Eu leio o Justiceiro, não sou um monstro (e nem vou devolver o gibi)

 


Tem uma coisa que me irrita profundamente na forma como se fala de cultura pop hoje: a necessidade de transformar qualquer preferência em atestado moral. Se você gosta do Justiceiro, automaticamente precisa fazer um pequeno TCC dizendo “mas eu não concordo com os métodos dele, viu, eu sou contra violência na vida real, tá bom?”. Como se a gente estivesse numa delegacia ética da ficção, prestando depoimento toda vez que abre um encadernado com uma caveira na capa.

Ficção sempre lidou com gente horrível. Macbeth mata por ambição, Raskólnikov comete um assassinato “filosófico”, um monte de protagonista clássico faria o Frank Castle parecer quase burocrático. A diferença é que ninguém chega tremendo na aula de literatura pra dizer “eu li Dostoiévski, mas prometo que não vou sair matando velhinha com machado”. O problema não é o Justiceiro, o GTA ou o FPS da moda. O problema é quando a pessoa já está num nível de desequilíbrio tal que qualquer coisa vira desculpa. A mídia vira bode expiatório porque dá menos trabalho culpar um gibi do que encarar que a sociedade falhou dez etapas antes.

E é engraçado lembrar que o Justiceiro nem nasceu como esse totem de “guerra pessoal contra o crime”. Ele entrou em cena como vilão do Homem-Aranha, literalmente um cara contratado para matar super-herói, manipulável, bruto, meio cego para a própria instrumentalização. A origem dele como ex-soldado que perdeu a família e virou máquina de execução foi sendo lapidada aos poucos, tanto na série regular quanto em especiais. A minissérie do Ennis e do Dillon em Bem-vindo de Volta, Frank funciona quase como um v1 emocional: pega tudo que tinha de rascunho no conceito e cristaliza num personagem que já chega pronto, com senso de humor negro, ódio canalizado e um código moral torto, mas claro. É a partir daí que o Frank deixa de ser só “aparição especial do cara da caveira” e vira protagonista com voz própria.

A pergunta inevitável é: “e o Garth Ennis nessa história toda?”. Porque, goste-se ou não dele, é impossível falar de Justiceiro sem esbarrar no irlandês ranzinza. O que o Ennis faz, sobretudo nas fases MAX, é tirar qualquer verniz de glamour do personagem. O Frank dele é um veterano de guerra velho, cansado, que sabe que não tem lugar no mundo civilizado e age como se tivesse aceitado essa sentença. As histórias abraçam violência extrema, sim, mas quase sempre com um subtexto de que aquilo é horrível, triste, patético. O leitor ri, claro, porque o Ennis é bom de humor bruto, mas a graça vem junto com incômodo. Ele não está te vendendo um “modelo de comportamento”. Ele está perguntando: “é isso mesmo que você quer quando pede justiça na base do tiro?”. Em vez de panfleto pró-violência, o que você tem é uma longa autópsia moral.

Aí vem a pergunta moderna, que não quer calar: “Mas, Val, e os grupos políticos que se apropriaram da caveira? A Marvel não está certa em tirar o símbolo do personagem?”. Minha resposta curta é: o uso que milícia, polícia abusiva ou grupinho autoritário faz do logo do Justiceiro é repulsivo, mas a solução da Marvel continua sendo covarde e cosmética. Símbolo não volta para a caixa porque o departamento jurídico decidiu redesenhar o crânio. Quando você aposenta o emblema clássico, inventa um logo novo e finge que “agora é outra fase”, você não desfaz a apropriação. Você só cria duas realidades paralelas: lá fora, a caveira antiga segue firme em colete tático, picape levantada e avatar de rede social; no gibi, o personagem oficial vira uma versão desidratada, envergonhada da própria origem.

E é curioso notar como outros símbolos apropriados politicamente nunca receberam o mesmo tipo de “exorcismo corporativo”. A máscara do V de Vingança, por exemplo, saiu dos quadrinhos do Moore, passou pelo filme de 2005 e virou uniforme de protesto mundo afora, de Anonymous a Occupy, passando por manifestações anti-bancos e contra governos diversos. A Warner continua lucrando com a máscara vendida em massa, e ninguém em DC saiu em campanha para aposentar o rosto do Guy Fawkes porque grupo X ou Y estava usando em protesto. O mesmo vale para o Coringa de 2019: a maquiagem do Joaquin Phoenix foi parar em marchas de rua de Beirute a Hong Kong, usada como símbolo de caos, revolta ou puro “foda-se” anti-sistema, e nem por isso o estúdio correu para redesenhar o personagem ou emitir nota de repúdio estética. Quando a máscara é útil como produto “cool” de dissidência controlada, a conversa é outra.

No caso da caveira do Justiceiro, o buraco é mais fundo porque ela se juntou a uma tradição visual muito mais antiga. O crânio sempre foi símbolo de morte, perigo, desafio à própria morte, de bandeira pirata a rótulo de veneno. Militares usaram variações disso muito antes da Marvel existir: do Totenkopf prussiano, depois tragado pelo imaginário do nazismo, a unidades de cavalaria, infantaria e forças especiais que flertam com a ideia de “somos aqueles que lidam com a morte de frente”. No Brasil, o BOPE virou símbolo extremo disso com a famosa faca na caveira, o crânio atravessado por punhal sobre pistolas cruzadas, que oficialmente significa “vitória sobre a morte” e, na prática, comunica “aqui é missão até o fim, custe o que custar”. Esse imaginário do “elite do abate” não nasceu com o Frank Castle; ele foi só mais um degrau nessa escada.

Quando Sniper Americano estourou, o próprio Chris Kyle escreveu que ele e o pelotão adotaram a caveira do Justiceiro no Iraque porque acharam o personagem “legal” e porque a ideia de fazer os inimigos temerem aquele símbolo encaixava com o que eles acreditavam estar fazendo: “ele consertava as coisas, matava os caras maus, fazia os malfeitores terem medo”, e eles começaram a pintar a caveira em Humvees, coletes, capacetes e nas paredes que deixavam para trás. Essa mistura de fetiche de letalidade, fantasia de justiça absoluta e marca visual simples explica por que tanta gente em forças armadas e policiais adotou o símbolo antes mesmo do boom de polêmica pública. A caveira do Justiceiro virou atalho visual para algo que já existia: “somos o pesadelo de quem consideramos inimigo”.

Quando grupos políticos e segmentos da extrema-direita entram na dança, o pacote fica ainda mais tóxico, mas a lógica é a mesma: apropriar-se de um emblema que comunica, em três traços, um certo tipo de masculinidade agressiva, disposição à violência e desprezo pelo “inimigo interno”. O problema, de novo, não é o crânio desenhado. É o que essa galera já era antes de encontrar um logo conveniente para costurar no peito. Fingir que trocar o símbolo oficial do gibi vai fazer esse público devolver a caveira é um nível de ingenuidade que só departamento de marketing muito bem pago consegue sustentar sem rir.

É aqui que entra o paralelo com American Fiction. O filme escancara como o mercado cultural adora performar responsabilidade enquanto continua se beneficiando das mesmas estruturas de sempre: editoras e produtoras empacotando estereótipo racial como “obra importante”, aplaudindo-se pela coragem enquanto fazem dinheiro com aquilo que dizem problematizar, numa orgia de virtue signaling bem ensaiado. A Marvel trocando o logo do Justiceiro me passa uma energia parecida. Não é uma discussão séria sobre violência de Estado, militarismo ou apropriação simbólica. É uma tentativa de sinalizar virtude: “olha como somos responsáveis, não compactuamos com isso”, enquanto o crânio clássico continua estampado em milhões de produtos antigos, em capas históricas que seguem sendo reimpressas, e em toda a memória afetiva que mantém o personagem relevante.

E o mais irônico é que, quando tentam “corrigir” isso em tela, muitas vezes o resultado fica mais raso do que o material que já existia. Na série nova do Demolidor, transformaram o Frank basicamente em cachorro louco atirando em policial corrupto como se fosse GTA com mod de munição infinita, para deixar bem didático que “olha como ele é perigoso, olha como está tudo errado”. Nos quadrinhos, inclusive na linha MAX do Ennis, a relação dele com polícia sempre foi muito mais complexa. O Frank evita a qualquer custo matar policial. Ele sabe que, se cruzar essa linha de forma aberta, não é só meia dúzia de delegados locais que vão encrencar com ele. O corporativismo da força fala mais alto, e ele viraria prioridade absoluta de caçada da máquina inteira. Existe quase um pacto silencioso ali: boa parte da polícia faz vista grossa para o vigilantismo seletivo, desde que ele não vire uma ameaça direta à própria instituição.

O próprio Ennis trabalha isso em várias histórias. O Frank não quer uma polícia de justiceiros cosplay. Ele sabe que para ele não há ponto de volta, que ele é um caso perdido em termos de reinserção, mas entende que a função da polícia, pelo menos em teoria, é se manter dentro da legalidade. Quando algum policial flerta com a vingança pessoal, tentando “virar o Justiceiro” fardado, ele confronta. Em muitas histórias da linha MAX, a tensão é justamente essa: até onde o sistema aguenta alguém como o Frank existindo à margem, sem que a instituição desabe junto. Ele não sai distribuindo benção para PM que executa suspeito na rua. Qualquer imitador que copie só a estética e ignore o código, qualquer maluco que use a caveira como desculpa para matar inocente, entra imediatamente na lista de alvos. Para o Frank, esses caras são criminosos como qualquer outro e, às vezes, até piores, porque contaminam a ideia de precisão e “não atingir civis” que ele leva como regra mínima.

O que me irrita na reação de parte do público atual, aquela turma ociosa de rede social que acha que empresa tem que obedecer como pai obedecendo criança, é a exigência de narrativa instantânea e pedagógica. Chamam os outros de “gente que lê e não entende o personagem”, mas não conseguem fazer essa leitura de longo prazo que a própria obra oferece há décadas. Querem ver o Frank atirando em policial em cena gritante para poder aplaudir dizendo “agora sim, Marvel, agora você está no lado certo da história”, como se todo o trabalho orgânico de construção dessa relação, feito ainda nos anos 2000, não existisse. No fundo, é o mesmo movimento que eu apontei quando falei de American Fiction: uma obsessão por sinalizar virtude, nem sempre acompanhada de compreensão real do que está sendo discutido. Fica todo mundo apontando para a caveira no peito dos outros, mas poucos param para ler com calma o que o próprio Justiceiro anda fazendo nos quadrinhos desde antes de virar polêmica de Twitter.