Houve época em que seguranças de ternos pretos revistavam os freqüentadores do bar do Laércio, Thor teria tido, à época, dificuldades de adentrar portando seu martelo. Ou os seguranças é que teriam passado sérias dificuldades. Em tempos de vacas magras, só há um porteiro, que anota os nomes no verso de um cartão onde se registra o consumo do bar. O único empecilho colocado pelo porteiro foi ter perguntado a Thor se o nome se escrevia com ou sem “h”. Com “h”, eu respondi ante a falta de entendimento do deus. Seriam os deuses uns analfabetos, como seus fiéis? E eu passei a vida acreditando naquela coisa da segunda do plural.
O bar estava mal-iluminado, abafado, merejando cigarro e uma meia dúzia de almas: o de sempre.
“Outra coisa, além do mulso, que vou ficar lhe devendo, Thor.”
“Mas que taberna pequena e fedorenta, mortal. Parece uma toca dos malditos Trolls, e ainda diz que me decepcionará ainda mais?”
“Pois é. Ficarei devendo aquelas mulheres carnudas e suculentas a dançar, se agitar e a servir as mesas, todas seminuas, ventres e seios de fora.”
“Há! Há! Há! Há! De onde tirou essa idéia, mortal? Em que lugar da gélida Escandinávia julga que as mulheres andem assim? Ainda que no interior aconchegante de uma taverna viking, junto a uma lareira, elas morreriam congeladas se trajassem a sua imaginação. Os nórdicos raramente vêem suas mulheres nuas ao todo.”
Verdade. Nunca havia pensado por aquele lado, pela prática. Mais uma fantasia destroçada de minha infância. Mas, também, de que merda serviria o pensamento se tivesse que se ater à prática. Doeu, apesar disso.
“E aí? Como vão as coisas, Laércio?”, perguntei, encostando-me no balcão que já tem até uma depressão justa para o meu cotovelo.
“Alguma coisa mudou na tua vida da semana passada pra cá?
Pois bem, aqui igualmente não.”, Laércio com a típica simpatia permitida a donos de bares de poucos freqüentadores, ele nem se deu com Thor ao meu lado, aliás como eu havia previsto.
“Sou Thor, estalajadeiro. Dê-me a mais generosa porção da sua bebida.”, e estendeu sua mão em aperto para o Laércio. O Laércio cumprimentou e olhou pra mim com cara de quem não entendeu picas. E nem estava interessado em entender.
Intercedi.
“Dois copos, Laércio, e uma garrafa de cerveja da mais barata.”
“A cerveja em garrafa ainda tá quente. Gelada só tem long neck e lata.”
O puto do Laércio sempre usa esse golpe. Nunca serve cerveja em garrafa antes das duas da manhã, estão sempre quentes. O negócio é que ele tem lucro maior na long neck e na lata, só libera a garrafa de 600 ml quando não tem mais jeito. Ele sabe que sei dessa sua mentira, sabe que eu sei que as garrafas estão geladíssimas, mas não liga, aplica o golpe mesmo assim.
“Bravo, estalajadeiro! Mande uma dessas quentes, é como gosto, de gelada nos basta as águas inclementes dos fiordes.”
“Manda uma quente pro cara, Laércio, ele prefere. E pra mim, uma long neck.”, e segurei, mas não muito, um riso de canto de boca para a cara de desgosto do Laércio. O Thor queria da quente, o Laércio tinha se fodido nessa, lá se ia seu lucro por água abaixo. Se bem que, eu já tinha previsto, quem iria se foder era eu. Improvável que o deus tivesse alguns reais em seus bolsos. A despesa certamente ficaria por minha conta. Como, de fato, ficou.
Thor pegou da garrafa de 600 ml e ela parecia uma long neck em sua mão. Pegasse uma long neck e ela seria uma daquelas ampolas de injeção. Levantou um brinde ao Pai Odin e emborcou. Puta que pariu, o cara era um sorvedouro. O líquido fez redemoinho dentro da garrafa, uma sucção cuja força achei que fosse arrancar o fundo da garrafa. Seiscentos mililitros de uma única talagada. Fiz sinal para que o Laércio trouxesse mais uma, das quentes, e fomos para uma das mesas. Já fazia conta do prejuízo. Sempre há contas a serem pagas quando se trata com deuses.
“Tá certo, mas em Asgard, o clima é mais ameno, lá as deusas circulam seminuas pelos salões suntuosos, carregando bandejas de prata repletas de ânforas do mais puro vinho. Elas vão até os guerreiros e despejam vinho em suas goelas, servem o vinho escorrendo entre seus volumosos e imortais seios.”, eu, empolgado, e imaginei-me como um daqueles afortunados deuses, escarrapachado num enorme estofado de peles, com uma dessas beldades em cada braço, molhadas de vinho e besuntada da gordura dos assados de carneiro.
“Há! Há! Há! Há! Você me diverte, mortal. Em Asgard é que a coisa fica feia, o Pai Odin não tolera putaria, e as deusas, nossas esposas, são as mulheres mais vingativas de todas as dimensões. Mesmo que mulheres circulassem nuas servindo vinho, duvido um deus asgardiano que as mirasse, as esposas asgardianas são terríveis”.
O bar do Laércio começou a encher, encher – fique bem claro, para os padrões do bar do Laércio -, entraram mais umas sete ou oito pessoas.
“Pensava mesmo que a vida dos deuses era só deleite, mortal?”
“Sim, afinal vocês são deuses”.
“Nada disso. A vida de um deus é das mais maçantes, ter de servir de exemplo e ainda aquele povaréu todo pedindo as coisas mais absurdas, como se fossemos capazes de milagres.”
“Ué, e não são?”
“Claro que não. Pedem-nos uma boa caçada, uma boa pesca, um bom tempo, uma boa esposa e, a mais absurda de todas, pedem-nos perdão, que os absolvamos. Que merda de diferença isso faz? A vida de deus não é fácil, mortal. E o que recebemos? Umas rezas insossas, um sacrificiozinho de um porco aqui, de um cabrito ali... Acredite, não é paga suficiente para tamanha aporrinhação.”
Curioso. Ninguém está satisfeito com suas ocupações, suas profissões. Todos se sentem injustiçados. O trabalhador braçal diz que sua vida seria melhor se fosse, sei lá, um bancário, entrar às 9 horas no serviço e sair às 16 horas, trabalhar em ambiente com ar condicionado; o bancário sonha com uma vida menos fatigante se vendo, sei lá, como professor, não mexer com dinheiro, ter hora de 50 minutos e duas férias por ano; o professor sonha-se médico, que sonha-se juiz e por aí vai. Ninguém se sente plenamente recompensado. Nem os deuses, fiquei sabendo.
“Além disso, os deuses, meu amigo, não são muito afeitos a prazeres. Nós criamos o prazer, semeamos essa idéia entre vocês, mortais, para que pensem que isso é o máximo que podem obter de suas vidas”.
“Bom, o dia em que eu estiver com uma gostosa em cada braço, besuntadas, a me derramar vinho pela garganta, deitado num amontoado de peles, vou achar, digo, vou ter certeza que será o máximo, o auge da minha vida”.
“Está enganado, amigo de Midgard. Tais prazeres carnais, longe de mim dispensá-los, nós os criamos para que vocês permaneçam saciados, contentes na sua condição de animal, para que não foquem sua atenção em coisas maiores.”
“Que coisa maior pode haver do que eu abraçado a duas deusas ruivas e peitudas, todas besuntadas?”
“Há! Há! Há! Há! Insiste nessa imagem, amigo mortal. O que há de maior? Ser um deus!!! O que te parece?”
Bem, quando penso em mim agarrado a duas deusas de crina da cor do fogo e dando trabalho a elas, implicitamente já me tenho como um deus. Como um mero mortal de quase 50 anos poderia dar conta? Mas nunca tinha pensado seriamente nisso. Até agora. Fiz sinal de que me esperasse, fui até o balcão e voltei com mais cerveja, uma long neck pra mim e outra ampola para o Thor. Traga seu amigo aqui mais vezes, me disse o Laércio, prevendo a quantidade de ampolas que Thor iria consumir. Pus a cerveja (a quarta ou quinta) à sua frente e metade dela já não existia na ampola quando me sentei e desatarraxei a tampa da minha long neck. Esse cara deve ser o Bukowski dos deuses, pensei.
“Peraí!!!”, eu já meio puto com aquele deus, “Você tá querendo dizer que enquanto nós, humanos, ficamos nos engalfinhando e fodendo, não percebemos que podemos ser mais que isso?”
E quem quer mais que isso, ser capaz de ficar engalfinhado e fodendo o dia todo? E quando se tem quase cinqüenta anos e se vê a potência decrescendo exponencialmente, é só nisso que se pensa. É somente a isso que almejamos, uma ninfetinha de seus vinte, vinte e poucos anos, se acabando em cima de nosso pau em riste. Quem é que quer ser a porra de um deus? Ainda mais agora, que sei que eles mal fodem.
“Exato, amigo mortal. O prazer carnal é para desviar suas atenções, para que não queiram também se tornar deuses. Perderíamos nossos empregos, enxerga? Os deuses criaram o sexo como uma espécie de suborno a vocês, nós mantemos seus membros duros e vocês nos adoram, nem pensam em tomar nossos lugares.”
“Enxergo, sim. Mas parece que não tem dado muito certo, não é? Você mesmo parece que tá meio assim de aviso prévio, prestes a ser demitido do panteão dos grandes deuses, sua audiência tá baixa, meu amigo de Asgard”, e pus naquele ‘meu amigo de Asgard’ todo o sarcasmo de que eu sou capaz, e com quase cinqüenta anos de prática, garanto que não é pouca coisa.
Puta que me pariu!!!! Lá estava eu, batendo de frente com um deus, provocando o cara acintosamente. Mas pudera... Primeiro o cara me jogou uma tempestade na cabeça, depois me teleportou até o bar do Laércio, me deu um prejuízo enorme (já se esvaziava a sétima ampola) e ainda veio dizer que a buceta é um suborno dos deuses, um cala-boca, uma propina para que permaneçamos não mais que macacos, veio dizer que nos manipulam a seu bel prazer. Convenhamos, o cara pediu pela minha falta de educação. Ele mereceu ouvir que já não estava também com essa bola toda. A mim, nenhum deus manipula, nunca lhes dei esse poder, nunca lhes dei minha crença. Acabei de falar e fechei os olhos. Esperando pela marretada em minha cabeça. A marreta de Thor versus minha cabeça. Seria uma briga das boas. A marretada não veio. Veio apenas uma pergunta, a mais prosaica de todas.
(continua...)
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