Escrevi esse texto pensando no público majoritário do blog, que sempre me tratou bem nos comentários, e em alguns amigos homens com quem venho discutindo tudo isso nos últimos meses. É, antes de tudo, a perspectiva de uma mulher que cresceu ouvindo que era “Maria João” porque preferia conversar com moleque, videogame, HQ e assunto espinhoso a rodinha de fofoca. Sempre tive mais amigos homens do que amigas, não porque eles fossem “melhores”, mas porque eu via de perto o que muitos só enxergam de fora: o cara que faz piada o tempo todo para ninguém notar que está quebrado, o que vira palhaço no grupo para não ser descartado, o que finge estar de boa com a solidão porque aprendeu que reclamar é coisa de fraco. Depois de ouvir desabafos sobre medo de falsa acusação, pisar em ovos na academia, desviar na ciclovia para não parecer perseguidor e engolir piada atrás de piada sobre aparência, idade e fracasso, ficou impossível fingir que esse ressentimento não existe. Ele não nasce de um vazio. Nasce de anos sendo tratado como suspeito em potencial e, ao mesmo tempo, como alguém que aguenta tudo sem direito de dizer que está doendo. É dessa encruzilhada que essa carta aberta saiu.
O ponto é que existe um tipo de dor masculina que ninguém gosta de admitir. Não é a do personagem caricato que se acha macho-alfa. É a do sujeito normal que vive em posição de réu preventivo. Ele vê notícia de acusação falsa e pensa “poderia ter sido comigo”. Ele envelhece e descobre que zombar da calvície, da barriga, do salário e da falta de sucesso amoroso é entretenimento aceitável, enquanto o sofrimento de outros grupos vira pauta séria. Ele percebe que chorar é motivo de deboche se vier de homem, mas exigência moral se vier de outro lado. Isso acumula. E a tentação é transformar essa sensação em lente única para olhar o mundo.
A parte perigosa começa aí,
quando a dor vira identidade. Quando qualquer comentário sobre machismo passa a
ser lido automaticamente como ataque pessoal. Quando toda situação ruim vira
prova de que “o mundo odeia os homens”. Não é tudo paranoia, existem exageros,
leis mal desenhadas, dois pesos e duas medidas. Mas se cada evento é encaixado
à força num grande complô, qualquer freio que você tem hoje pode ir sendo
empurrado um pouco mais para frente. O risco não é virar monstro de um dia para
o outro, é ir se convencendo de que ser justo não compensa e que uma hora
“alguém tem que pagar”.
Tem muito homem bom andando nessa
corda bamba. Não encosta em ninguém, não quer ver ninguém destruído, não
fantasia atrocidade. Só que carrega tanta raiva engolida que começa a se
acostumar com a ideia de que seria quase “justo” devolver a porrada para o
mundo. E do mesmo jeito que existe quem use trauma como desculpa para ferrar
inocente, existe homem a um empurrão de fazer merda em nome da própria dor. Não
porque nasceu cruel, mas porque passou anos repetindo para si mesmo que o
sistema é tão injusto que não merece a versão decente dele.
Também não dá para fingir que o
sofrimento masculino é levado a sério. Piadas com suicídio de homem circulam em
mesas e timelines onde qualquer outra dor seria tratada com extremo cuidado. A
publicidade, a comédia e até certos discursos progressistas adoram o homem como
estorvo, piada ou ameaça. Negar isso é tapar o sol com a peneira. Só que usar
essa distorção como licença para virar carrasco emocional de todo mundo é
covardia. Se o mundo trata seu desconforto como insignificante, você tem duas
opções: provar que ele existe vivendo melhor ou provar que ele existe virando
exatamente o que esperam que você seja.
A pergunta incômoda é o que fazer
com essa raiva.
Você pode transformá-la em
combustível para treinar melhor, estudar mais, cuidar do próprio dinheiro,
fortalecer vínculos com quem presta, ajustar sono, reduzir vícios, procurar
ajuda quando der. Isso não vai render aplauso, não vai virar discurso inspirador
em rede social, não tem glamour. Ou você pode deixar que o ranço vire o eixo da
sua personalidade, se fechando, atacando tudo e todos, até virar o vilão
genérico da própria narrativa. O primeiro caminho é chato e constante. O
segundo é fácil e, a longo prazo, destrutivo.
Não estou escrevendo isso para
pedir que você vire “desconstruído fofo” que chora em vídeo e pede desculpa ao
universo. Estou dizendo algo bem mais seco: o sistema é injusto em vários
pontos, mas não vai mudar porque você ficou mais amargo. Você não controla lei,
manchete, algoritmo nem discurso de grupo organizado. Você controla se vai
deixar que tratem seu ressentimento como coleira. Homem ressentido demais é
facilmente manipulável. Homem que sabe que está ferido, reconhece as
distorções, mas não aceita ser mascote de nenhuma narrativa, incomoda muito
mais.
No fim, a escolha é menos épica
do que parece. Ou você vira mais um cara decente que deixou a raiva consumir
tudo até sobrar só ironia e crueldade. Ou você admite que está machucado,
aceita que parte da tua revolta é justa e parte é exagero, e ainda assim decide
não viver em guerra permanente com o mundo inteiro. Não porque alguém “merece”
isso de você, nem porque o sistema vai te agradecer. Mas porque você se
recusa a ser moldado pela pior caricatura que fazem de quem você é. Se
homens bons com raiva acumulada são perigosos, que esse perigo seja para
qualquer narrativa que queira te reduzir a predador ou cachorrinho arrependido,
nunca para as pessoas que não te fizeram mal.
Se você chegou até aqui e em
algum ponto pensou “ok, isso tem a ver comigo”, eu quero que você me diga onde
essa raiva está encostada em você. Não precisa vir com texto bonito, pode ser
simples: em que momentos você sente que virou réu sem ter feito nada, em que
situações você percebe que está evitando gente, lugar ou conversa porque não
quer arriscar ser mal interpretado, em que hora bate aquele pensamento de
“tanto faz eu tentar fazer o certo ou não”. Me conta se você já segurou vontade
de pedir ajuda por medo de virar piada, se já engoliu humilhação no trabalho,
em relacionamento, na família, para “não dar problema”, se já sentiu que todas
as dores do mundo são levadas a sério menos as suas. E, principalmente, o que
você faz com isso.
No meu próximo post, eu volto a
algo mais leve como, quem sabe, outro top 10 da Salvat. Mesmo vocês sabendo que
sequências não são o meu forte...
