Escrito por: Giulianno de Lima Liberalli
Em 21 de junho de 2019 Karen Berger anunciou oficialmente o fim do selo Vertigo, da DC Comics. Triste? Sim. Esperado? Infelizmente, sim. Sabemos que pouquíssimas coisas duram para sempre, talvez uma delas seja a crise política brasileira, essa parece ser eterna mesmo, mas o selo trouxe uma época revolucionária para os quadrinhos adultos e quando digo adultos não me refiro aos quadrinhos eróticos. Falo daqueles dedicados ao suspense, ao terror, com conteúdo mais adequado aos leitores que buscam um enfoque mais sério ao mundo dos heróis e das aventuras policiais.
O começo foi na célebre passagem de Alan Moore pelo Monstro do Pântano, o autor elevou o nível dos enredos do personagem de tal maneira que a DC percebeu o potencial em investir nas HQs de heróis de forma mais madura, adulta. De quebra Moore ainda cria nas páginas do número 37 (vol. 2 de 1985) de Monstro do Pântano aquele que viria a se tornar o carro-chefe incontestável do novo selo: John Constantine, o sacana mago inglês mais famoso dos quadrinhos imortalizado durante o arco Gótico Americano. Me arrepiou quando o Moore comentou a criação dele, ela veio da inspiração do momento de estar sentado em um café em Westminster, lá pelo ano de 1986, quando um homem misterioso surge e... Bem, confiram a descrição da cena:
“Londres, 1986, Alan
Moore senta-se a mesa de um café qualquer em Westminster, era mais um
dia na vida do famoso escritor, em meio a alguns sanduíches Moore ergue
seu olhar para a porta do ordinário café, nesse momento um homem de ar
misterioso vestido com terno e sobretudo surrados adentra o local, olha
repentinamente para ele com um sorriso, dá uma piscada conspiratória e some
misteriosamente, em uma cena digna da ficção, neste momento Moore,
abalado com a experiência, decide que este sujeito surreal não seria
somente mais um coadjuvante em sua vida, mas sim um protagonista!”
Juntamente
com Monstro do Pântano e Hellblazer, o selo Vertigo trouxe mais séries que são clássicos
dos quadrinhos modernos como Sandman, V de Vingança, Os Invisíveis, DMZ,
Preacher, Transmetropolitan, Y – O Último Homem, 100 Balas, Patrulha do
Destino, Homem-Animal, Escalpo entre várias outras. Os leitores de quadrinhos
que ansiavam por material sombrio, voltado para um público adulto, foram
presenteados por essas sagas escritas por grandes nomes como Alan Moore, Brian
Azarello, Jamie Delano, Garth Ennis, Neil Gaiman, Warren Ellis e Grant Morrison.
Com artistas do peso de John Ridgway, Simon Bisley, Steve Dillon, Stephen
Bissette, Dave McKean, Sean Phillips e dezenas de outras feras. Sobre
Hellblazer tem uma curiosidade: o título se chamaria Hellraiser, mas Clive
Barker chegou na frente e registrou sua criação, não deixando outra opção para
os editores a não ser nomear Hellblazer, que em tradução livre significaria
“Chama do Inferno”, segundo alguns boatos Moore não perdoa Barker até hoje por
essa.
Por
mais de 20 anos a editora Karen Berger se tornou o sinônimo de Vertigo, a
maioria dessas séries vieram à luz por meio do seu trabalho. Ela contratou
Moore para escrever o Monstro do Pântano, cujo título estava à beira do
cancelamento devido ao baixo número de vendas. Em uma entrevista ela explicou
que sempre foi fascinada pelo jeito inglês de escrever HQs, portanto foi a
responsável por abrir as portas da editora para essa “invasão inglesa”, baseada
nos seus trabalhos anteriores com esses profissionais cuja visão de mundo era
diferente, mais irreverente, sarcástica e instigante do que a dos escritores
americanos.
A
DC Comics vai continuar a publicação desse material pelo novo selo DC Black
Label que estreou com Batman – Damned, de Brian Azarello e Lee Bermejo, onde
Batman e Constantine unem forças para desvendar um mistério que surge em Gotham
com a morte(?) do Coringa. Em seguida virão Superman – Year One de Frank Miller
e John Romita Jr., Wonder Woman Historia – The Amazons de Kelly Sue DeConnick e
Phil Jimenez, The Other History of the DC Universe por John Ridley, Batman –
Last Knight on Earth de Scott Snyder e Greg Capullo, entre outras que seguem
anunciadas. Interessante notar que essas publicações iniciais são centradas na
santíssima Trindade da DC: Batman, Superman e Mulher Maravilha com predomínio
de autores americanos. Não creio que veremos nessa iniciativa o mesmo brilho e
ousadia do selo Vertigo, parece que não só mudou o nome como também a sua
essência será sutilmente alterada, até Grandes Astros Superman foi relançada
com o novo selo. Mas o que Grandes Astros tem de Black Label? Honestamente,
ainda não entendi.
É
uma pena, o sucesso da Vertigo foi praticamente a visão mais crua sobre o mundo
dos heróis com uma dosagem de violência, nudez, palavrões, drogas e outras
situações que os leitores mais tradicionais não esperavam ver personagens
cultuados como Patrulha do Destino, Monstro do Pântano e Homem-Animal
atravessarem. Quem consegue esquecer a primeira vez do Monstro e de Abby Cable
nos pântanos na edição 34 (vol. 2)? Ritos de Primavera é uma sequência
alucinógena, viagem de ácido para ninguém botar defeito e ao mesmo tempo belissimamente
pintada pelos desenhos de Stephen Bissette e John Totleben, uma relação de amor
entre uma humana e uma criatura vegetal deveria ser algo repugnante na
realidade, mas aqui criaram alguns dos mais lindos painéis imaginados para uma
HQ de heróis, se isso não bastou para sedimentar o selo Vertigo como algo
revolucionário para a época, nada mais faria.
A
qualidade dos títulos lançados pela Vertigo também foi notada pelos executivos das
outras mídias que adaptaram algumas das melhores obras para o cinema e TV,
claro que nem todas obtiveram o mesmo sucesso. Dentre elas podemos destacar
Constantine, Os Perdedores, V de Vingança, I Zombie e Stardust. Hellblazer teve um filme
para o cinema com o astro Keanu Reeves no papel principal e uma série para a TV
com Matt Ryan como o sacana mago inglês, a adaptação para o cinema distorceu
várias coisas em comparação com os quadrinhos começando pelo fato de que nesse
filme ele é americano, seu amigo Chas é um jovem motorista de táxi (Shia
LaBeouf ainda sóbrio) com cara de bebê e Keanu Reeves é moreno. Pelo menos a
série de TV – que só durou uma temporada – fez uma escolha muito mais acertada,
Matt Ryan é um ator inglês e personificou quase perfeitamente o original dos
quadrinhos, tanto que retornou para DC – Legends of Tomorrow e dubla o
personagem nas animações atuais.
V
de Vingança e Os Perdedores foram feitos com qualidades bem distintas, o
primeiro é sombrio e com uma fotografia belíssima, com destaque para a atuação
de Hugo Weaving (Caveira Vermelha de Capitão América – O Primeiro Vingador e
Matrix) como V, cujo rosto não aparece em momento algum e Natalie Portman em um
dos seus poucos momentos de brilho como atriz. Já Os Perdedores é uma adaptação
do tipo “tiro, porrada e bomba” em ritmo frenético, com Chris Evans e Jeffrey
Dean Morgan (Comediante em Watchmen) talvez tenham optado demais pela correria exagerada
e explosões, tirando o brilho da história em detrimento de entregar um simples
filme de ação.
O
Monstro do Pântano teve dois filmes em longa-metragem, o primeiro foi feito
pelo mestre Wes Craven, criador de Pânico e A Hora do Pesadelo, uma série de
desenho animado (ah...) e atualmente James Wan produziu uma série live action
para a TV com uma qualidade bem superior e com aparência mais fiel às HQs,
infelizmente por problemas diversos foi encerrada com uma temporada e dez
episódios produzidos, uma pena pois a mitologia criada por Alan Moore e
responsável pelo sucesso do título tem potencial para fazer um seriado de
altíssimo nível. Continuando no universo da TV tem Lúcifer com quatro
temporadas, apesar de ser adaptada como mais uma tradicional série policial, os
toques sobrenaturais (em alta no momento) e o carisma dos protagonistas
garantiram um lugar de destaque na programação.
Falando
em Lúcifer, ele é oriundo das páginas de Sandman, para ele também foi
confirmada a produção de uma série pela Netflix, listada como sendo a mais cara
e ambiciosa a ser produzida baseada em um personagem DC e que apresentará os
primórdios do personagem, mostrando as décadas de cárcere nas mãos de um culto
satânico, sua liberdade e sua missão de reestruturar o seu reino mergulhado no
caos depois de todo esse tempo de confinamento. O personagem completou 30 anos
e está em alta atualmente, a Panini está relançando sua saga em volumes
comemorativos, como os originais americanos. É outra promessa de sucesso, caso
respeitem a qualidade do material original das HQs que são um clássico moderno
e outro carro-chefe da Vertigo por anos, tanto que uma linha foi lançada nos 25
anos de criação: The Sandman Universe, continuando as sagas dos personagens
criados por Neil Gaiman.
Enfim,
agora temos somente o legado deixado no mundo das HQs por esse selo que
representou um divisor de águas no modo de criar histórias em quadrinhos, que
abriu as portas das nossas mentes e nos deu uma outra visão sobre a fantasia, a
loucura, o terror e o suspense. A criatividade e a espontaneidade que representaram
a era Vertigo farão falta no futuro das HQs.
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