Disseram-me que Quentin Tarantino mora nas conversas verborrágicas, nas falas naturais, fluídas, corriqueiras, nos interlóquios ágeis e rápidos feito jogo de pingue-pongue de entre chineses, cheios de referências, ironias e pitadas de filosofia pop, nos diálogos propositalmente longos e arrastados para criar um ambiente de tensão e angústia no telespectador.
Há tempos não me encontrava com Quentin Tarantino. Aproveitando a dica que me deram, fui bater à sua porta em Era Uma Vez em... Hollywood.
Não ouvi rajadas verbais, discursos braváticos nem papo de bêbados nem
tiradas sarcásticas. Só pronunciamentos formais e solenes, ensaiados,
coreografia mecânica de balé russo. Quentin Tarantino não estava em
casa.
Informaram-me
que Quentin Tarantino mora na narrativa não-linear, mora nos fragmentos
das cenas dos vários núcleos de seus personagens, aparentemente sem
nenhuma relação entre si, que exibe fora de ordem e separadas e que, no
final, costuram-se em perfeita tapeçaria, em um refinado vitral em
mosaico, e tudo faz sentido.
Há tempos não via Quentin Tarantino. Seguindo a indicação, fui tocar sua campainha em Era Uma Vez em... Hollywood.
Encontrei migalhas dispersas que não serviriam nem de caminho de volta
para João e Maria, cacos coloridos de cristal, retalhos de cetim,
cápsulas de balas já detonadas espalhadas, respingos de sangue e
coca-cola no sofá e nos interruptores. Mas nenhuma linha, agulha e
alfaiate para a tudo coser e cerzir. Quentin Tarantino não estava em
casa.
Asseguraram-me que Quentin Tarantino mora nas influências dos westerns e das histórias em quadrinhos, dos enquadramentos pouco usuais, dos close-ups intermináveis, do silêncio dos personagens intensificado pelo ribombar da sempre excelente trilha sonora.
Há tempos não falava com Quentin Tarantino. Seguindo a dica que me deram fui encontrá-lo em seu habitat em Era Uma Vez em... Hollywood.
Nada de histórias em quadrinhos. Nada de Sérgio Leone, só o sempre
horrível, canastrão e superestimado Di Caprio em vestes de caubói de
Sessão da Tarde. Nada de closes e zooms catalépticos nem de silêncios sangradores de tímpanos. Quentin Tarantino não estava em casa.
Garantiram-me
que Quentin Tarantino mora em suas empoderadas personagens femininas;
mulheres fortes, hábeis, marcantes, protagonistas de seus próprios
destinos e, lógico, muito das gostosas.
Há
tempos não trocava uma ideia com Quentin Tarantino. Acreditando na
referência que me deram, fui ao encontro dele em sua residência em Era Uma Vez em... Hollywood.
Onde estava a mulherada? Onde Mia Wallace? Onde Beatrix Kiddo? Margot
Robbie, Tarantino? Sério? Margot Robbie? Uma Sharon Tate mais
inexpressiva que a própria Sharon Tate? Novamente, Quentin Tarantino não
estava em casa.
Avalizaram-me
que Quentin Tarantino mora na violência banal e sem freios, no sangue
em excesso, em retratar carnificinas cujas narrativas bem se equilibram
entre o grotesco e o cômico, na brutalidade cometida por seus
personagens como se executassem rotineira tarefa diária - como um médico
que ausculta o 25º coração de seu plantão, como um pedreiro que sobe
sua terceira parede do dia. Juraram-me de pés juntos que Quentin
Tarantino mora na truculência executada de forma impessoal, burocrática,
como algo a ser feito o mais rápido possível, apenas para que se possa
chegar mais cedo em casa e abrir uma cerveja.
Há tempos não tomava uma com Quentin Tarantino. Seguindo a orientação, fui chamá-lo para um drink no inferno em Era Uma Vez em... Hollywood. Pit bull
dilacerando membros, sacos escrotais e jugulares. Brad Pitt
estraçalhando ossos, cartilagens e articulações (e ainda arrebatando
corações e molhando xerecas). Di Caprio, com um lança-chamas, fazendo
churrasquinho de uma hippie ensanguentada e armada na piscina de sua
mansão. Desta vez, Quentin Tarantino estava em casa, no endereço me
apontado.
Mas por pouco tempo. Mas estava de saída. Duas horas e quarenta de Era Uma Vez em... Hollywood.
Duas horas e meia de procura infrutífera por Quentin Tarantino. Dez ou
oito minutos finais apenas de um encontro com ele. Não valeram o tempo
perdido nem os quatro latões de cerveja tomados. Por sorte, sempre
compro meia dúzia.
O filme são os oito minutos finais e uma cena de Brad Pitt dando um pau no Bruce Lee. E só. Era Uma Vez em... Hollywood deveria ser chamar, (Já) Era Uma Vez... Quentin Tarantino.
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