American Splendor é o mais genuíno triunfo de um cronista: conseguir tirar do aparente banal um enredo inteligente, seja de uma ida ao supermercado, uma conversa no trabalho ou uma busca por LPs. Harvey Pekar vai além, quadrinizando seu monótono e por que não tão semelhante a alguns de nós dia-a-dia? Pondo-se como personagem sempre presente, acompanhando sua vida desde encontro com o então conhecido Robert Crumb (que viria a ser seu mais famoso ilustrador) á seu casamento, ida a talks shows de David Letterman, o desenvolvimento e sua luta contra um câncer... Diferente de boa parte das obras dos quadrinhos, seus personagens --todos transcritos da realidade --, ganham uma tridimensionalidade ainda mais aceitável, dando ao leitor a sensação de não estar lendo uma HQ, porém estar ocupando os mesmos espaços que Harv e os mais distintos eremitas ocupam, de sermos alguém que está sendo observado para depois ter uma participação no próximo número da revista... O modo narrativo de seus quadros, faz com que você quebre a mágica de estar apenas na platéia assistindo ao teatro, suas histórias são justamente uma antítese do que é um espetáculo, Harv mostra a vida como ela é quando o show acaba, as cortinas baixam e as pessoas voltam para suas pequenas ambições e frustrações diárias, tendo que trabalhar quase todos os dias e travando diálogos comuns sobre gostos musicais ou contando pequenos causos vividos.
Quando comecei a ler o começo do encadernado que comprei (editora Conrad, PB, 104 páginas) a primeira história curta levantava a questão através da fala de Harv com o leitor: “Quem é Harvey Pekar?”. Uma descrição precisa, porém ignorada na minha primeira leitura sobre o quanto a vida é imprecisa, simples e rápida, no qual nem nossos nomes que parecem ter relevância escapam da avalanche natural do passar dos anos, onde na lista telefônica, Harv vê surpreso haverem outros indivíduos com o mesmo nome raro que ele, que ele julga haver algum tipo de conexão, mas não chega a descobrir, já que alguns morrem, outros saem da lista, outros novos aparecem e a ideia de unidade e importância única vai ruindo de Harv, ao modo que ao passar dos próximos textos ele apenas aceite a vida como ela seja: uma sequência incerta de dias para se cumprir os pequenos prazeres, colecionar compulsivamente discos vinis de jazz ao ponto de dividir seus ganhos entre comida e mais discos, tudo isso enquanto compra e revende discos que considera ruins para conseguir “uns trocados”, já que em sua visão possui um ganho medíocre com seu trabalho de arquivista público.
Recomendo essencialmente como complemento a leitura desse encadernado o filme “Anti-Heroí americano”, que não só menciona como complementa e nos provoca, a saber, mais sobre, além de ser uma adaptação genial de um quadrinho, do tipo que poucas vezes vi na vida um diretor ter tanto respeito pelo material original, ao ponto de trazer para tela as reais pessoas que foram representadas por desenhos e atores (com direito ao próprio Harvey Pekar como narrador), revezamento entre cenas reais de cunho documentarístico, além de uma encarnação perfeita de Paul Giamatti, um filme tão subversivo quanto os quadrinhos em que se baseia.
Eu não diria que Harv é o tipo de “personagem” que me inspire como boa parte dos que eu sou acostumado, seja do meio underground ou Marvel e DC. Harv é mais aquele amigo tão estranho e psicótico como eu, só que de uma maneira explicita, e uma ideologia política e prática bem diferente, mas que por ter tantas camadas e ser tão interessante, eu acabo gostando apesar de não concordar com boa parte. Como dito em uma dos contos que eu mais gostei no encadernado “Homens inteligentes às vezes discordam”, essa foi uma das boas lições que tirei após algumas leituras.
Nota: 8.4
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