Adélia Prado é um dos maiores nomes da literatura
brasileira. Escritora de prosa e verso, a sua impactante obra..., que traz um
retrato bucólico e melancólico da natureza humana, com suas idiossincrasias a
tangenciar a fé, a família e a sociedade ao redor..., já foi adaptada com muito
sucesso para o teatro (Dona Doida e Duas Horas da Tarde no Brasil)
e o balé (O Sempre Amor), mas nunca esteve no Falas ao Acaso. Uma vez
que há farto material de estudo sobre a sua arte literária, principalmente na
internet (cito alguns links em para saber mais), vou me ater apenas à
postagem, cujos poemas selecionei de Bagagem (Imago, 1975): Impressionista;
Endecha das Três Irmãs; Ensinamento; e de O Coração Disparado
(Nova Fronteira, 1978), que mereceu o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira
do Livro: Linhagem; Roça.
IMPRESSIONISTA
Adélia Prado
Uma
ocasião,
meu
pai pintou a casa toda
de
alaranjado brilhante.
Por
muito tempo moramos numa casa,
como
ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.
ENDECHA
DAS TRÊS IRMÃS
Adélia Prado
As
três irmãs conversavam em binário lentíssimo.
A mais
nova disse: tenho um abafamento aqui,
e pôs
a mão no peito.
A do
meio disse: sei fazer umas rosquinhas.
A mais
velha disse: faço quarenta anos, já.
A mais
nova tem a moda de ir chorar no quintal.
A do
meio está grávida.
A mais
cruel se enterneceu por plantas.
Nosso
pai morreu, diz a primeira,
nossa
mãe morreu, diz a segunda,
somos
três órfãs, diz a terceira.
Vou
recolher a roupa do quintal, fala a primeira.
Será
que chove?, fala a segunda.
Já
viram minhas sempre-vivas?, falou a terceira,
a de
coração duro, e soluçou.
Quando
a chuva caiu ninguém ouviu os três choros
dentro da casa fechada.
ENSINAMENTO
Adélia Prado
Minha
mãe achava estudo
a
coisa mais fina do mundo.
Não é.
A
coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele
dia de noite, o pai fazendo serão,
ela
falou comigo:
‘Coitado,
até essa hora no serviço pesado’.
Arrumou
pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me
falou em amor.
Essa palavra de luxo.
LINHAGEM
Adélia Prado
Minha
árvore ginecológica
me
transmitiu fidalguias,
gestos
marmorizáveis:
meu
pai, no dia do seu próprio casamento,
largou
minha mãe sozinha e foi pro baile.
Minha
mãe tinha um vestido só, mas
que
porte, que pernas, que meias de seda mereceu!
Meu
avô paterno negociava com tomates verdes,
não
deu certo. Derrubou mato pra fazer carvão,
até
o fim de sua vida, os poros pretos de cinza:
‘Não
me enterrem na Jaguara. Na Jaguara, não.’
Meu
avô materno teve um pequeno armazém,
uma
pedra no rim,
sentiu
cólica e frio em demasia,
no
cofre de pau guardava queijo e moedas.
Jamais
pensaram em escrever um livro.
Todos
extremamente pecadores, arrependidos
até
a pública confissão de seus pecados
que
um deles pronunciou como se fosse todos:
‘Todo
homem erra. Não adianta dizer eu
porque
eu. Todo homem erra.
Quem
não errou vai errar.’
Esta
sentença não lapidar, porque eivada
dos
soluços próprios da hora em que foi chorada,
permaneceu
inédita, até que eu,
cuja
mãe e avós morreram cedo,
de
parto, sem discursar,
a
transmitisse a meus futuros,
enormemente
admirada
de
uma dor tão alta,
de
uma dor tão funda,
de
uma dor tão bela,
entre
tomates verdes e carvão,
bolor de queijo e cólica.
ROÇA
Adélia Prado
No
mesmo prato
o
menino, o cachorro e o gato.
Come a infância do mundo.
*
ilustrações.joba.tridente.2020
Adélia
Luzia Prado Freitas (Divinópolis-MG:
13.12.1935) é escritora de prosa e verso e filósofa. A sua obra desconcerta e
emociona o leitor ao falar das idiossincrasias das mulheres e dos homens
interiores. É da sua autoria em poesia: Bagagem (Imago, 1975); O
Coração Disparado (Nova Fronteira, 1978); Terra de Santa Cruz (Nova
Fronteira, 1981); O Pelicano (Rio de Janeiro, 1987); A Faca no Peito
(Rocco, 1988); Oráculos de Maio (Siciliano, 1999); Louvação para uma
Cor (?); A duração do dia (Record, 2010); Miserere (Record,
2013); em prosa; Solte os Cachorros (Nova Fronteira, 1979); Cacos
para um Vitral (Nova Fronteira, 1980); Os Componentes da Banda (Nova
Fronteira, 1984); O Homem da Mão Seca (Siciliano, 1994); Manuscritos
de Filipa (Siciliano, 1999); Filandras (Record, 2001); Quero
minha mãe (Record, 2005); Quando eu era pequena (2006);
Para saber mais: Wikipédia: Adélia Prado; Releituras; Adélia Prado; UAI: Adélia
Prado defende o poder da arte de motivar o cidadão para enfrentar a crise; Revista
Versalete: Valentina Thibes Dalfovo: Melhor
é ser: a (anti)modernidade na obra poética de Adélia Prado; Maira
Carmo Marquez: A poesia de Bagagem, de
Adélia Prado; Livre Opinião; “Poesia
reunida” para celebrar os 80 anos de Adélia Prado; Rodrigo Portella e Ana
Lúcia de Araújo Portes: Profano-Cotidiano-Sagrado:
A Poesia de Adélia Prado em Diálogo com Mircea Eliade; Raimunda Alvim Lopes
Bessa: A Arte de Um
Vitral: fragmentos do cotidiano em Adélia Prado; Leila Cristina Fajardo
Nicolitto: Adélia
Prado e o Diálogo Com Mulheres Bíblicas; Maraisa Daiana da Silva Freire e
Talita Dias Tomé: Bagagem,
de Adélia Prado: O Lugar da Família; Ana Lúcia de Araújo Portes: Adélia
Prado: Um
olhar sobre o sagrado no cotidiano;; Fabio Scorsolini-Comin e Manoel
Antônio dos Santos: A
etérea duração do dia: gênero na poética encarnada de Adélia Prado; Paloma
do Nascimento Oliveira: Cotidiano,
religiosidade e erotismo em Adélia Prado; Antonio Miranda: Adélia
Prado; Sandra Mara Stroparo: O espelho de vênus,
poesia e experiência em Adélia Prado; Felipe Fortuna: As
Contradições de Deus (sobre a poesia de
Adélia Prado); Memória e Pensamento - Carlos Neiva: A
Teologia dos Versos de Adélia Prado; Aline Gisele Roskosz B.: A
presença imagística da natureza na poesia de Adélia Prado - um diálogo com a
ecocrítica; Vilson de Oliveira: Ecos na Poesia de
Adélia Prado; Cândido: Entrevista:
Adélia Prado - Sem Ponto Final; Germina: Entrevista: Adélia Prado;
Tiro de Letra: Adélia Prado
no Roda Viva; Templo Cultural Delfos: Adélia
Prado – o poder humanizador da poesia.
* Visite o FALAS AO ACASO e conheça a obra literária de autores brasileiro e estrangeiros.
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