Capa sem medo: desenhistas mulheres em títulos “de todo mundo”


 

Essa ideia veio enquanto eu lia um dos textos do Xandão sobre as melhores histórias do Aranha. Parei num parágrafo e lembrei de como a arte da Sara Pichelli me marcou quando o Miles apareceu. Foi a primeira vez, em muito tempo, que um desenho de super-herói soou jovem sem ser caricato. E aí me deu vontade de escrever sobre mulheres desenhando quadrinhos, mas sob um recorte simples: páginas que me ganharam pelo olho e pelo ritmo.

Um aviso rápido: não é um texto “teofeminista”, nem uma bandeira de representatividade. É só a minha perspectiva — de leitora e de mulher — olhando trabalho. Eu me empolgo quando alguém segura um título grande pelo que entrega na página, não pelo gênero no crédito. Gosto quando uma artista chega onde quer por competência, sem precisar que a conversa vire discurso. Dito isso, aqui estão algumas que me fizeram parar a leitura e voltar o olhar para o desenho.

Antes de entrar nas desenhistas, vale, porém, destacar algumas mulheres que tiveram peso real no mainstream em outras funções. Seria injusto listar arte de página e ignorar quem moldou catálogo, roteiro e paleta — porque muito do que a gente lê só existe como existe graças a essas profissionais.



Menções honrosas

Karen Berger — A editora que moldou a Vertigo e, por tabela, o gosto de muita gente por quadrinho adulto. Sem ela, muita série que a gente chama de “clássico” nem existia do jeito que existiu. Não desenha, mas definiu o que a gente lê.

Ann Nocenti — Roteirista do Demolidor no fim dos 80/início dos 90, trouxe política (com um tanto de militância, mas nada dos níveis de hoje) e rua, criou personagem forte (Mary Typhoid) e fez Matt Murdock encarar consequências quando não era moda. Arte conversa melhor quando o roteiro tem pulso.

Lynn Varley, Jordie Bellaire, Laura Martin — Coloristas que contam história com paleta: a Varley cravou um padrão em O Cavaleiro das Trevas; a Bellaire dá clima (procure Hawkeye, Vision); a Martin segura clareza em título de super-heroísmo cheio de explosão. Cor boa narra tanto quanto o traço.

Marie Severin — Veterana de arte e cor na Marvel dos 60/70, humor afiado, olho pra composição. Antes da conversa virar “representatividade”, ela já estava lá entregando.

Essas quatro frentes (edição, roteiro, cor, chão histórico) ajudam a explicar por que, quando uma desenhista entra num título grande e segura sequência, a coisa brilha.

As desenhistas (e o que cada uma trouxe de diferente)



Sara Pichelli — Ultimate Spider-Man (2011 em diante), Spider-Men (2012)


Virada editorial na linha Ultimate; o Miles entra logo após “A Morte do Homem-Aranha”. Até ali, a cara do Aranha adolescente era muito Mark Bagley (limpo, elástico) e Stuart Immonen (elegante, dinâmico). A Pichelli muda o registro: linguagem corporal de adolescente real — peso no passo, timidez no ombro, cabelo que existe, roupa que não parece figurino. A ação tem direção de câmera clara (você sabe de onde ele partiu e onde vai cair), e Nova York tem vizinhança e textura. Não foi “participação especial”: ela segurou arcos inteiros, mantendo consistência de rosto, cenário e ritmo. Para mim, foi quando o Miles deixou de parecer só uma “ideia ventilada pela internet” e virou uma pessoa na página.



Joëlle Jones — Catwoman (mensal de 2018), passagens em Batman


Pós-Batman #50 (2018), Selina ganha mensal própria. Eu já curtia a Selina “noir” do Tim Sale em O Longo Dia das Bruxas: sombra grossa, sensualidade old-school. A Jones traz outra chave: silhueta que conta história, senso de moda que conversa com a personagem (sem virar desfile), e luta legível, quadro a quadro. Escrevendo e desenhando boa parte do primeiro ano, ela dá uma cara autoral à Selina moderna: rápida, elegante, perigosa — sem perder humanidade. O título fica melhor justamente porque a arte sustenta a proposta do roteiro.



Elena Casagrande — Black Widow (2020–2021, com Kelly Thompson)


Relançamento em fase de “acertar a bússola” da personagem (já tinha passado pela tradição George Pérez de detalhe e riqueza de cenário). Casagrande leva para o outro lado: coreografia de ação com “câmera na mão”, transição limpa e páginas silenciosas que deixam a cena bater sem onomatopeia em cima. Uma Natasha clara, eficiente, crível. Foi a série que finalmente me fez indicar Viúva Negra para leitores fora da bolha dos Vingadores. Não à toa, choveu prêmio.



Bilquis Evely — Supergirl: Woman of Tomorrow (2021–2022) e The Dreaming


Minissérie fechada da Supergirl num momento em que a DC testava formatos curtos de alto nível. A Evely entrega ornamento com legibilidade: página que parece bordada, sem perder o fio da leitura. A parceria com o Tom King funciona porque o roteiro pede fábula/aventura e ela fornece mundo — céu, deserto, cidade — sempre com senso de espaço. Em The Dreaming, essa habilidade vira regra: fantasia que você entende.



Nicola Scott — Wonder Woman (“Ano Um”, 2016) e Black Magick


DC Rebirth, o Rucka reordena a Diana em duas linhas (presente e origem). A Scott fica no “Ano Um” e entrega clássico sem rigidez: anatomia segura, composição icônica quando precisa (página-poster), e close que aproxima a personagem. Em Black Magick (com o Rucka), prova que sabe trocar de registro: noir sobrenatural, cinza/pretos que respiram. No caso da Diana, ela devolveu a sensação de “mito acessível”: grande quando é para ser grande, íntima quando importa.

Por que eu recomendo ler esses trabalhos além do desenho? Porque o traço conversa com o momento editorial e com a ideia do título. O fio comum entre todas? Legibilidade e constância. Seguraram arcos inteiros, acertaram prazos e, principalmente, contaram história com desenho — sem pedir licença e sem precisar que a conversa vire “nicho para mulheres”. Quando isso acontece, o título deixa de ser “de público X ou Y” e vira o que interessa: HQ boa.