Há o dia em que parece que tudo pode ser feito. Esse dia, representa geralmente 1 a cada 50 dias. Os outros 49 parecem ser de erros. E às vezes, são. Xadrez mexe muito com o psicológico, ainda mais perder, não apenas ser derrotado por ter ido contra uma estratégia superior, mas por erros primários que poderiam ser evitados, falta de confiança no que é feito, e principalmente impulsividade. Se jogar levando tudo como "apenas um jogo": perde, Se entrar com medo do adversário, porque viu que ele joga bem, ou ganha de quem lhe vence: perde também. Como diz o reverendo no Pawn Sacrifice, "xadrez é a toca do coelho."
[A seguir você lerá
um conto sobre superação, como as narrativas inspiradoras nos propiciam, um
jovem em sua jornada de herói, descobrindo sua força interior para derrotar inimigos
que julgava inabaláveis.]
Mentira, não é nada
disso.
Tudo começou em 2006 aos 12, estava eu naquele ano
enfrentando dois dos maiores medos que uma criança arrogante temia: andar de
bicicleta e aprender xadrez. Desde dos 9 alguns amigos queriam me ensinar, mas
sempre recusava, achava um jogo complicado, sem graça, chato, só para adultos e
intelectuais. Preferia coisas mais “leves” como dominó e damas, o medo de sair
da zona de conforto, infelizmente, era um dos maiores pontos de ruptura do
retardadinho da 6º série. Digo isso, porque nessa idade, eu era o tipo de
pessoa que hoje não consigo tolerar, me intitulava de “F.... – O Gênio”, não
apenas o mencionava, mas assinava assim em qualquer desenho ou trabalho
escolar. Tinha estudado até os 11 em colégios particulares, não tão caros, mas
superiores a muitos públicos, e era sempre o “engraçadinho” da sala, corrigindo
professores e qualquer um que aparecesse. Aos 12, minha mãe me jogou em um
colégio público periférico, ao estilo “Só os fortes sobrevivem”, apesar das
brigas por besteiras, típicas da idade, notei que lá havia algo além do futebol
–que sempre fui ruim, e apático sobre- das outras instituições: aquele mesmo
jogo de tabuleiro, com peças complexas e estranhas, onde usava-se todos os 64 quadrados, e o objetivo era mais do
que “comer” todas as peças do oponente. Poderia ser uma nova forma de competir,
e isso era (e é) sempre bom. Cheguei
para um garotinho entre 7 / 8 anos e pedi para ele me ensinar, e o que ele
disse no geral foi:
“O objetivo é dar xeque-mate. Essa é a Dama,
a peça mais importante do jogo, a segunda é o Rei (?!),
tem os Peões que são fracos e só servem para andar pra frente e trocar nos
outros, as Torres na horizontal e vertical, Bispos nas diagonais, Cavalos
andando em L sempre três casas, podendo pular outras peças. O Rei do cara anda
para qualquer lado, só que só uma casa. Se colocar ele na linha de tiro de uma
das suas peças, é xeque. Se ele não tiver para onde ir, você vence.”
Apesar das dezenas
de bugs, principalmente em como as
peças se moviam, parecia ser fácil, e cada vez ia me entusiasmando com aquilo,
mesmo levando dezenas de mates de Peões e desistindo por perder a Dama com
facilidade. Chegaram os torneios, e eu sempre os perdia. Tinham alguns com
mais experiência que se admiravam de alguém perder tanto e sempre querer estar
jogando. Mas não se comova fácil. Existiam fatores concretos para eu ter
passado anos sem evolução:
1. Subestimar a inteligência de quase todos,
esperando só que cometessem um erro estúpido para vencer.
2. Não parar para estudar nada de xadrez, apenas
jogar e pronto.
3. Querer atalhos para o sucesso. Um complemento
do tópico anterior, ao invés de procurar saber o que eram variantes, realmente
pensar, eu só queria saber de “jogadas milagrosas”, ou seja, pequenos truques
para tentar dar mate nos iniciantes.
4. Culpar o acerto do inimigo, e não o próprio
erro que possibilitou a vantagem a ele.
E não é fácil se livrar desses cânceres emocionais. É uma luta diária.
Pelo contrário. Se olhar e assumir total responsabilidade pelas próprias
falhas, pode ser a primeira vista mais doloroso que falhar. Assumir que não tem
talento para uma das coisas que mais gosta na vida, que perderá mais do que vai
vencer, por anos, dedicará extensas horas, para quem sabe, ter uma chance de
ser bom. Como o vídeo mostra:
Continuando o “enredo”, entre os 15 aos 17,
eu já vencia mais do que perdia. O que não se categorizava uma vitória, mas um
desperdício de empenho, pelo fato de estudar em outro colégio e jogar contra
pessoas não tão boas quanto da instituição anterior. O ego se alimentava diariamente quando se chega em um lugar e se
pode mostrar que é o melhor dali, com folga. O famoso “envaidecimento do homem”
como pontua a Bíblia. Eu agora era o “campeão”. Mas bater em quem não sabe se
defender direito deve ser a natureza de um vencedor? Nunca. Ainda nos 17,
conheci um dos que viria a ser um dos meus maiores amigos, hoje em dia o chamo
de Kal-El pela semelhança
comportamental dele com o Super-Homem. Eu na minha pose de sábio precoce,
olhava para ele, que se vestia e falava o Will de “Um Maluco no Pedaço”. Eu o
esmagava, e ele só ria, e falava: “Você é bem esperto, eu só jogo há um mês,
vamos ver como eu me saio quando eu treinar nesse final de semana”. É claro que subjuguei “Como assim esse cara acha que em menos de dois meses vai me
superar? Logo eu que já jogo há cinco anos!”. Resultado da revanche na
segunda-feira: 4x0 para ele.
“Porra, esse bicho tá com
sorte. É claro que amanhã ele perde.”
E fui para casa, e não treinei, afinal, eu era o “campeão”, e ele alguém de
“sorte”. Próximo placar: 6x2. E disso foi piorando. Trinta ou quarenta derrotas
depois, o confessei:
-- Por
que se finge de otário, estilo maloqueirinho, se é tão inteligente?.
-- Para ver quem pode ser meu
amigo de verdade a ponto de me dizer isso na cara.
-- Só treinou por duas noites?
-- Só. Do jeito que você é, vi
que se eu não lhe derrota-se, ia sempre me enxergar como alguém inferior, eu
tinha que lhe dar uma lição, para aprender sobre respeito às pessoas.
E o que alguém de 17 anos, quase um adulto,
tirou de lição disso? Que o esforço gera resultados? Não. Que o mundo era
injusto, que alguém que nem gostava tanto de xadrez tinha nascido com talento
natural, enquanto eu não. Segurei – vergonhosamente –- esse pensamento até
2014, aos 20. Ainda nos 17, eu, ele e mais uns dois amigos começamos a jogar em
um clube, e dali comecei a conhecer os verdadeiros massacres. Ele ainda
conseguiu bater vários, até venceu um campeonato lá, enquanto eu não. Com o
tempo eles desistiram de ir, se entediaram, mas eu ia. Com a vaga esperança,
agora menos arrogante, esperando que alguém me treinaria ali. Apesar pretensioso, ainda tinha o erro de esperar a ajuda do próximo, se fosse em
outro esporte, talvez até a tivesse recebido. Mas não nesse. Onde é o puro
confronto de egos, não por acaso os maiores enxadristas eram extremamente
egoístas, individualistas e obsessivos. Com o tempo, fui diminuindo minha ida
na Federação. Sempre perdia mesmo, só conseguia ganhar raramente de alguém,
mesmo assim outro novato, que também desistiam com o tempo. Era um confronto
paradoxal de um cabeça dura que acha que não pode desistir batendo nas mesmas
rochas.
De 2014 para cá, comecei a jogar mais
“sério”. Assistir partidas com mais frequência, analisar posições, descobri o
Fischer (antes, só conhecia o Kasparov). Comecei a me fixar mais. Após anos jogando em diversos sites,
encontrei Jesus o mais completo de todos, cujo nome é Lichess. Esqueci de mencionar
que também estava acostumado a jogar de “qualquer jeito” em sites como Gamezer e Spark Chess e vencer a maioria. Nesse site minha primeira
vitória veio na 21º partida.
Todas
as anteriores, derrotas esmagadoras. Mas continuei “lutando”. Quando consegui
as primeiras vinte partidas vencidas, o dano derrotas já estava perto de
oitenta. Ao que parecia, a cada passo para frente, vinham quatro para atrás,
dessa forma, até Aquiles um dia seria mais forte que o paradoxo com a tartaruga
e a capturaria antes de eu vencer de verdade. As partidas se acumulavam, mas eu
não parava para as estudar, memorizar, deixava para depois. Mesmo assim me
senti pronto para disputar o campeonato estadual, no mesmo clube de outrora. Só
fui uma vez, e perdi todas, algumas cheguei até perto de ganhar, era o
progresso? Comecei a estudar um livro, isso eu contei aqui. Comecei a ensinar xadrez e sair desafiando a todos, a
fim de massificar o esporte, deixando uma satisfação para cada criança que
largava uma rede social para tentar resolver um problema enxadrístico.
O professor, que de fato tinha que fazer
isso, tinha uma visão elitista do jogo, se interessava apenas nos que já
chegassem sabendo, não tinha a paciência para tentar formar futuros melhores
jogadores. Minha visão era oposta, se concentrava em montar um pequeno exercito como da escola a qual eu tinha estudado. Isso nos levou a confrontos, nós
sempre jogávamos quando nos falavam, ainda fui o máximo de tolerante com a
protelação dele no ensino. No nosso placar, ficou algo em torno de 7x2, para
ele. Certa vez, ao questiona-lo sobre alterações indevidas que ele fez em um
torneio, prestes a acabar, ele sem argumentos me desafiou para uma partida
“tudo ou nada”, quem perde-se pediria demissão. E essa, senhores, é uma
daquelas vezes na vida, que uma palavra mal colocada pode nos fazer perder
tudo. Recusei, dizendo que o aceitaria se ambos tivessem três meses para
treinar. Dessa vez, ele que recusou.
Chegamos em 2015. Os que antes vinham jogar
xadrez voltaram para jogar com ele, e boa parte encontrou outra coisa mais
interessante para si, no caso, cards
de pokemon, celulares, e demais
coisas. Veio um desanimo, uma sensação de ter falhado. E isso se agravou quando
me colocaram para “trabalhar” com ele em um campeonato que ele organizou.
Carregar cadeiras, organizar as coisas, ser arbitro, coisas que eu nem
ligava... Quando não se fazia para um inimigo. Ao olhar todas aqueles jovens
que jogavam ainda pior que eu aos 12, bem como ser impedido de espalhar o
xadrez, e resolver o problema que eu nem devia tá mais metido, veio uma
profunda aversão pelo xadrez, aquela explosão nuclear interna feita de orgulho
que destrói nosso raciocínio. Ao sair dali, a única vontade era destruir
qualquer tabuleiro que vinhe-se a frente. Esse golpe, mesmo que dado sem
intenção de me colocar lá, tinha atingido o “eu de 12”, preso. Passei quase
seis meses sem jogar, e quando retornei, já em dezembro de 2015, não tinha a
mínima fé ou concentração no que eu fazia. Tudo se bloquava,a mínima
coordenação de peças não conseguia funcionar, só de ver alguma coordenada do
jogo, já doía a cabeça. Nesse mesmo tempo, por coincidência, encontrei pelo g+
o Sr. Silvio Antônio, que
como deve ter reparado, reascendeu os posts de xadrez aqui no blog. A
principio, eu mal conseguia ler e compreender qualquer coordenada, mas fomos
jogando aos poucos. Fui voltando devagar, lutando de pouco a pouco, quando
surpreendentemente dei um quase bem executado contra-ataque contra esse jogador mais forte.
Como Bruce Wayne em Ano Um, percebi que ainda
me faltava o método. Mas como não desistir quando se perde até em uma posição
ganha? Foi vendo por acaso alguns dos jogos do Anatoly Karpov que percebi o
fator principal. Qual era o peão f7 do meu comportamento: A impulsividade. De
repente veio todo o clarão, de centenas de jogos que eu tinha perdido por
avançar como um cachorro louco, atacando sem parar, até o adversário em um
método de defesa, causar um ponto de ruptura no ataque e virar tudo. Nesse
referido duelo do Karpov, não lembro contra quem agora, mas coloco no futuro,
ele dava uma aula de frieza. Matava o exercito do adversário bem devagar, quase
não trocava peças, e chegava a 80 lances. Não atoa ele era conhecido como
“Homem-Máquina”.
Eu redescobri o xadrez. Não se trata de mirar logo um ataque,
se trata de machucar, ameaçar, pressionar, enganar, ir se posicionando
lentamente melhor, visando uma posição sólida nos próximos dez lances,
aguardando sempre a mais forte resposta do adversário a cada lance, e
obviamente se preparando para ele. As derrotas continuam, mas as vitórias
aumentaram. Quase dois meses parando quase tudo para treinar horas de domingo a
domingo depois, eu retorno ao clube. O referido campeonato, um domingo por mês,
até dezembro para decidir o campeão da categoria rápido (20 min cada) do
estado. Seis rodadas, algumas horas, e eu decidido a dar o meu melhor, mesmos
sabendo que ainda não posso vencer, mas podendo fazer disso um guia de onde eu
devo trabalhar com mais afinco. Finalmente os enfrentei, dia 17 desse mês, a
maioria novato, mas alguns que eu já havia enfrentado e perdido há cinco anos
atrás. E o resultado foi a derrota.
Em todas as partidas.
Sem chegar perto de vencer.
Perdendo logo nas aberturas.
Mas eu não tinha lhe avisado que isso não era
uma história sobre superação?
Por mais que eu tivesse me abalado, não foi
como antes. Agora eu fui capaz de discernir o que houve depois. Memorizar onde
fui derrotado, ir buscando variantes, pesquisando cada vez mais conteúdo
diversificado.
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