
Lição”, os três muito superiores a toda a saga de Snyder, mas que, por questão
de espaço, não poderei aqui argumentar.
"Aquela Vez", um dos melhores contos dos anos perdidos de Bruce Wayne. |
⎲ Excesso e desequilíbrio de
flashbacks
Como antecipara acima, em toda a saga batmesca há 6 linhas
temporais da narrativa, algo, a um só tempo, atrapalhado de se ler e absurdo de
se trabalhar. Escritores nobéis-eruditos como José Saramago, Mario Vargas Llosa,
contistas multicomplexos como Jorge Luis Borges sequer ousaram fazer tal coisa,
experimentando, no máximo, três linhas temporais; a razão de não fazer é uma
proporção física: quanto maior o espaço (da narrativa), menor há de ser o tempo
(da cronologia); em outros termos, para balancear o ritmo e a carga de
informações duma longa leitura em prosa, a narrativa, sendo extensa, é melhor
compensada com um menor foco narrativo. Então, se a trama for longa, o escritor
põe um ou dois narradores; pôr seis é dar passos maiores do que as pernas,
risco de atrapalho na certa. Em Ano Zero
Scott Snyder intercala seis linhas temporais que cortam a narrativa principal,
que ora se cruzam, ora se dispersam e no fim retumbam em confusão. Para um arco
que compreendeu um ano de publicação, sendo cada parte separada por meses, o
leitor das revistas mensais se perdeu nessas linhas temporais; nesse sentido, o
volume capa-dura ajudou a dar melhor visibilidade a essas linhas por compilar
as doze edições. Mesmo assim a confusão é inevitável, porquanto o próprio
roteirista, em seu manejo como escritor, não consegue equilibrar as
cronologias. Para atingir esse intento, teria sido melhor se tivesse optado
pela técnica de linhas temporais de Kurt Busiek em seu premiado Marvels (1994), onde o mesmo foco
narrativo – um narrador-personagem, o fotógrafo Phil Sheldon – descreve ao
passo que envelhece em quatro linhas de tempo no passado, do começo da 2ª
Guerra Mundial à contracultura dos anos 1970, repousando em seu presente (o começo
da década de 1970), e um segundo foco narrativo, apenas introdutório, outro
narrador-personagem – o Tocha Humana originário, Jim Hammond – rememora suas
experiências de origem em um pretérito anterior ao pretérito narrado pelo
fotógrafo Phil Sheldon. Poder-se-ia ainda ter usado a técnica narrativa de Alan
Moore na premiada Piada Mortal (1988),
a do “narrador onisciente múltiplo”, uma onisciência que se multiplica em
pequenos outros narradores, no caso de Piada
Mortal, dois narradores em linhas temporais distintas: o Coringa em
flashbacks e o olhar onisciente da trama, narrando o presente[12].
Usando no máximo duas linhas temporais ou dois narradores, Kurt Busiek e Alan
Moore, dentro de um certo minimalismo, obtiveram o equilíbrio perfeito ao
entrecruzar pretéritos e presentes.
Scott Snyder não logra êxito ao adotar seis linhas temporais,
quis abraçar o mundo com as mãos. Vejamos quais são elas e como ele as trabalha
na trama.
● 1ª linha temporal → o presente em curso – narrador
onisciente (pp.10-12, 124-134,
276-381).
Esse “presente” onde ocorre o núcleo da história de Ano Zero, isto é, o confronto com o
Charada, é na verdade um passado. Como Ano
Zero é uma história de origem e se foca no primeiro combate do detetive
antes mesmo de ser Batman, esse “presente em curso” da história se passa seis
anos antes de todas as histórias da fase Os Novos 52 estrear (pp.09 e 208). Ao
fim da trama, a linha temporal avança para “um mês depois” de todos os
acontecimentos narrados (p.373). Em termos técnicos, a saga começa in medias res[13];
em termos práticos, significa que a história começa pelo meio e não pelo
início. A confusão começa por aí.
● 2ª linha temporal → o passado antes dos eventos de Ano Zero – narrador
onisciente (pp.14-24, 27-29, 34-40,
43-54, 58-123, 160-179, 185-195, 198-206-215, 220-231, 235-271).
O marco inicial para os eventos centrais propriamente ditos
de Ano Zero é a inundação de Gotham
City engendrada por Edward Nigma, o Charada. Essa segunda linha temporal aqui –
“o passado antes dos eventos de Ano Zero”
– narra acontecimentos, conforme o narrador onisciente, “cinco meses antes” da
inundação (p.14), englobando os confrontos com Capuz Vermelho e Dr. Morte. Até
certo ponto dessa segunda linha temporal, os protagonistas da história não
sabem da autoria intelectual do Charada por trás dos acontecimentos.
● 3ª linha temporal → Memórias infantis de Bruce Wayne – narrador-protagonista
(pp.18, 25-26, 30, 33, 41-42, 55, 57, 183,
196-197, 231-233, 268-269, 271).
Cruzando
as duas linhas temporais anteriores em intercursos, as lembranças da infância
do jovem Bruce Wayne ora surgem a esmo, ora são encadeadas com cenas do
“presente em curso”, formando aí bonitos enjambements
que o desenhista Greg Capullo faz com maestria, sobretudo nas cenas da
inundação da cidade. Aliás, Capullo busca aí se diferenciar de David Mazzucchelli,
bem como de Frank Miller, substituindo a icônica cena mais noir das pérolas da sra. Martha Wayne esvoaçando em sangue e
pólvora no momento de seu assassinato por algo mais sacro: substitui por uma
circunferência em fogo e pólvora da pistola sobre sua cabeça em forma de
auréola, dando à Martha Wayne uma significação visual de mártir da cidade,
santa da família e semideia, por ser mãe de uma espécie de futuro deus a quem a
criança Bruce estava destinada a ser.
● 4ª linha temporal → Memórias juvenis de Bruce Wayne – narrador-protagonista
(pp.193, 274-275, 316-317, 322, 325, 347,
364-365, 377).
Basicamente essa linha de tempo cumpre a mesma função da
terceira. Serve também para explicar o romance com Julie Madison ainda no tempo
da faculdade.
● 5ª linha temporal → “Os anos perdidos” da fase de treinamento –narrador onisciente
neutro (contos “Onde Diabo
Ele Aprendeu a Dirigir?”, “Aquela Vez...”, “O Fosso”)
Essa
linha de tempo é intercalada com a saga principal e não possui efeito de
continuidade entre os contos que retratam alguns treinos de Bruce pelo mundo afora;
entretanto, esses contos pertencem ao universo dos “anos perdidos”, pois todos
se passam na época em que o jovem multimilionário está fora de Gotham City
preparando-se para ser um justiceiro. Snyder os intercala no intervalo entre o
fim de “Cidade Secreta” e o começo de “Cidade Sombria”, como forma de
intensificar o ritmo da leitura que se encaminha para maiores tensões no
“presente” em curso.
● 6ª linha temporal → Flashbacks diversos – narradores
onisciente neutro e protagonista (pp.158-159, 180, 207, 216-219, 378-380).
Em
alguns pontos da trama, três personagens tomam posse da narrativa por meio de
flashbacks, num total de quatro, que desembocam na trama principal. Dois deles pertencem
ao vilão Dr. Morte, que retrocedem no tempo sem ser conduzidos pela lembrança
do personagem, mas pelo olhar onisciente de um narrador (narrador onisciente
neutro); já os outros dois, um do Tenente Gordon e outro do Alfred, são
conduzidos por eles mesmos (narrador protagonista). Os quatro flashbacks em
apreço são os de
Ø Dr. Morte ──── alusão ao seu filho nos tempos de guerra, em 1946.
Ø
Tenente
Gordon ──── retomando uma recordação que Bruce recordara bem antes e na
qual ambos participaram.
Ø
Alfred
Penniworth ──── reimaginando o futuro de Bruce
Wayne com Julie Madison, caso tivesse optado por não ser um vigilante.
Sem delongas e sem me ater a minúcias, posso afirmar,
categoricamente, que as seis linhas temporais são mal distribuídas no decorrer
de toda a saga, num desequilíbrio que tem por efeitos a dispersão e a confusão
cronológicas; algumas cenas focalizadas dentro delas ficam, aliás, sem
explicações ou sentido, caracterizando pontas soltas no enredo. Era previsível
que Scott Snyder iria incorrer num erro desse, pois buscou combinar o
incombinável, o rearranjo de seis linhas temporais (com seus respectivos focos
narrativos) na trama durante um ano de arco mensal.
⎲ Espacialidade dinâmica
(exploração das ambiências de Gotham City)/abordagem do Batman “explosivo”,
visceral, detetivesco, aventureiro, audacioso e vulnerável dos anos 1980
A espacialidade dinâmica é um recurso narrativo que explora
vários espaços da ambiência duma trama, em cujo recurso fora o maior mestre Jim
Starling. Ano Zero explora esse
recurso muito bem. O zoneamento de toda a Gotham City é percorrido pelo
Cavaleiro das Trevas em suas múltiplas aventuras, dos subterrâneos aos ares de
Gotham, do cais ao centro e, como que num efeito hiperbólico, vimos surgir uma
Gotham City selvagem, um tipo de retorno à primitividade de Gotham – a Gotham
antes de ser cidade, a Gotham reiniciada de “zero” – depois de uma inundação em
larga escala perpetrada pelo Charada; essa cidade selvagem demanda outras
espacialidades dinâmicas circunscrita no centro da cidade até que tudo volte ao
seu estado normal. Na esteira dessa ambiciosa exploração do espaço está um
Batman menos comedido, menos disciplinado, muito mais audacioso, vulnerável,
que sangra muito, é ferido e que se vê, por diversas vezes, limitado diante de
gigantescas peripécias, não é pois o Batman “fodão” que veríamos na fase pós-Fim
do Jogo, de Geoff Johns e Jason Fabok na Liga da Justiça.
⎲ Cenas sem sentido,
inverossímeis, furos de roteiro/pontas soltas/ motivações indefinidas e
confusas nos planos do Charada
Buscar
o exagero é uma pretensão excessiva e me parece que esse tem sido o alvo
perseguido pelos roteiristas da moda. O problema é que exagerar para chamar a
atenção muitas vezes leva a chamar a atenção aos erros, pois o excesso leva a
falhas. Scott Snyder tropeça por esses percalços. Confiramos as cenas falhas na
trama.
Cena
|
Falha
|
Prelúdio: Batman,
na sua motocross, encontra pela primeira vez o menino Duke e o salva de ser
agredido.
|
Incoesão e ponta solta: O prelúdio é uma cena in
media res – é um episódio próximo do fim da história, com a Gotham City
em selva. Entretanto, quando, no fim do arco, a linha temporal encontra
normalmente as histórias que se passam na Gotham selvagem, Bruce Wayne, sem o
uniforme de Batman, conhece o menino Duke em outra situação: inconsciente e
hospedado na casa do garoto.
|
Primeira cena de
“Cidade Secreta”: Bruce, disfarçado de caminhoneiro, resgata reféns dentro de um caminhão-baú
cercado pela gangue do Capuz Vermelho.
|
Sem sentido e
absurdo: Bruce
arrisca acelerar o caminhão para furar o bloqueio da gangue, e, em vez de
seguir acelerando e ir embora (podendo também sair de ré suportando os
disparos), dispara um lançador para prender o caminhão em altas vigas e, de
cima delas, escorregar os reféns para o mar logo abaixo de onde estava a
gangue do Capuz, para em seguida serem socorridos pela guarda-costeira.
|
Cena do
dirigível: Bruce está disfarçado de Oswald Cobblepot (o Pinguim) para desbaratar
uma operação da gangue do Capuz Vermelho.
|
Furo: Não é explicado como Bruce
sabia da operação, como teve acesso ao dirigível e em que momento imobilizou
o verdadeiro Oswald Cobblepot.
|
Explosão de um depósito de uma das empresas Wayne:
Bruce é convidado para uma confraternização de boas-vindas, uma emboscada do
Capuz Vermelho, pois não há ninguém na festa e sim explosivos que são
detonados à distância
|
Inverossimilhança: Bruce é pego de surpresa pelas explosões em série, sendo
que a primeira delas é precisamente na sala onde entrara. Ele sobrevive e não
se queima.
|
Incêndio na
fábrica Ace: O tenente Gordon, junto com sua equipe, encurrala
Batman que, de costas, está sob a mira do tenente.
|
Absurdo: Batman consegue
tranquilamente virar-se à frente, e, fazendo movimento de saque no cinto,
dispara um taser contra Gordon sem
que esse, o tempo todo com a arma em punho, nada reaja.
|
“Acima do diâmetro eu caminho escondido à sombra do perímetro. Se olho
para baixo, enxergo o que enxerga à distância constante de alguns centímetros”
Resposta (do Batman): “É um piolho. ‘Acima do diâmetro e à sombra do perímetro
sugerem o número PI, que é igual ao perímetro de uma circunferência dividido
por seu diâmetro. E quem ‘enxerga’ é o olho. A resposta é um piolho, andando
por uma cabeça e colocando ovos...”
O
Canal O Vício afirmou que o Charada de Ano Zero
é a melhor abordagem já vista do mestre dos enigmas, visto, dessa vez, como uma
verdadeira ameaça. A meu ver, aqui, o Charada teve sim uma melhor atuação em
termos de extensão e influência em todo o arco, mas não chega a ser a melhor
atuação justamente pelas falhas apontadas. Continua sendo a melhor abordagem a
do Peter Milligan em Cavaleiro das Trevas, Cidade das Trevas, de 1990, em que
Edward Nigma resgata um ritual antigo duma sociedade secreta fundante de Gotham
City[14]
(em 1793 chamada “Gothame”), manipula todos os ritos de iniciação, forçando
Batman a passar por todos eles para apenas, no fim das contas, imolar o
Homem-Morcego como uma vítima de expiação.
Segue que Ano Zero é um grande blockbuster dos quadrinhos, rendendo até action figures da franquia, e como todo blockbuster,
há mais investimento em pontos visuais e de ação do que propriamente em qualidade
de roteiro, um marco zero para o mundo dos Novos 52, um ponto zero se comparado
a toda gibigrafia do Cavaleiro das Trevas.
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WAGNER
WILLIAMS ÁVLIS – crítico literário da Academia Maceioense de Letras (reg.
O.N.E. nº 243),
professor de Língua Portuguesa, articulista, historiador do Homem-Morcego.
[1]
JAKOBSON, Roman. Apud. SOUZA, Roberto Acízelo de. Teoria da Literatura – série Princípios, 4ª ed. Cap. IV: “A
literariedade como objeto da teoria da literatura”. São Paulo: ed. Ática, p.45.
[2]
Nos quadrinhos mainstream essa
certeza é tão exata que, mesmo vendo um super-herói famoso morrer na trama, sabemos
que ele efetivamente não morreu ou, se sim, ressuscitará de alguma forma.
[3]
A visão dual-maniqueísta de um cristianismo mais coloquial, acessível, diluído
– portanto mais difundida – sobre a disputa entre Deus e o Diabo, onde o homem
é um fantoche, os dois entes são os ventríloquos e o espírito humano é para
ambos mais valioso do que o universo, do que as miríades angelicais, do que a
própria ordem da existência física ou etérea, tem sido alvo de irrefutáveis
críticas ateias, filosóficas. O movimento neoateu, que tem por baluartes Richard
Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris, Christopher Hitchens e Ayaan Hirsi Ali,
difunde uma analogia com a dualidade entre herói e vilão dos quadrinhos como
ironia à crença no Deus bíblico. Segundo ele, Javé (ou Jeová) e Satanás, assim
concebidos por esse cristianismo popular, são personagens criados pelo homem
para manter toda a superestrutura de domínio, propriedade, medo e monopólio da
fé sobre seus fiéis e em favor das instituições jurídicas cristãs; sem Satanás
o homem não temeria os infernos e sem Deus o homem não seria bom, sem Satanás não
haveria a quem responsabilizar pelos males no mundo, e sem Deus não haveria
esperança de remissão ou justiça. As disputas entre Deus e o Diabo
funcionariam, segundo esse neoateísmo, como um motor que dá movimento e sentido
à existência e às conversões, à oferta e à procura por congregações de diversos
fins, mas que, ao fim de tudo, todos os fiéis sabem que nessa disputa Deus
sairá vitorioso, num tipo de conquista predestinada, já posta, que, enquanto
não acontece, o sentido de ser cristão vai sendo dado. O neoateu George Carlin,
de forma anedótica, diz que “enquanto a vitória divina não acontece, Deus e o
Diabo vão se divertindo num jogo de pôquer, de quem perde ou ganha mais”, e Christopher
Hitchens afirmava que se esse Deus existisse ele seria sádico, não existindo, é
o personagem mais imoral da ficção mundial, porquanto, sabendo do que
predestinou e tendo poder para eliminar o Diabo (e todo o mal derivado) mas não
fazendo, mostra que tem prazer no sofrimento universal e na condenação das
almas. Seja como for, as críticas neoateias atingem em cheio a visão simplista
do cristianismo – no entanto a mais conhecida entre as massas – e não tanto as
teses formais do cristianismo da alta teologia. Quis citá-las para exemplificar
como a dualidade dos quadrinhos heroicos é uma verdade atemporal, permeando
diversas dimensões da cultura humana.
[4]
Ano Zero (2013), de Scott Snyder e
Greg Capullo, foi publicado no Brasil pela ed. Panini em 2014 na revista mensal
“Batman” e nos tie-ins do mix “A
Sombra de Batman” e de outros títulos DC na fase Os Novos 52, cujos quais
disponibilizo aqui. Acompanhei a saga integralmente no mix “Batman”, que englobou as edições de
número 21 ao 33. A presente crítica quadrinística se refere ao volume único capa-dura
Os Novos 52! Batman Ano Zero, ed.
Panini, 2017, 396 págs.
[6]
Nos primeiros contos do Homem-Morcego nos anos 1930 não faziam parte do seu
uniforme as manoplas dentadas que simulam o patágio dos morcegos; em seu lugar,
era usado um par de luva roxa simples, numa insinuação de que o uniforme ainda
estava em processo de confecção. Na colorização brasileira tanto a cor preta da
capa, da máscara, das botas, quanto a cor roxa das luvas foi substituída pelo azul
por ser mais econômica para as editoras.
[7]
Cf. “Batman Contra o Monge Louco, partes 1 e 2”. Detective Comics # 31 e 32
(setembro-outubro, 1939). Roteiros de Gardner Fox e Bill Finger, arte de Bob
Kane. Crônicas vol. I. As Primeiras
Histórias de Batman em Ordem Cronológica. Ed. Panini, 2007, pp.41-62. Julie
Madison foi retratada noutro ensaio meu chamado “O Morcego, o Vampiro e o Lobisomem”.
[8]
O vigilantismo noturno como regra de Batman ainda não era algo estabelecido nos
anos 1930.
[9]
Outro desenhista que se destacou com essa mesma técnica durante a fase Os Novos
52 foi Tony S. Daniel.
[11]
O volume capa-dura da Panini se limitou a traduzir o capa-dura da DC nos EUA.
Nele constam somente os contos – nesta mesma ordem diacrônica – “Cidade
Secreta” I-IV, “Onde Diabo Ele Aprendeu a Dirigir?”, “Aquela Vez...”, “O Fosso”,
“Cidade Sombria” I-IV, “Cidade Selvagem”
I-IV e o epílogo “Pessoas no Escuro”, um conto com duas crianças gotamitas que
acontece durante “Cidade Selvagem”. Disponibilizo aqui as edições zero com os
contos de origem que não saíram no volume capa-dura.
[12]
Sobre a técnica do “narrador onisciente múltiplo”, ela foi decomposta por mim
na crítica Matando a Piada: o Final,
Afinal, de Piada Mortal.
[13]
In medias res, “expressão latina que
significa ‘no meio das coisas’. Técnica narrativa literária que consiste em
relatar os acontecimentos da história, não pelo seu início, mas pelo momento
crucial e pelo meio da ação, como forma de cativar a atenção do leitor. Para
além disso, esta técnica permite suprimir incidentes desagradáveis e atenuar os
intervalos entre os acontecimentos que, muitas vezes, perturbam a continuidade
da ação” – apud Infopedia. Porto:
Porto Editora, 2003-2017 [consult. 19/08/2017 19h:10min.].
[14]
Cf. Batman nºs 18 e 19 (3ª série).
Ed. Abril, 1991. O nome da sociedade secreta fundante de Gotham City não é
mencionado no enredo de Peter Milligan, mas se sabe que ela é política e crê no
sobrenatural, já que ela cultua o símbolo do morcego. Há claros indícios de que
desse roteiro Scott Snyder retirou elementos para criar a Corte das Corujas e
parte dos aspectos do Charada de Ano Zero.
Por questão de espaço, não farei esse balanço comparativo.
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