DE QUEM É O SUTIÃ?
por Joba Tridente
publicado originalmente no Claque
ou Claquete
Está chegando aos cinemas brasileiros a comédia alemã
Do maquinista que procurava amor (Vom Lokführer, der die liebe
suchte..., 2018), cujo título, internacionalmente (?), virou The Bra
(O Sutiã) e, no Brasil, DE QUEM É O SUTIÃ?. Distribuído pela
Pandora Filmes, a trama dirigida por Veit Helmer, acompanha o trajeto do
maquinista de trem de carga Nurlan (Predrag “Miki” Manojlovic),
que sempre é surpreendido ao passar por um trecho de Baku, no Azerbaijão. É
que, ali, como em outros lugares do mundo, inclusive no Brasil, os moradores
esticaram suas casas até a poucos centímetros da linha férrea e toda vez que a
imensa locomotiva tem de passar, o garoto Aziz (Ismail Quluzade) corre
à frente, pelos trilhos, alertando as pessoas que estendem suas roupas, as
crianças que brincam, os homens que jogam..., e, na correria, sempre sobra algo
preso na máquina. Mas, como Nurlan é uma pessoa sociável, ele sempre
procura devolver os pertences aos donos. Porém, em sua última viagem, antes da
aposentadoria, o maquinista encontra algo grudado na locomotiva e que vai mudar
a sua vida social, embora solitária: um sutiã azul de renda. A bonita
peça de roupa íntima feminina, que em suas mãos tem valor de preciosidade, fará
com que ele comece uma jornada sensual em Baku, para encontrar a dona do
distinto sutiã e quem sabe, de quebra, encontre também um amor.
A busca de Nurlan não será fácil, pois, assim
como os pés, no Conto de Cinderela, os seios variam o
tamanho. Toda via dos solitários carentes, no entanto, se na história da
órfã há um bocado de garotas que, loucas para agarrar o Príncipe, fazem de
tudo para calçar confortavelmente o sapatinho encantado, na história
do maquinista o entusiasmo das mulheres dispostas a experimentar o sutiã
encantador, recolhido por Nurlan, é outro. Também porque a grande
maioria é casada. Mas ele é tão insistente e está tão determinado em devolver o
sutiã azul de renda que é capaz de ações constrangedoras. Procedimento
que, provavelmente, grande parte do público feminino verá como assédio sexual...,
ainda que o maquinista aparente uma certa ingenuidade e não veja maldade nos
seus anseios (ôps!) que podem provocar a ira dos maridos. Afinal, não estamos
em um país tão liberal assim. E, nos dias de hoje, basta uma faísca para
despertar atos extremos.
DE QUEM É O SUTIÃ é uma crônica de costumes
que flerta com a arte nonsense de Jacques Tati, a regionalista de Emir
Kusturica e a surrealista de Luis Buñuel. Uma comédia leve que, pelo fato de
não ter diálogos, apenas ruídos naturais (risos, música, máquinas, apitos), se
vale da expressividade do elenco, da beleza campestre (Azerbaijão e Geórgia) e
da curiosa arquitetura local, em que algumas casas lembram cenários de teatro
(nota: todas as casas daquela região férrea foram demolidas durante as filmagens
e a produção foi transferida para Geórgia). Mas é bom que se diga que, mesmo
não tendo diálogos audíveis é um filme de fácil compreensão até pelo espectador
mais preguiçoso e que só tem o Tico e ou o Teco desperto. Não chega a ser
hilário, já que nem toda cena é engraçada, talvez pela repetição das gags
visuais, mas é divertido, principalmente pelo reverso do pudor diante do objeto
do desejo (sutiã azul de renda) em situações anacrônicas.
O roteiro de Leonie Geisinger e Helmer é simples (não
simplório) e mesmo que o título brasileiro busque a comicidade e, ignorando a
candura do título original alemão (Do maquinista que procurava amor),
desvele parte do enredo, reserva alguma surpresa para o final. A produção é bem
enxuta e a montagem mostra o diferencial numa edição que precisa ser ágil. Para
falar do trabalho repetitivo do maquinista no dia a dia (sempre igual!), que só
perde a monotonia quando o trem entra no trecho “ocupado” pelos moradores
locais, por exemplo, o editor Vincent Assmann simplesmente costura, de forma
brilhante, várias viagens de Nurlan, numa só. É nos detalhes sutis (que
não vou entregar) que, o quê se imagina erro de continuidade (nessa e em outras
sequências), se revela um notável acerto de montagem da passagem do tempo.
Óbvio que Veit Helmer não cometeria tamanho equívoco, ainda que o roteiro dê lá
suas escorregadelas.
Enfim..., considerando a nostálgica aparência
analógica e a “atemporalidade” da história, situada, talvez, num tempo
longínquo ou num tempo presente, talvez, sem acesso à tecnologia; os detalhes
(bordados em close-up) a serem descobertos, para melhor se saborear a
trama bucólica, que consegue falar de solidão e de amizade, de oportunidade e
de oportunismo, de sociabilidade e de mesquinharia (sem soar piegas), num lugar
tão longe que tanto a paisagem pastoril quanto seus moradores campesinos
lembram personagens de antigos quadros decorativos e de calendários de parede;
o registro da cultura local e a discutível amoralidade; a excelente fotografia
de Felix Leiberg enquadrando com maestria a belíssima região e o interior
inusitado das casas; a edição que lapida bem as cenas com não-atores e as
amarras do enredo que enlaçam um final emocionante nesse mundo idealizado; a
ousadia de um filme sem diálogos e sem pressa de contar uma boa história, em
uma época de cinema prolixo de ação genérica e de raras ideias originais, como
esta..., DE QUEM É O SUTIÃ?, com direção discreta de Veit Helmer tem
tudo para agradar ao grande público. É claro que a, certa a altura da
narrativa, esta simpática comédia, pode incomodar (ou provocar?) uma parcela da
platéia. Toda via das idiossincrasias, no entanto, como se diz: faz parte do
espetáculo. Ou não?!
*Joba
Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os
primeiros videodocumentários fiz em 1990. O primeiro curta-metragem (Cortejo),
em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista
e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e
divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro
tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003),
de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.
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