Alguém já viu algum comercial de xampu estrelado por uma modelo de cabelos rebeldes e indóceis? Não, claro que não. Todas possuem vastas, bem comportadas e esvoaçantes melenas; loiras, no mais das vezes. Não foi o xampu anunciado, vendido a dez, doze contos na prateleira do mercado, que conferiu aquelas madeixas de fazer inveja em bicho-da-seda à garota-propaganda. Ela já nasceu com aquela cabeleira, com aquela cachoeira de cetim, e, por isso, foi escolhida para ser a isca deste manjado conto do vigário mercadológico, dessa espécie de golpe do bilhete premiado, no qual se investe uma merreca com vistas a grandes lucros e resultados sem nenhum esforço, o que só evidencia a má-fé de ambas as partes envolvidas, do enganador, que de fato leva vantagem, e do enganado, que pensa que vai levar. Use, ou não, a modelo, o xampu que anuncia, em nada seus cabelos mudarão, nem para melhor nem para pior. Esse golpe pode ser e é aplicado a praticamente todos os tipos de produtos.
Outro
171 publicitário muito comum são os comerciais dos complexos
vitamínicos de A a Zinco. Quem já viu um magrelo, um barrigudo, ou um
mal-acabado protagonizando algum deles? Ninguém, né? Neles, desfilam
pessoas de diversas faixas etárias - há uma versão do produto para cada
um delas - sempre saudáveis, sorridentes, bem resolvidas e de bem com a
vida. No vídeo, elas se exercitam em academias, caminham ou correm à
beira-mar, pedalam alegres e etc a exibir suas formas perfeitas e bem
definidas, os seus corpos vitruvianos. Não foi o complexo vitamínico X
ou Y que lhes proporcionaram tais vitalidade e boa forma. Suas
proporções helênicas são fruto da prática longa, contínua e disciplinada
de bons hábitos alimentares e atividades físicas, e, por isso, foram
escolhidos para chamariz deste estelionato publicitário. Tomem, ou não,
os atletas, os polivitamínicos que anunciam, em nada suas saúdes e
formas físicas serão alteradas.
Agora,
em tempos de coronavírus, algum de vocês já viu uma propaganda
pró-isolamento social estrelada, a exemplo, por um trabalhador rural,
que planta, de sol a sol, o arroz, o feijão, o tomate que continuam a
chegar nas quitandas e nos mercados? Ou pelo motorista do caminhão que
transporta tudo isso aos estabelecimentos? Ou pelo rapaz que repõe as
mercadorias nas prateleiras, ou pela moça operadora de caixa que
registra sua compra? Ah! Você nem vai ao mercado, que é para respeitar o
isolamento social, que é para fazer a sua parte, né? Você recebe tudo
por entregas delivery, não é isso? E um comercial a favor do
isolamento social protagonizado pelo motoqueiro que vai entregar tudo na
sua porta? Que se expõe para que você possa se proteger e, depois,
arrotar-se de cidadão modelo? Alguém já viu algum comercial desses?
Alguém já assistiu a alguma live de um carteiro, de um frentista de posto de combustíveis, de um cozinheiro de restaurante, lanchonete ou pizzaria,
de um policial, de um mecânico de automotivos, de donos e funcionários
de padarias, ou de farmácias, todos sorridentes e felizes, instalados
confortavelmente em suas redomas domiciliares, a pregarem o isolamento
social?
Não!!! E nem vão ver.
Na catequese para o isolamento social, está sendo utilizado o mesmo ardil publicitário dos comerciais dos xampus e dos polivitamínicos. Da mesma forma que a modelo de dourada cascata de queratina e que os apolíneos atletas, os garotos e garotas-propaganda da quarentena são profissionais cujas ocupações lhes permitem, facilmente, viver em isolamento. Assim como a gostosa que nasceu com cabelo loiro e liso, os profissionais que vendem a quarentena também não tiveram que empreender nenhum esforço ou sacrifício pessoal para se isolarem. Exercem, naturalmente, ocupações perfeitamente possíveis de serem realizadas home office, e, por isso, foram escolhidos como engodo para mais esta propaganda enganosa. Continuem a sair, ou não, às ruas, em nada os seus meios de sobrevivência serão significativamente alterados.
Assim,
jornalistas, políticos, professores, funcionários públicos - cujos
empregos e salários estão garantidos -, artistas, celebridades (e quanto
mais subcelebrirdade, melhor) e outros que tais são recrutados - e se
prestam canalhamente a tal - para venderem o novo sonho de consumo da
humanidade : o isolamento social; produto que, há tempos, já lhes é
realidade possível. É a Xuxa a dizer para as suas fãs que terão cabelos
iguais ao dela se usarem o xampu Monange, ou a Gisele Bündchen a dar o
mesmo aval ao Pantene.
Fiquem em quarentena e terão uma boa e confortável vida, dizem os tais defensores do lockdown.
Só que não. Só que não terão boa vida. Não terão nem o que comer se não
forem às ruas, se não derem as caras pro coronavírus bater, o
trabalhador rural, o motorista do caminhão, do ônibus, do táxi, o
funcionário do supermercado e todos os outros já citados.
A
quarentena só funciona para aqueles que sempre puderam viver em
quarentena. A quarentena não funciona e não é possível - e nem deve ser
ditatorialmente imposta - para aqueles que têm de ir à lida todo santo e
profano dia, para aqueles que vendem o almoço pra comprar a janta, para
aqueles que, como dizia o Chico, ganham no banco de sangue para mais um
dia. Para estes, melhor se arriscarem à possibilidade de contágio pelo
coronavírus, e rezarem para a cura e a imunidade, do que enfrentarem a
certeza da fome e do despejo de suas residências. Aliás, melhor, não : a
sua única opção.
As
taxas e porcentagens de isolamento social estipuladas e desejadas pelos
governos nunca serão atingidas justamente por isso, porque grande
parcela da população, simplesmente, não tem o privilégio de poder se
isolar. Aliás, estipular uma taxa de isolamento que se sabe impossível
de ser atingida é mais uma das infinitas formas dos governos tirarem os
seus cus da reta e culparem, como sempre, a população.
Dizer
para um sujeito desse que ele tem que ficar em casa - só porque você
pode - é de um esnobismo brutal. Ou, mais fidalguice ainda, fazer vistas
grossas e fingir que não vê que é a impossibilidade do
isolamento dele, do trabalho que ele continua a realizar, que garante o
seu.
Dizer
para um sujeito desse que ele estará colocando em risco não só a
própria vida, mas também a de tantos outros, caso não cumpra com o
isolamento social, é de um elitismo cruel e algoz. Mais que elitismo, é
beirar, se não ultrapassar, o absolutismo dos reis franceses : é dizer
que se farte de brioches, o sujeito que, no mais das vezes, não consegue
fazer nem para o pão.
A pergunta é : até quando nos acovardaremos em nossas casas enquanto o
cara que abastece o supermercado, o motorista do ônibus, o frentista, o
policial, o entregador de delivery e tantos outros estão se expondo para
garantir nosso isolamento, nossa segurança? É justo que algumas
categorias de profissionais tenham que dar a cara a bater e outras não?
Não acham que ficarmos no bem-bom em casa, enquanto uma enorme gama de
pessoas não têm essa opção, e, ainda por cima, criticá-las por não
obedecerem o isolamento social é de um segregacionismo canalha e filho da puta?
Nesta
semana - anteontem, ontem e hoje - a escola em que leciono realizou a
entrega de material impresso do segundo bimestre para alunos do ensino
médio. Como professor, não teria nenhuma obrigação de sair de minha
casa, ir até lá ajudar e me expôr; tal tarefa cabe tão-somente à direção
da escola e aos inspetores e agentes de organização escolar. Sabendo,
no entanto, do déficit de pessoal para realizar as entregas e da
sobrecarga que se imporia à diretora e à única inspetora, ofereci-me
para ajudar. Eu e mais três professores. Todos homens. Não apareceu uma
única feminista empoderada para pôr em prática seus discursos hipócritas
de liberté, egalité, fraternité; nenhuma empoderada com um cartaz com um desenho do coronavírus e, embaixo, a hastag ele não (#elenão).
Fiz
isso por espírito cristão? Porra nenhuma. Até porque, se o meu
voluntariado tivesse sido um ato cristão, com tanto cristão que tem lá
na escola, teriam aparecido, pelo menos, mais uns cinquenta para ajudar.
Ofereci-me pelo questionamento que fiz acima. Direção, coordenação,
secretaria, inspetores, faxineiros e professores são trabalhadores de um
mesmo estabelecimento; por que apenas alguns serem obrigados a se expor
e outros não?
A
diretora muito nos agradeceu. A mim, até, mesmo sabendo que sou ateu,
disse um "Deus te abençoe". Sei que Ele não vai. Primeiro, porque não
existe; segundo, porque se existisse, já ficou bem claro para mim de que
lado Ele está nesta guerra : do lado do coronavírus.
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