É difícil de explicar para quem não viveu a época o que foi a tal “Tartaruga Ninjamania”. Pessoalmente, eu peguei essa época no seu auge e, apesar de ter sido criança, me lembro bem. Ela veio a rebote da Batmania do filme de 1989 e aconteceu quase ao mesmo tempo. Se não estou enganado, o desenho clássico das Tartarugas Ninja chegou em 1989 no Brasil, no Xou da Xuxa, na época em que a Globo era a toda-poderosa. Então, por volta de 1990, só se falava em Tartarugas Ninja, era uma febre.
Sobre
a criação das Tartarugas Ninja, já se é sabido. Elas foram criadas por Kevin
Eastman e Peter Laird em 1984, e provavelmente é a HQ independente de “super-herói”
mais bem-sucedida de todos os tempos. Eastman e Laird praticamente faziam a HQ no
porão de sua casa, e o sucesso foi muito além do que ambos esperavam, graças à
adaptação para desenho animado em 1987, que se tornou uma febre mundial e
ajudou a vender inúmeros brinquedos, vídeo games e todo tipo de produto correlato.
Um grande sucesso de copyright. Encontravam-se as Tartarugas estampadas em
desde mochilas até copos de papel.
A HQ com as primeiras histórias coloridas dos
personagens chegou a ser publicada por aqui pela Editora Sampa, em 1990. Tenho
essa revista, mas está mais difícil de pegar. Também tenho a edição da Devir,
que, apesar de ser em preto em branco (como originalmente as primeiras histórias
das Tartarugas eram), tem mais histórias que a da edição da Sampa. Em sua criação,
Eastman e Laird inspiraram-se nos dois quadrinhos de super-heróis mais vendidos
no início dos anos 80, ambos da Marvel, que eram os X-Men de Chris Claremont e
John Byrne e o Demolidor de Frank Miller. Tanto que a referência a “mutante” é
concernente aos X-Men e há várias referências também ao Demolidor de Miller. O
Clã do Pé, a organização do arqui-inimigo das Tartarugas, o Destruidor, é uma
paródia do Tentáculo, clã de ninjas malignos inimigos do Homem Sem Medo. Além
disso, canonicamente, a origem das Tartarugas está relacionada com a do
Demolidor, pois o mesmo isótopo radiativo que acertou Matt Murdock nos olhos,
quando ele salvou a vida de um velho cego de um atropelamento, também foi o mesmo
isótopo que caiu no esgoto e criou as Tartarugas.
Óbvio
que a HQ era para adultos e teve de ser adaptada para crianças para a animação,
tanto que o desenho clássico é galhofa total e bem infantil, com as Tartarugas
sendo umas brincalhonas. Tartarugas Ninja ainda tiveram três filmes de sucesso
(na verdade, dois; o terceiro foi um grande fracasso) nos anos 90, produzidos
pelo estúdio chinês Golden Harvest, mais vídeo game no arcade também de
sucesso, série live action pela Saban etc. Tartarugas Ninja tiveram animações
posteriores após a clássica, mas no Brasil não fizeram tanto sucesso porque
ficaram restritas à TV a cabo. A TV Bandeirantes chegou a exibir a animação em
CGI da Nickelodeon, mas teve o azar de ter sido bem na época
em que saiu a resolução do Conanda que proibiu propaganda infantil na TV
aberta, matando de vez os programas infantojuvenis.
O filme inicia-se
com Baxter Stockman (que no original é dublado por Giancarlo Esposito) sendo
perseguido pela organização TCRI, capitaneada por Cynthia Utrom. Baxter é capturado
pelos soldados da organização, mas sem antes de os mutantes que ele estava criando
escaparem, liderados pelo Supermosca criança, e o tal mutagênico (na verdade, o
Ooze) cair no esgoto. Só pelo sobrenome, já dá para inferir que Cynthia
provavelmente tem uma origem alienígena, pois Utrom é a raça do Krang,
tradicional vilão das Tartarugas.
Como na versão
clássica, as Tartarugas entram em contato com o Ooze e se tornam mutantes humanoides.
A grande mudança é Splinter (orginalmente dublado por Jackie Chan), que é uma
versão bem diferente das anteriores, seja na HQ original ou na animação. Na HQ,
Splinter era o rato de estimação de Hamato Yoshi, um assassino ninja do Clã do
Pé, que aprendeu ninjútsu observando seu mestre. Depois que Yoshi é assassinado
por Oroku Saki, o Destruidor, Splinter foge e entre em contato com o Ooze, se
tornando um rato humanoide. Por sua vez, no desenho clássico Splinter é na
verdade o próprio Hamato Yoshi, que se transformou em um rato antropomorfizado
por causa do mutagênico. O Splinter de
Caos Mutante na
realidade é um rato de rua, que se torna um rato humanoide após contato com o
mutagênico. Ele adota as quatro tartarugas bebês, porém teme e odeia os humanos
e não quer que elas conheçam o mundo exterior. O mais ridículo é que essa
versão de Splinter aprende ninjútsu vendo TV, com aulas de vídeo e filmes da
Shaw Brothers. O Splinter de Caos Mutante de fato fica parecendo
um tiozinho boomer. Leonado, Rafael, Donatello e Michelangelo
são quatro tartarugas mutantes adolescentes que querem conhecer o mundo
exterior e gostam da cultura pop dos humanos. Tenho de admitir que, nessa
versão, as tartarugas são e realmente se comportam como adolescentes. Até Leonardo
não é tão sério e responsável, e Donatello é um otaku fã de Attack
On Titan.
Tudo muda quando
as Tartarugas conhecem April o’Neil, aspirante a repórter adolescente. O quarteto
ajuda April quando ela tem sua scooter roubada, e Leonardo apaixona-se por ela.
Houve muita polêmica quando foi anunciado que April seria negra e entraria na “cota”
no filme. Teve até quem, por ideologia, defendeu que ela fosse originalmente
negra nos quadrinhos, o que não é verdade. April é originalmente branca nas HQs
e inspirada na primeira esposa de Kevin Eastman. Na versão para o desenho da
TV, tornou-se ruiva e jornalista, uma Lois Lane genérica. No desenho em CGI da Nickelodeon,
April foi rejuvenescida para uma adolescente. A bem da verdade, a April negra
vem desde a animação anterior das Tartarugas Ninja, mas Seth Rogen poderia ter optado
por uma April branca, se quisesse. A verdade é que a personagem mudou muito ao
longo dos anos e das mídias em que foi adaptada. E a mudança em April não foi
apenas a etnia, mas também no aspecto da beleza. A April “raiz” era uma mulher
bonita e sexy, enquanto a April de Caos Mutante é gordinha e
atarracada. No entanto, isso é uma tendência atual, de desconstrução da beleza
feminina na cultura pop, seja em filmes, animações, HQs, games etc. Se
no final dos anos 80 e nos anos 90, gostava-se de fazer mulheres bonitas e gostosas,
com corpos esculturais, a partir de metade dos anos 2010 se passou a querer embarangar
todas as personagens femininas mesmo.
April deseja investigar o bando do tal Supermosca (dublado originalmente por Ice Cube), que está por trás de vários roubos de tecnologia na cidade, e as Tartarugas decidem ajudá-la. Entretanto, elas logo descobrem que o bando do Supermosca é formado por mutantes, inclusive por Rocksteady (dublado originalmente por John Cena) e Bebop (dublado originalmente por Seth Rogen). Ao conhecerem outros mutantes, as Tartarugas criam empatia pelo Supermosca e cia., porém, quando elas descobrem que o plano do vilão é erradicar os humanos e criar mutantes em massa, as leva a combater o Supermosca em um apoteótico confronto final.
https://screenrant.com/is-splinter-gay-tmnt-mutant-mayhem/
Como
longa animado, Caos Mutante tem, sim, alguns pontos positivos, porém deve
incomodar os fãs mais tradicionais das Tartarugas por conta de mudanças. E,
como é um filme de Seth Rogen, há cenas de muito mau gosto, como a de April
tendo um acesso de vômito. Teve uma polêmica se Splinter seria gay no filme,
mas isso não é verdade. Ele acaba pegando uma barata mutante do bando do
Supermosca como namorada, e há umas cenas muito de mau gosto (para um filme
infantil) de eles se beijando de língua, mas, pelo que entendi, a barata é
mulher, sim. Tudo bem que vi o filme dublado e talvez na versão original em
inglês tenha uma ambiguidade maior sobre o gênero da barata. Tem o Destruidor
no filme? Sim, mas só na cena pós-crédito. Na sequência, dá a entender que
Cynthia Utrom irá atrás das Tartarugas e colocará o Destruidor atrás dela.
O
maior ponto positivo do filme para mim é mesmo a animação, que está realmente
muito bem-feita. Ela lembra pintura em grafite de hip-hop. Ficou bem
diferente mesmo. É preciso dar crédito aos diretores Jeff Rowe e Kyler Spears,
que foram diretores de animação muito competentes. Há inúmeras referências e easter
eggs para os fãs das Tartarugas, inclusive a música Ninja Rap, de Vanilla
Ice, que toca em um momento.
Tartarugas
Ninja - Caos Mutante será bem-sucedido? Não sei. Em tempos
como esses, em que há vários flops de bilheterias e sucessos
improváveis, como Barbie, não dá para afirmar nada. As Tartarugas Ninja podem não
ser mais a febre do início dos anos 90, porém elas continuam por aí, e sempre
estiveram. Sempre houve animações das Tartarugas ao longo dos anos, e filmes também.
Até os infames filmes produzidos por Michael Bay. Tartarugas Ninja é uma franquia
que vale milhões, e a Nickelodeon com certeza ainda investirá muito nela, até
mesmo porque ainda é uma franquia que tem apelo com as crianças. Nota 6,5 de
10.
0 Comentários