MARIA E JOÃO: O CONTO DAS BRUXAS
por Joba Tridente
publicado originalmente em Claque
ou Claquete
Em 2013, na resenha crítica ao ridículo João
e Maria: Caçadores de Bruxas, escrevi: “Se vivos fossem e se acaso assistissem
a versão contemporânea de Hänsel und Gretel (João e Maria)
contada no cinema, os Irmãos Grimm - Jacob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm
(1786-1859), autores de Contos da Criança e do Lar - teriam um enfarto
fulminante. Como se sabe, os irmãos são os responsáveis pela compilação e
adaptação de histórias populares, principalmente da tradição oral alemã
(destinadas ao público adulto), para as crianças, pensando no seu caráter
educativo. Desde a sua publicação, o conto João e Maria ganhou inúmeras
traduções e remendos bizarros. Quem quiser se aprofundar no estudo da história
original (e versões) vai encontrar, tanto nas livrarias quanto na internet, um
prato cheio de elementos psicanalíticos.” Acrescento que, se a sua curiosidade de
cinéfilo tem mais a ver com as versões e adaptações televisivas e
cinematográficas, então, uma zapeada no Youtube pode lhe causar até indigestão.
Tem de tudo ali: animações desenhadas (inclusive com o Pernalonga) ou
com bonecos
(incluindo a fantástica Hansel
and Gretel: An Opera Fantasy, de 1954); o quase musical João e Maria (Hansel & Gretel,
1987); a versão abominável A Fábula Moderna de João e Maria (Hansel
& Gretel, 2002); a premiada adaptação alemã Hänsel und Gretel,
de 2006, e a totalmente descerebrada João e Maria e a Bruxa da Floresta
Negra (Hansel & Gretel Get Baked, 2014).
Desabafo reposto, vamos ao que interessa: a volta do
conto clássico de horror dos Grimm, aos cinemas, na versão de suspense e
fantasia juvenil Maria e João: O Conto das Bruxas (Gretel &
Hansel, 2020), dirigido por Osgood "Oz" Perkins. Notou
alguma coisa no título original? Há uma “leve” inversão de gênero (e de
atitude, na trama), possivelmente por conta da recente exploração
cinematográfica do empoderamento feminino. O que até então era João e Maria...,
virou Maria e João. Agora o protagonismo, que começa com a perturbada Bruxa
Holda (Alice Krige) narrando a sua triste origem e os eventos
místicos que selaram o seu destino macabro, segue com a politicamente engajada adolescente
Maria (Sophia Lillis), de dezesseis anos, narrando o seu cotidiano
de exclusão social e cuidando afetuosamente do seu inocente irmãozinho João
(Sammy Leaky), de oito anos.
Assim como as versões citadas “compartilham” achados
e ou brechas no conto original, para dar mais asas à imaginação (estapafúrdia),
o roteirista Rob Hayes parece não ter se acanhado em fazer a lição de casa,
buscando também inspiração nas adaptações alheias (incluindo o Hansel &
Gretel, de 1987). A base (esboço ou argumento, se quiser) da história (re)contada
pelos Irmãos Grimm está ali, meio camuflada na releitura sinistra que se
desenvolve sobre ela, na figura da mãe-madrasta egoísta e cruel que expulsa os
filhos de casa; no casal de irmãos pobres que se perde na floresta sombria; na casa
pantagruélica; na bruxa canibal (ou antropófoga, conforme seu discurso).
Mas, a narrativa que “Oz” constrói com esses
elementos originais, ao tomar a liberdade de agregar novos personagens ou ressignificar
a relação entre Maria e a Bruxa, é outra. Bem, se você assistiu (ou assistir) alguns dos
filmes (animados ou não) que citei, sabe(rá) que a estranha relação de
aprendizado (não confundir com Jornada do Herói) entre Holda e Maria
já foi tratada de forma simplificada em produções infantis antigas, que também
acrescentaram personagens outros. A diferença é que, se antes bastava a morte
da Bruxa, a liberdade de crianças “aprisionadas” e a descoberta de
tesouro, agora a sugestão de um discutível “final feliz” vai além do mimetismo.
Será que (dependendo da bilheteria) estão pensando em franquia, para justificar
os destinos incoerentes dos irmãos no final tosco da trama? Sei não, acho que
vem, por aí, um Maria - A Vingadora, ajustando contas com o seu passado!
Perkins e Hayes não são os primeiros a mudar as
características físicas e psicológicas de personagens infantis, envelhecendo-os
(ou rejuvenescendo-os) num cenário
contemporâneo e ou do século XIX (gosto demais da versão
sul-coreana Hansel & Gretel, de 2007, do diretor Pil-Sung
Yim)..., mas é curioso como desenvolvem a independência e o senso crítico de Maria
diante da realidade socioeconômica que anestesia os miseráveis, promove a
subserviência (dos desesperados) e explora sexualmente menores de idade
(famintos), no primeiro ato. Mesmo que, na trilha pela floresta até à casa das
delícias fúnebres da Bruxa, o assunto tome outro rumo, o apelo da
desconcertante sequência inicial é tão grande que a mensagem de rebeldia e
protesto da politizada Maria contra os poderosos (de qualquer época),
acompanhará o espectador até o final.
Todo leitor (que se interessa pelo assunto) sabe que
muitos contos (de fadas ou maravilhosos) infantis, por mais macabros que sejam,
têm a sua violência (diversa: matricídio, patricídio, filicídio) moralizante
justificada pelo assassino (bom ou mau). Se na leitura do livro, o que conta é a
imaginação, no cinema, geralmente o cérebro aceita o que os olhos veem na tela.
No caso de Maria e João: O Conto das Bruxas, vale ressaltar que, toda
via da violência gráfica está mais para a arte surreal de Giuseppe Arcimboldo (1527-1593)
do que para o gore de João
e Maria: Caçadores de Bruxas. É um terror tão esmaecido que dificilmente
algum espectador sentirá medo. A não ser que esteja condicionado para tanto e
aí, qualquer ruído musical, a visão dos ingredientes do banquete e ou sombra na
parede será um salto na cadeira! O que não quer dizer que seja mero terror
psicológico. Digamos que, quem conhece a clássica história de João e Maria
já sabe (ou deveria saber) o que esperar..., ainda que o enredo apresente
alguns remendos que, se não combina com o todo, aos menos tapa os buracos!
Enfim, ainda que indeciso quanto ao nível de suspense,
já que mira o público adolescente e não o infantil..., considerando o formato,
que vai do panorâmico (no prólogo) ao “quadrado”, na espetacular fotografia de
Galo Olivares (Roma); o cuidadoso design de produção de Jeremy
Reed e a notável direção de arte de Christine McDonagh, criando cenários
sombrios, que sugerem mais do que explicitam o terror na floresta e na admirável
casa de arquitetura expressionista da Bruxa;
o terror e a violência estilizados; as
denúncias sociais; os diálogos curtos, metafóricos ou enigmáticos (sobre confiar
em lobos); as narrações (redundantes?) da racional Holda e da perseverante
Maria, que vagam livres entre o fantástico, o códice de bruxarias, o
diário de aflições e as relações sociais; o bom elenco (com Alice Krige
roubando a cena de Sophia Lilli e vice-versa); o roteiro irregular, por pensar (nem
sempre satisfatoriamente) muito além do conto; o humor-negro em algumas
sequência fascinantes (como a do laço de fitas); o ritmo lento da narrativa
intimista; os incômodos áudio-sustos; os muitos acertos e poucos vacilos da
direção de “Oz”..., o suspense leve (com bons subtextos) Maria e João: O
Conto das Bruxas pode surpreender a platéia certa. Nota: O fato de eu não
ter sentido medo, pavor, arrepio etc, não quer dizer que você não possa sentir.
Talvez seja uma questão psicológica, e ou de idade mesmo.
*Joba Tridente: O
primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros videodocumentários
fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo), em 35mm, realizei em
2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de
curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência
de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power
Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em
Curitiba.
*No CLAQUE OU CLAQUETE você lê
resenhas críticas de muitos outros filmes.
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