Salvat Marvel: meu TOP 10 das 60 primeiras edições - PARTE II

 


Eu preciso começar agradecendo quem apareceu nos comentários do último texto sobre dor masculina. Eu realmente não esperava tanta interação, nem que viesse de tantos homens diferentes. Eu sei que é um tema delicado, íntimo, que mexe com um lugar onde vocês não costumam deixar ninguém chegar. E, por mais que eu tente ser empática, eu continuo sendo mulher, criada dentro de outra lógica, com outros tipos de feridas e ameaças. Era totalmente compreensível se muita gente simplesmente ignorasse o texto ou até se irritasse com a ideia de eu “invadir” esse território. Mas o objetivo foi justamente cutucar essa mania atual de transformar tudo em guerra de sexo, como se ainda existisse um clube do Bolinha e um clube da Luluzinha, cada um treinando o outro lado como inimigo. Na comédia isso funciona, em sitcom, em tirinha, em stand up. Na vida real, virou trincheira. De um lado, homens com medo de chegar perto de qualquer mulher por receio de falsa acusação. Do outro, mulheres treinadas a enxergar praticamente todo homem como agressor em potencial, esquecendo que o mesmo cara que pode ser uma ameaça também é, muitas vezes, o pai superprotetor da filha, o marido que segura o rojão, o filho que cuida da mãe, o tio coruja das sobrinhas, até da sogra. Eu não vou transformar isso aqui em parte 2 daquele texto, mas precisava registrar que eu vi, li e senti cada comentário.

Corta para a “salvática”. Enquanto essa discussão toda rolava, eu fui reler os comentários do meuprimeiro Top 10 da coleção Marvel / Salvat, aquele focado nas 60 primeiras edições da capa preta. As ponderações do Xandão, do New, Alan, do Ozy e de outros sobre o que ficou de fora da lista, o que cada um tiraria ou colocaria, as leituras diferentes sobre Supremos e até os X-Men do Whedon, tudo isso me deu a impressão de que a primeira lista tinha aberto só metade da conversa. E, sendo bem sincera, eu senti que essa parte II talvez fosse até mais necessária do que a parte II das HQs desconhecidas. As “desconhecidas” falam para um público menor, gente que corre atrás de scan obscuro, que testa coisa fora do óbvio. Já esses encadernados da Salvat ainda são, com todos os defeitos, uma das melhores portas de entrada em capa dura que a Marvel recebeu nas últimas décadas para o leitor casual, o cara que viu filme no cinema, trombou com um volume numa banca ou num sebo e pensou “ok, por onde eu começo?”.

Então é isso que eu vou fazer aqui: não é exatamente um “top 11 ao 20”, mas uma segunda fileira de honra. Mais 10 encadernados da coleção Marvel / Salvat que eu acho que merecem estar num pedestal próprio, seja como porta de entrada, seja como complemento emocional da primeira lista.

 

1) Guerra Civil



Eu poderia muito bem posar de cult, dizer que Guerra Civil já cansou e tirar esse encadernado da lista só para parecer diferente, mas seria pura pose. Por mais que a imagem pública da saga tenha virado aquele meme raso de “time Tony vs time Steve”, o volume da Salvat com a minissérie principal ainda é, para mim, o quadrinho que dá a cara da Marvel nos anos 2000. A história começa com um desastre envolvendo um grupo de heróis de terceira categoria, gente que topa participar de reality show de super-heróis para ganhar fama rápida. O golpe dá errado em rede nacional, crianças morrem, o país entra em choque e o governo decide que acabou a brincadeira: a ordem é registrar todos os super-humanos, com identidade, treinamento e controle oficial. A partir daí, o que poderia ser só desculpa para pancadaria vira uma discussão bem mais incômoda sobre medo coletivo, segurança vendida como produto, imprensa alimentando pânico e a linha tênue entre responsabilidade e vigilância estatal. Não é um tratado de ciência política, mas está bem acima da média do gênero na hora de usar fantasia para cutucar coisa séria.

O que me pega em Guerra Civil é a sensação constante de ponto de não retorno. Mesmo cheia de tie-ins e histórias paralelas, a minissérie central é muito focada: o Mark Millar escolhe meia dúzia de cenas-chave e espreme tudo ali. A caçada ao Capitão nas ruas, o Aranha tirando a máscara na coletiva, a prisão na Zona Negativa funcionando como Guantánamo de luxo, o uso do clone do Thor, tudo vai montando o clima de “passamos todos dos limites e ninguém percebeu o momento exato em que isso aconteceu”. A arte acompanha esse peso: quando a porrada estoura, você sente que não é só mais uma luta de super-herói, é amizade antiga indo para o saco, é confiança sendo destruída em público. Depois, claro, muita coisa é desfeita, porque mensal precisa voltar ao status quo em algum nível. Mas durante alguns anos essa saga foi o centro de gravidade da editora, o ponto de referência para qualquer conversa sobre “era moderna Marvel”. Para mim, continua sendo a melhor mega saga da casa nos anos 2000. Guerra Civil tem esse mérito raro de ser ao mesmo tempo leitura acessível para quem vem dos filmes e um incômodo real para quem acompanha super-herói há mais tempo.

 

2) Vingadores: A Queda + Os Novos Vingadores: Motim


Antes de chegar nesse combo, vale lembrar onde o título dos Vingadores estava. A revista vinha de uma fase escrita pelo Geoff Johns e outros autores que, apesar de ter seus momentos, nunca virou referência forte. Não era ruim, só era aquela coisa “ok, existe”, longe de ser o carro-chefe da editora. Enquanto isso, o que realmente empolgava era o clima de renovação do Universo Ultimate, com roteiristas como o Bendis e o Millar dando outra cara para personagens conhecidos. A Marvel percebeu que precisava fazer algo parecido no universo principal, e a ideia foi simples e agressiva: em vez de ir ajeitando a equipe aos poucos, vamos quebrar tudo e remontar a marca do zero. Por isso a escolha do Brian Michael Bendis, um cara muito mais associado ao Ultimate, para tocar justamente os Vingadores “oficiais”.

A Queda é o momento da implosão. O encadernado mostra um dia absolutamente desastroso na mansão: um antigo aliado explode literalmente na porta, o Visão cai do céu dentro de um jato e começa a cuspir Ultrons, a Mulher-Hulk perde o controle, uma invasão kree surge do nada. É uma sequência de tragédias que, à primeira vista, parece coincidência cósmica, até ficar claro que existe uma mente desequilibrada puxando todos os fios. No fim, o que desaba não é só o prédio, é a ideia de que aquela formação clássica dos Vingadores era indestrutível. Membros antigos morrem, outros largam a vida de herói, e sobra a sensação de que o mundo mudou de tal jeito que aquele modelo de equipe simplesmente não cabe mais.

Motim entra exatamente depois, pegando esses escombros ainda fumegando e fazendo a pergunta que qualquer editor faria: “beleza, quem leva o logo Vingadores daqui para frente?”. A resposta do Bendis é montar, pela primeira vez de forma assumida, uma espécie de “Liga da Justiça da Marvel”, misturando medalhões e azarões. O núcleo ainda tem Capitão América e Homem de Ferro, mas agora vem acompanhado de Homem-Aranha, Wolverine, Luke Cage, Mulher-Aranha e, aos poucos, figuras como o Sentinela. A história começa com uma fuga na prisão da Balsa que dá errado do jeito certo, ou seja, explodindo vilão para todo lado e forçando esses personagens a lutar juntos antes mesmo de decidirem se confiam uns nos outros. O foco não é tanto o plano mirabolante, e sim a química: o humor do Aranha quebrando a solenidade, o todo um confronto de visões do Stark e do Rogers ainda antes da Guerra Civil e o Luke Cage trazendo um pé na rua que faltava pra equipe. Bendis usando diálogos longos para fazer a equipe se formar na base da conversa, não só do soco.

Lidos em sequência, os dois encadernados parecem um único arco sobre morte e rebranding. A Queda é o funeral traumático da velha guarda, aquele momento em que você percebe que uma era terminou e não volta. Motim é o velório em que já aparecem cartões de “novo projeto”, com gente dizendo que vai honrar o legado enquanto negocia outra estética, outro público, outro tipo de história. Goste-se ou não do estilo do Bendis, o fato é que essa formação dos Novos Vingadores fez o título finalmente assumir o papel de centro do universo Marvel que ele sempre fingiu ter, mas nem sempre tinha em vendas e relevância. Se você quer entender por que, pelos quinze anos seguintes, tudo de grande na editora parecia ter um Vingador no meio, esse 2 em 1 é o ponto de partida perfeito.

3) Dinastia M



Se A Queda desmonta os Vingadores de dentro, Dinastia M faz isso com a própria realidade. O encadernado da Salvat coloca a Wanda no auge do colapso, incapaz de lidar com a soma de perdas, manipulações e traumas que foram empilhados nas costas dela ao longo dos anos. A solução que o universo encontra é quase infantil e, justamente por isso, assustadora: reescrever tudo. De repente, os mutantes são a classe dominante, cada herói ganha sua “vida ideal” e, por algumas páginas, você sente que entrou em um sonho estranho e reconfortante. Até que uma fagulha de memória errada acende e alguém percebe que aquele paraíso tem algo de profundamente podre.

Narrativamente, o que me atrai em Dinastia M é como ela funciona tanto como grande saga mutante quanto como alegoria de desejo reprimido. Cada personagem é confrontado com a pergunta “se o mundo fosse do jeito que você queria, ele seria mesmo melhor?”. E a resposta, quase sempre, é não. A história tem ritmo irregular em alguns pontos, mas o conceito é forte o suficiente para atravessar os anos, e a frase “No more mutants” virou marco por um motivo. Para quem vem do MCU e acha que conhece a Feiticeira Escarlate, esse encadernado é um choque de realidade. Não existe maquiagem aqui, só uma mulher com poder demais e estrutura psíquica de menos, cercada de homens que passaram décadas usando o trauma dela como ferramenta de roteiro. É bonito, é incômodo e, em vários momentos, é cruel de propósito.

4) Ultimate Homem-Aranha: Poder e Responsabilidade



No lugar de mais uma mega-saga, eu prefiro colocar aqui o momento em que a Marvel decidiu voltar à estaca zero com o Aranha para uma geração nova. O encadernado da Salvat Ultimate Homem-Aranha: Poder e Responsabilidade reúne as edições 1 a 7 de Ultimate Spider-Man (2000), do Brian Michael Bendis com o Mark Bagley, que pegam aquela origem clássica de 11 páginas dos anos 60 e esticam até virar um romance gráfico de quase 200 páginas. A premissa é a mesma de sempre: Peter Parker, adolescente franzino, mordida de aranha alterada em laboratório, poderes estranhos, culpa gigante quando o Tio Ben morre. O que muda é o contexto. Aqui ele é um garoto do começo dos anos 2000, cercado de bullying escolar, corporativismo escroto, marketing em cima de tudo e uma Nova York mais cínica. O pai não é só uma figura vaga do passado, mas alguém ligado a pesquisas científicas reaproveitadas pela Oscorp, e o próprio nascimento do Homem-Aranha cola diretamente nas ambições de Norman Osborn com o tal soro OZ.

A graça desse volume está na paciência. Em vez de correr para pôr o uniforme na terceira página, o Bendis deixa você viver com o Peter: as aulas, as humilhações, o namoro engatinhando com a MJ, a relação com Tia May e Tio Ben, tudo com diálogos cheios de interrupções, gaguejadas e piadas internas de adolescente. A mordida, os primeiros testes de poder, o deslumbre de achar que “agora tudo vai dar certo” e a carreira de lutador mascarado vêm em ritmo bem mais devagar, e isso faz com que a famosa frase “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades” finalmente soe como algo conquistado. Quando a tragédia bate, você não está só vendo um ícone sendo corrigido pelo roteirista, está vendo um moleque que você já aprendeu a gostar precisar engolir, do jeito mais cruel possível, que a vida não respeita protagonismo. O Duende Verde, por sua vez, aparece menos como o empresário maluco de terno e mais como um monstro criado por ganância corporativa, uma coisa quase incontrolável que Norman solta em cima do próprio “investimento”. O confronto entre os dois é a culminação de tudo: a ciência, o experimento irresponsável, o adolescente que virou arma sem querer.

Visualmente, o Bagley encontra um meio-termo interessante: ainda é super-herói colorido, mas com uma energia muito mais adolescente. O Aranha é magro, elástico, sempre em poses que parecem foto de parkour tirada no meio do salto, e a cidade tem cara de lugar vivo, cheio de propaganda, lixo, gente comum olhando assustada. Os quadros alongados, com muitas conversas e poucos cortes, deixam claro o tal “pacing decomprimido” que muita gente ama ou odeia, mas que funciona muito bem aqui para quem está chegando agora e precisa sentir o peso de cada escolha do Peter. Como porta de entrada, esse encadernado tem uma vantagem óbvia: você não precisa saber nada de cronologia 616. É literalmente “esse é o começo”, pensado para ser lido por quem nunca pegou um gibi do Aranha na vida. E, ao mesmo tempo, se você já conhece a versão clássica de cor, é interessante ver como pequenas mudanças de contexto (escola, internet engatinhando, cultura de laboratório privatizado) já transformam completamente o tom da história. Não é a versão definitiva, mas é uma das mais honestas em tratar Peter Parker como o que ele sempre deveria ser: um garoto tentando sobreviver à adolescência enquanto o mundo insiste em tratá-lo como peça de um tabuleiro muito maior do que ele.

5) O Espetacular Homem-Aranha: De Volta ao Lar + Revelações & Até que as Estrelas Esfriem



Aqui eu vou trapacear sem culpa e tratar os volumes 21 e 22 da Salvat como um pacote só. O primeiro reúne as edições 30–35 de Amazing Spider-Man v2, início da fase J. Michael Straczynski com John Romita Jr., e o segundo continua exatamente do ponto em que o anterior para, lidando com as consequências diretas daquela história. Juntos, eles formam a introdução mais redonda que o Aranha teve em muito tempo: Peter adulto, dando aula em escola pública, Mary Jane afastada, a tia May ainda no escuro e um vilão novo que já chega com cara de “coisa grande” em vez de bandido da semana.

Em De Volta ao Lar, a vida do Peter parece num daqueles períodos “relativamente sob controle” que a Marvel adora usar como calmaria falsa. Enquanto tenta ser um professor decente para uma turma complicada no Midtown, ele encontra Ezekiel, um misterioso milionário que conhece a identidade secreta do Homem-Aranha e aparece lutando com poderes praticamente idênticos aos dele. É o cara que joga a bomba conceitual na mesa: e se a aranha não tivesse sido só um acidente radioativo? E se existisse toda uma lógica mística, totemista, por trás dos poderes do Peter, e ele fosse parte de uma cadeia de predador e presa muito mais antiga do que laboratórios e ciência pulp?

É aí que entra o Morlun, e é importante não tratar o personagem só como “vampiro de energia”. Ele é apresentado quase como uma força da natureza, um predador ancestral que caça encarnações de animais totêmicos pelo mundo, e o Aranha é só o próximo na fila. O roteiro faz questão de mostrar que Morlun não é o tipo de vilão que você derruba com piada e teia na cara: cada encontro entre eles termina com o Peter mais quebrado, fisicamente e psicologicamente, e a arte do Romita Jr. vende muito bem essa sensação de perseguição implacável. É uma das poucas vezes em que você sente que o Homem-Aranha está realmente abaixo da ameaça, que ele está sobrevivendo por teimosia, não por ter “um plano secreto”. Quando a luta final acontece, a vitória tem gosto agridoce, porque fica claro que o preço pago para segurar aquele monstro não some com um “fim” na última página.

O segundo encadernado, Revelações & Até que as Estrelas Esfriem, é basicamente a ressaca emocional disso tudo. A história não tenta subir ainda mais o volume da porrada, ela pisa justamente no freio e pergunta: o que acontece com a família Parker depois de uma sequência dessas? O grande evento aqui não é um novo vilão, mas a conversa definitiva entre Peter e tia May quando ela descobre, de forma incontornável, que o sobrinho é o Homem-Aranha. A cena não é tratada como gag ou choque barato, é um diálogo longo, desconfortável e muito humano, em que os dois têm que revisitar décadas de mentiras, mortes e culpas. Ao mesmo tempo, a MJ volta ao tabuleiro de forma mais adulta, e o texto mostra bem como é tentar manter um casamento com alguém que literalmente arrisca a vida todas as noites e volta para casa com cheiro de hospital.

Essas edições também desenvolvem melhor o Peter professor, a rotina no colégio, os alunos, a forma como ele tenta usar o que aprendeu apanhando em telhado para ajudar quem está preso no chão. Tem espaço para humor, para pequenos dramas cotidianos e para aquela sensação de que a vida do Aranha nunca entra nos eixos de verdade, só muda o tipo de caos. O conjunto dos dois encadernados acaba entregando exatamente o pacote que eu quero quando penso em “porta de entrada” para o personagem.

6) Novos X-Men: E de Extinção + Novos X-Men: Imperial



Segunda roubadinha, e aqui eu nem sinto culpa. E de Extinção e Imperial são, na prática, um romance em duas partes. No primeiro volume, Morrison e cia pegam a ideia dos mutantes como minoria perseguida e levam a metáfora até o limite, com o massacre de Genosha e a introdução de Cassandra Nova, a gêmea parasita de Xavier. O clima é de fim do mundo: a escola começa a funcionar como escola de verdade, novos mutantes brotam em cada esquina e, ao mesmo tempo, a sensação é de que tudo está podre na base. No segundo encadernado, Imperial, Cassandra foge para o espaço, assume o controle do Império Shiar e volta com poder demais e paciência de menos, transformando a vida dos X-Men num pesadelo político e físico.

O que me prende nessa fase não é só a inventividade visual ou o texto quebrado do Morrison, mas a forma como ele recusa a visão romantizada dos X-Men. Esses não são “professores sábios e alunos gratos”, são pessoas quebradas num ambiente de alta pressão, lidando com fama, terrorismo, preconceito público e manipulação midiática. Muito antes de séries atuais tentarem “adultizar” super-heróis, esses encadernados já estavam tratando mutante como celebridade em colégio interno tóxico. Não é a melhor porta de entrada absoluta para quem nunca viu nada de X-Men, mas é perfeita para quem já vem com o mínimo de repertório e quer ver o conceito levado até consequências mais incômodas. Lidos em sequência, E de Extinção e Imperial formam uma peça única, estranha e necessária.

7) Demolidor: Diabo da Guarda



Eu conheci o Demolidor de verdade aqui, antes de encostar na celebrada Queda de Murdock, e até hoje, quando penso no personagem, minha cabeça alterna entre o traço do Joe Quesada e o do Alex Maleev. Em Diabo da Guarda, o Kevin Smith pega todo o peso católico e urbano que o Miller deixou no ar e resolve testar quanto o Matt Murdock aguenta antes de quebrar. A trama gira em torno de um bebê que pode ser o salvador, o anticristo ou simplesmente uma criança jogada no meio de uma guerra simbólica. Uma seita, forças demoníacas e interesses bem humanos querem a criança, e o Demolidor precisa decidir se vai protegê-la a qualquer custo ou se deve considerar a possibilidade de estar alimentando o mal.

O que essa história entrega, para além da sinopse, é um mergulho total na mente paranoica do Matt. Você vê a fé dele sendo usada como arma contra ele mesmo, os amigos se afastando, a cidade pesando nas costas, e a arte do Quesada transforma tudo em teatro barroco de sombras, gárgulas e chuva constante. Não é perfeita, tem momentos em que o texto do Smith escorrega para o dramalhão, mas como introdução ao personagem funciona quase como rito de iniciação. É aqui que muita gente entendeu que o Demolidor não é só “o Batman da Marvel”, e sim um protagonista trágico que vive num cruzamento constante entre pecado, responsabilidade e autossabotagem. E sim, é uma aula de como um desenhista consegue tornar um herói palpável. Do mesmo jeito que o Bryan Hitch fez você acreditar que a armadura do Homem de Ferro dos Supremos poderia existir no mundo real, o Quesada faz você sentir o peso do uniforme vermelho em cada página.

8) Thor: O Renascer dos Deuses



Esse volume é curioso porque, para muita gente, parece “só” o Thor pós-filmes. Mas se você acompanha minimamente o personagem, sabe que ele chegou aqui depois de uma fase inteira em que virou literalmente Senhor de Asgard, se afastou dos outros heróis e acabou no Ragnarok definitivo, que encerrou a revista e deixou o deus do trovão apagado das tramas mensais. Enquanto isso, o universo Marvel continuava se virando, a ponto de criarem um clone do Thor para usar como arma em Guerra Civil. Quando Straczynski assume a série e escreve o que está reunido em O Renascer dos Deuses, ele está contando, no fundo, a história de alguém que volta de um colapso e precisa entender que tipo de lugar o mundo virou na sua ausência.

A narrativa acompanha Thor reconstruindo Asgard literalmente sobre solo americano, lidando com moradores locais, com política e com o fato incômodo de que amigos usaram a imagem dele em uma guerra em que ele não estava. Ele precisa encontrar e “despertar” outros asgardianos escondidos em identidades humanas, renegociar seu papel como deus e como herói e, ao mesmo tempo, decidir o que fazer com os responsáveis pela aberração que foi o clone. A arte do Coipel dá peso físico à armadura, às expressões e às cenas de ação, tornando esse Thor menos figura distante e mais entidade que você quase sente atravessar a página. O resultado é um encadernado que funciona como reinserção do personagem no universo compartilhado e como comentário sobre legado e abuso de imagem. Depois dessa fase, fica difícil ver o Thor só como o cara do martelo e da piadinha.

9) Thunderbolts: Fé em Monstros


Esse é o volume que eu queria colocar justamente para sair um pouco da zona de conforto “Vingadores, X-Men, Aranha”. Thunderbolts: Fé em Monstros pega a ideia de registro de heróis pós Guerra Civil e vira pelo avesso. Aqui, os “heróis oficiais do governo” são, na verdade, vilões reempacotados: Venom, Espadachim, Mercenário, uma equipe que em qualquer outro contexto seria lista de inimigos de pesadelo. O Norman Osborn comanda tudo, sorrindo para as câmeras enquanto segura um grupo de psicopatas com um verniz de patriotismo, e o Warren Ellis escreve a série como se fosse um reality show transmitido em horário nobre.

O encadernado acompanha esses “heróis” caçando quem não assinou o registro, sempre com aquela tensão “isso aqui está errado em tantos níveis que eu nem sei por onde começar”. A arte do Mike Deodato abraça o tom pesado, com enquadramentos claustrofóbicos, sorrisos falsos e explosões catárticas. O arco seguinte, que aprofunda ainda mais a ruína moral do time, infelizmente não saiu na Salvat, o que é uma pena, mas Fé em Monstros se sustenta muito bem sozinho como retrato do que acontece quando o Estado usa gente perversa como instrumento de controle. É menos espetáculo colorido e mais estudo de como o público topa qualquer coisa desde que venha com logo oficial e transmissão ao vivo. Perfeito para ler em paralelo com Guerra Civil e ver o quanto aquela “grande ideia moral” vira, na prática, um circo de horrores uniformizado.

10) Justiceiro: Bem-vindo de Volta, Frank (vols. 18 e 19)


Para fechar, eu tiro o Capitão América contemplativo e coloco alguém bem menos disposto a discutir ideais abstratos. Bem-vindo de Volta, Frank é a chegada do Garth Ennis e do Steve Dillon ao Justiceiro no selo Marvel Knights, em uma fase que parece despretensiosa à primeira vista, mas que acabou redefinindo o personagem para os anos 2000. A Salvat dividiu a história em dois encadernados seguidos, volumes 18 e 19, e juntos eles formam uma narrativa só, que mistura ultraviolência cartunesca, humor negro e um retrato desconfortavelmente lúcido de um veterano de guerra que não sabe mais viver fora da lógica de combate.

Ao contrário de Preacher, da mesma dupla, aqui o Ennis precisa trabalhar dentro de uma faixa etária menos explícita, o que o obriga a ser mais cirúrgico no que mostra e no que insinua. O começo parece quase uma brincadeira de “Frank Castle contra mafiosos clichê”, mas, aos poucos, ele vai inserindo temas militares, críticas à burocracia, às forças policiais e à forma como a violência é consumida como entretenimento. O desenho do Dillon, com rostos simples e expressões muito claras, torna tudo ainda mais incômodo, porque o contraste entre a frieza do Frank e a humanidade distorcida ao redor dele é permanente. Não é uma história que glorifica o personagem, pelo contrário, ela deixa claro o quão inviável ele é em um mundo minimamente normal. E talvez por isso tenha marcado tanta gente que nunca tinha dado bola para o Justiceiro antes. É o tipo de quadrinho que você lê achando que é só tiro e piada e, quando termina, percebe que está pensando sobre o que exatamente você acabou de achar divertido.

 


Eu vou encerrar por aqui porque, convenhamos, essa parte já ficou maior do que a primeira e eu já me peguei podando parágrafo atrás de parágrafo... Toda vez é a mesma luta: eu quero falar de tudo, abrir mil parênteses, contar como cheguei em cada escolha, mas se eu não corto, o texto deixa de ser uma leitura divertida e informativa e vira só uma página do meu diário que eu resolvi transcrever pro mundo. E, acredite, ninguém merece ler meu fluxo de consciência inteiro quando veio aqui “só” saber por onde começar a coleção da Salvat.

Então, se você chegou até aqui, obrigada de verdade. A ideia com esse tipo de post é, ao mesmo tempo, fazer quem já leu relembrar boas histórias e dar um mapa minimamente decente para quem quer entrar nesse universo da Marvel de um jeito acessível, sem precisar vender um rim. Ler quadrinho em formato físico ainda é importante, principalmente nesse mundo em que tudo é nuvem, assinatura e arquivo que some quando alguém desliga um servidor. Ter o volume na mão, ver a lombada fechando desenho na estante, ainda é parte da graça, por mais que a gente viva cercado de tela.

E como a primeira leva foi pensada para ter justamente esses 60 volumes, não faz muito sentido eu forçar uma parte 3 em cima do mesmo recorte. Se vocês curtirem esse tipo de texto, aí sim eu posso tentar repetir o formato com o que eu li da segunda leva: as famigeradas capas vermelhas, onde, na minha opinião, pouca coisa realmente se salva. Foi uma coleção muito mais gananciosa, com muita bucha empurrada em leitor desavisado e capas que às vezes nem correspondiam às histórias lá dentro, o que eu continuo achando desonesto. Também dá para brincar com um top 10 das outras capas pretas da extensão, embora, sendo honesta, eu tenha lido mesmo de cabo a rabo só esses 60 primeiros; depois virou uma bagunça cara e eu nem sei se tudo que foi prometido saiu do jeito que anunciaram.

Havia até um projeto meio fantasma da própria Salvat de investir em encadernados do Universo Ultimate. Chegou a rolar teste de coleção com promessa de 60 volumes, saiu coisa de Ultimate Homem-Aranha, X-Men e Supremos em formato especial, teve banca recebendo material em algumas regiões, mas eu mesma não sei até que ponto isso andou ou se morreu na praia como tantas outras ideias. Se eu for revisitar esse assunto em texto, eu dou uma pesquisada com mais carinho. Por enquanto, eu fecho a lombada aqui. Se esse top 10 já te deu vontade de catar pelo menos um desses encadernados num sebo ou numa promoção perdida de loja virtual, missão cumprida!!