Um vento mais forte, suando chuva, fez-me apressar o passo e quase tentei entrar, de novo, pela quarta vez, no hotel Meridional. Localizado a uns 3 quarteirões do posto, tem um anexo no térreo que serve de bar depois das 20 horas. Pena que é restrito a hóspedes ou a convidados desses. Não sou hóspede, muito menos convidado. Não sou convidado há muito, muito tempo, mas não reclamo, eu faço por onde. Já tentei forçar minha entrada lá, geralmente quando já passava bêbado e queria um lugar calmo e de classe para terminar a noite. Na última tentativa, ganhei cinco pontos no supercílio esquerdo e quatro no queixo. Eles latejam sempre que passo em frente ao hotel. Cortesia do Jaimão, um segurança negão que mais parece um bloco de basalto. Passei e acenei para ele, do outro lado da rua; ele me respondeu silenciosamente com um trincar de maxilares e um cerrar de punhos. Todo vistoso no seu uniforme vermelho com cordames trançados no peito e dragonas douradas. Apressei ainda mais o meu passo. E, dessa vez, a eminência da chuva não teve nada a ver com isso.
Havia poucas pessoas transitando pelas ruas esburacadas do centro da cidade naquele horário, os shoppings roubaram a alma dos velhos centros, mas ainda existem bares com preços honestos para os que sabem onde procurá-los, para as almas ainda não cooptadas pelas praças de alimentação, para as almas sem franquia. Até desviei do meu caminho usual para não ter que passar em frente ao bar do Laércio, local que freqüento há uns 12 anos, e só ele. Não estava disposto a ver as fuças do Laércio naquele sábado. O bar do Guimba, depois da morte dele e de seu violão, ficou com o filho meio retardado dele, virou um reduto de adolescentes, havia uns trinta deles, um bando de maritacas num coqueiro, passei reto. O Sótão foi arejado, iluminou-se, tem apresentações de música ao vivo, agora. Sertaneja, clientela da mais alta estirpe. Passei batido, também. O Sociedade Alternativa era tão alternativo que fechou, virou uma sorveteria, podia ter sido pior e uma igreja evangélica ocupar agora suas fundações. O bar do Jóquei, numa desolação de deprimir eremita. Não teve jeito. Na verdade, eu tava procurando um bar do Laércio sem o Laércio. É foda.
Resolvi, então, que ia tomar umas três ou quatro ampolas na pastelaria do Coreano e voltar pra casa. Mas tive que estacionar sob a marquise do Teatro Municipal, a uns cinqüenta metros do coreano. Um estrondo, mais sentido como tremor que ouvido, me fez olhar para cima. E ver o céu constipado, ventre roxo que não caga há uma semana.
Foi, então, que depois de nem sei quantos anos, saído de nem sei de onde, veio meu pedido, que Thor segurasse aquela merda toda por uns 40 minutos, tempo pra eu estar em companhia do meu rum, em casa. Ou Thor não me ouviu ou o deus estava com diarréia naquele dia. O ar ganhou peso, meus tímpanos sentiram a compressão, os barômetros ficaram loucos e toda aquela merda veio abaixo. Uma tormenta inédita nos últimos 20 anos. A marquise não valeu de nada, ventava para todos os rumos, era possível ver os pingos se cruzando em todas as direções, pernilongos líquidos me picavam em todas as minhas latitudes, rosto, costas, pernas. Enxurradas de raios erodiam a atmosfera, lombrigas de alta-tensão naquele ventre que se aliviava de sua carga podre.
Trovejou uma voz ao meu lado, sem me ter dado conta da chegada de seu emissor, ribombou uma voz:
“Bela borrasca! Primorosa!”
Porra!!! E lá estava o cara. Ele. Não o loiro dos quadrinhos, não aquele de anúncios de xampú. Sim o abrutalhado, o que arrota à mesa, o vermelho. Nem olhava para mim, sua mira era exclusiva para a tempestade, sua cria. Ele. A bordo de seus 2,10 metros e de seus 270 quilos (a carne dos deuses nórdicos é três vezes mais densa que a nossa), olhava embevecido para a sua criança mal-criada, um pai a sorrir com as traquinagens da filha. Cabelos e barba da cor da palha de aço oxidada, corpo maciço, nada daqueles corpos desenhados dos viadinhos de academia, uma única massa de braços, tronco e pernas. Trajado com botas, calças e uma manta que lhe caía por sobre os ombros, tudo de couro, couro de rena ou alguma coisa do gênero, couro não-curtido, cheirando mal, cheirando ainda ao seu dono original. E na cintura, pendurado à esquerda, o martelo. Mjolnir, o rompedor de tormentas. Um bloco, quase um monolito do mineral Uru. Mjolnir também parecia vivo, parecia regojizar-se. Pequenos coriscos acendiam-se em seu interior, riscavam seu corpo, alguns corriam pela sua superfície negra e saltavam ao ar, fagulhas percorrendo seus veios como sangue nas artérias. E repetiu: “Belíssima borrasca! Esplendorosa!
Não falava comigo. Consigo mesmo. Um artista a admirar sua obra, uma vaca lambendo sua cria. Se me é permitido um trocadilho sincretista: um Thor narcisista.
Inesperadamente, dirigiu-se a mim.
“Não dava para segurar essa, amigo. Bonita demais para se adiar, não concorda?”
“É. Quer dizer que me escutou?”
“Claro que sim, mortal. Eu sempre escuto, fazia tempo que não me pedia ajuda. Deixou de crer em mim?”
Devo ter vestido uma expressão do mais puro espanto, terror, surpresa, incredulidade, tudo misturado.
“Não se exaspere, mortal, sei que me pedia sem verdadeiramente acreditar, mas há eras que não estou podendo escolher muito os pedidos dirigidos a mim, por isso atendia até aos descrentes, como os seus”.
“E não os atende mais?”
Caralho! Eu tava lá falando com um deus. E onde estavam todos aqueles “vós”, “miladys” e “milordes”? Deuses não falam sempre na segunda do plural? É claro que não, sempre foi óbvio. Os deuses são rebentos do povo, do que o povo quer acreditar e o povo é analfabeto. Segunda do plural... Só mesmo eu para acreditar nisso.
“ Se eu os atendo, ainda? Por acaso você é cego?”
Tudo bem, eu tinha merecido a martelada.
“Sabe o que é, mortal? Depois que pregaram aquele rapaz barbudo, boa-praça, que sempre dava a outra face, numa cruz, comecei a perder meus crentes. Não só eu, outros deuses, também. Fomos reduzidos a lendas, superstições. E sabe como é, né? Sem crentes, sem poderes. Sou bem menos poderoso, hoje.”
Olhando para aquele rochedo de Gibraltar feito em carne e ossos era difícil imaginá-lo mais poderoso.
“Quer dizer que não teria sido capaz, ainda que quisesse, de atender-me hoje? Quer dizer que não é mais capaz de controlar as tempestades?”
“Claro que ainda sou, mortal. Mas isso não me dá mais prazer, fazia para impressionar os mortais com minha força, amedrontá-los com meu poderio. Hoje, prefiro deixá-las livres, dá-me mais júbilo as ver assim, correndo pelo pasto etéreo com suas crinas desgrenhadas.” “Pois é. Eu também gosto de apreciar uma boa tempestade, mas prefiro fazê-lo de minha casa, na companhia de uma boa bebida.” “Haaaaa!!!!! Você chegou ao ponto, mortal!!!”, e deu-me um “tapinha” no ombro que deve ter deslocado minha omoplata. “Deixemos de coisas e cuidemos da vida. Conduza-me a uma de suas tabernas. Beberemos do bom mulso.”, com uma alegria na face da qual só os deuses bêbados são capazes.
O tal do mulso é uma mistura de água e mel que pode ser fermentada, tornando-se alcoólica. Chamada também de hidromel, era usual entre os nórdicos adoradores de Odin e companhia.
Tentei explicar que não acharíamos mulso em local algum da cidade e lhe expus as qualidades da cerveja. Um deus esquecido não pode lá exigir muita coisa, ele me disse, resignado. Num gesto quase imperceptível de dedos, pôs a tempestade para ninar. Cessou tudo. Chuva, coriscos, trovões.
Problema: onde levar Thor? Onde levar um ogro daqueles sem que ele chamasse muita atenção? Onde até um deus passaria despercebido? Resposta fatal e inevitável: o Bar do Laércio. No Laércio, um centauro servindo ao balcão seria normal, o ET de Varginha no banheiro, mijando ao seu lado, não causaria surpresa. “Resolvido, então, mortal. À estalagem desse bom homem Laércio.” O Laércio, um bom homem... Esses deuses crêem em cada coisa.
(continua...)
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