Amor com amor se paga. E o humor? Qual a paga recebida pelo humor?
Antigamente,
creio que até as décadas de 1970, 1980 e mesmo na nebulosa e de
transição década de 1990, humor com risada se pagava; se não com uma
gargalhada, no mínimo, com um reflexivo sorriso de canto de boca.
A
partir de então, voz dada aos imbecis, aos oprimidos e às vítimas
profissionais, às "causas sociais" e a outros oportunistas, o humor
começou a ser pago com processos judiciais indenizatórios, por calúnia e
difamação, por racismo, por homofobia, por sexismo, por assédio etc.
Todo mundo ávido por lavar a honra e, de quebra, levar uma boa duma
graninha para casa, graninha pela qual nada fez por merecer, pela qual
não trabalhou, uma graninha pro churrasco, pra cerveja e pro pagode, ou
pro funk, do fim de semana. Que, no Brasil, honra se lava é com
indenização indevida.
Agora, vistos os últimos acontecimentos, parece que humor com bomba se paga.
Estouraram os fundilhos do Porta dos Fundos! Em inglês - filme pornô também é cultura -, backdoor é termo eufemístico para sexo anal, para pôr no cu de alguém : atolaram uma bomba na backdoor do Porta dos Fundos, explodiram as pregas do Porta dos Fundos.
Há
tempos que o Porta dos Fundos vinha cutucando a onça cristã com herege
vara curta, até que veio o gota d'água, o cutucão final : no vídeo A Primeira Tentação de Cristo, o Porta dos Fundos sugeriu a homossexualidade enrustida de Jesus, cutucou o incutucável, cutucou o cu do Nazareno.
Na
terça-feira, na simbólica data de 24 de dezembro, véspera do suposto
nascimento do suposto Cristo, três homens encapuzados perpetraram um
atentado à bomba contra a sede do Porta dos Fundos, localizada em bairro
nobre da região sul do Rio de Janeiro. Foram atirados coquetéis molotov
contra a produtora de vídeos.
Normal.
Não desejável, mas normal. Um crescente de violência natural do
politicamente correto, que culpa e crucifica o humorista, o Bobo da
Corte por seus relatos e narrativas, e não aos protagonistas das
histórias, simplesmente, por ele observadas e contadas : o rei e toda
uma sociedade hipócrita de costumes. Penalizar o bobo da corte é uma
forma da sociedade empurrar todo o seu lixo e a sua podridão para
debaixo do tapete.
O
humor é uma forma de jornalismo, de registro histórico de uma época,
uma factual e sem retoques crônica de costumes. O principal : o humor é a
manifestação artística de um dos mais apurados tipos de inteligência, a
ironia. Por isso, ele tanto incomoda : demonstrar inteligência em
tempos de politicamente correto, que é a uniformidade e o fascismo do
pensamento - aliás, do não-pensamento -, que é o fast food de ideias - o sujeito passa no drive-thru de ideias e compra lá, rapidinho, um combo promocional delas, um Mc Lanche Feliz
de opiniões pré-fabricadas -, é crime, sim, meus caros. Crime capital.
Só não punido com a pena de morte porque a sociedade politicamente
correta é hipócrita demais para admitir que deseja a morte de quem lhe
esfrega na cara todos os seus desvios, vícios, perversões e mazelas : o
humorista, o Bobo da Corte.
E
quando o alvo do Bobo da Corte passa a ser a religião, a situação do
bufão se torna mais crítica e arriscada. Sobretudo se sua ironia se
indispuser com as três grandes religiões : o Islamismo, o Judaísmo e,
neste caso específico, o Cristianismo. Todas as três, fundamentalistas.
Todas as três, fundadas por esquizofrênicos que escutavam Deus falar com
eles. Todas as três, monoteístas. Um só Deus, uma só verdade, um só
pensamento, uma só conduta aceitável, uma só moral. E, àquele que ousar
correr por fora, que ousar tomar trilha outra, a espada flamejante do
Senhor a lhe cortar a garganta. Sim, porque o Cristianismo, de uns
poucos séculos para cá, talvez para limpar a sua barra do Holocausto da
Inquisição, vem posando de bom moço, se saiu com a conversa mole do Novo
Testamento, do perdoar, do dar a outra face. Não nos deixemos enganar,
no entanto; em seu cerne, em seu alicerce, o Cristianismo continua tão
sedento de sangue infiel e herege quanto um talibã.
Não
é à toa - nem por acaso, ou coincidência - a proliferação desenfreada
de religiões cristãs evangélicas cada vez mais radicais nestes tempos de politicamente correto,
cada vez mais voltadas às origens do Velho Testamento; que é isso o que
o politicamente correto é : o fundamentalismo do pensamento, o
monoteísmo das ideias.
O
que não isenta o Porta dos Fundos de uma parcela de culpa pela bomba
que estourou em seus fundilhos. O que não lhe dá o direito de também e
agora posar de inocente, de surpreso, de ingênuo e desavisado quanto à
possibilidade do que se deu; enfim, o que não lhe dá o direito de também
e agora posar de vitiminha, feito aqueles a quem, frequentemente,
ironiza.
O
Porta dos Fundos sabe - ou deveria saber - que o humor é o produto fino
e acabado da racionalidade - muitas vezes, o Bobo da Corte é o único
ser pensante em todo o reino -, e a religião, o seu extremo contrário : a
cristalização da tacanhez e da obtusidade.
Não
digo que não haja poucas pessoas racionais a seguir uma religião, mas a
religião em si é doutrinária, é um dos produtos mais bem acabados da
intolerância, embora queira tolerância para consigo.
O
Porta dos Fundos sabe - ou deveria saber - que não há diálogo possível
com as religiões. Divergências de ideias, de opiniões e de visões de
mundo, com um duelo de argumentos, se resolvem, certo? Não. Não há
argumentos com religiosos. Religiosos só obedecem e atendem ao comando
de dogmas. Religiosos não ouvem argumentos. Ouvissem, e não seriam
religiosos. É a condição sine qua non de suas existências. O Porta dos Fundos deveria saber disso.
Deveria
saber que, para quem tem uma existência miserável - como é, via de
regra, a existência humana -, a crença no inexistente é seu único muro
de arrimo, sua única esperança. Que a crença de que todo o sofrimento é
só um castigo temporário infringido por um Pai, que, na verdade, o ama e
só quer corrigi-lo e melhorá-lo e que, ao final da provação, abrirá seu
sorriso e seus braços para ele e o acolherá na Sua casa no Reino dos
Céus, é muitas vezes a única coisa que mantém o sujeito vivo, é muitas
vezes o seu único sustento - o mundo me odeia, mas Jesus me ama.
O
Porta dos Fundos deveria saber que tentar tirar isso do religioso é
muito equivalente a tentar roubar a comida da boca de um animal : não dá
para fingir surpresa, não dá para se vitimizar (mesmo que vítima tenha
sido) nem alegar ignorância quanto à inevitabilidade da mordida.
E
não digo de respeitar a fé do sujeito, não; que a fé não respeita os
que são alheios a ela, e, por conseguinte, não merece tal contrapartida,
mas digo de não tirar da boca do religioso o osso descarnado que torna
sua vida mais suportável e, na cabeça dele, com algum sentido.
A
bomba santa, seja lá quem a tenha lançado - um grupo integralista
reivindica para si a autoria do atentado - nada mais foi que a esperada
mordida cristã na mão herege de quem tenta lhe tirar o osso roído da fé.
Simples assim. Longe de ser desejável, ou de não ser passível de
recriminação, simples assim.
O
Porta dos Fundos deveria saber de tudo isso, deveria saber das
possíveis consequências, e não se surpreender (ou fingir surpresa) e se
colocar como vítima inocente delas ; se não sabiam, não são verdadeiros
humoristas, não são autênticos e respeitáveis Bobos da Corte; são
tão-somente filhinhos de papai querendo fazer graça em reuniões
familiares, em festas de fim de ano, em confraternizações de amigos.
Declarou, assustado e com o cu na mão, o chato, o boçal e o dublê de ator, roteirista e humorista Gregório Duvivier : “Assustador. Eles não estão sós. É um ódio que tem sido pregado na mídia
conservadora e no Congresso".
Errado,
como sempre, o tal Gregório. Tentando se fazer de vítima desentendida, o
integrante do Porta dos Fundos com quem menos simpatizo. Sempre muito
mimado e incensado por uma ala intelectualoide da mídia, ao primeiro
revés, Gregório faz birra e busca a saia da mãe. Não há um complô
político-reacionário contra o Porta dos Fundos; eles nem valeriam o
esforço. Há tão-somente a Terceira Lei de Newton, universal, para cada
ação, uma reação de mesma intensidade e com sentido oposto.
Aos primeiros sinais de indignação cristã e de tentativas de censurar e tirar do ar A Primeira Tentação de Cristo,
a defesa do Porta dos Fundos se saiu com essa : ninguém é obrigado a
assistir. De fato. Da mesma forma, ninguém, sendo ateu, é obrigado a ler
a Bíblia e dela escarnecer. É legal, é divertido? Sim. Eu mesmo faço
isso aqui por vezes. Mas há - questão de hombridade e de vergonha na
cara - de aguentar a bronca, quando a bronca vier. Hombridade que, ao
meu ver, está a faltar no Porta dos Fundos.
Artistas,
intelectuais, políticos de esquerda e outros desocupados já se
mobilizaram em repúdio ao atentado contra o Porta dos Fundos. Defendem
que, mesmo que não gostemos do Porta dos Fundos, fiquemos ao lado dele
neste caso, pela liberdade de expressão.
Muitos,
feito Juliano Medeiros, presidente nacional do PSOL, comparam o
atentado ao Porta dos Fundos com o sofrido pela redação da revista
satírica francesa Charlie Hebdo, ocorrido em 2015 e no qual doze jornalistas foram mortos por granadas e rajadas de metralhadoras islâmicas : "É mais um atentado à democracia e à liberdade de expressão. Coisa de
gente fundamentalista e violenta, impossível não lembrar de Charlie
Hebdo”. O presidente do PSOL dizendo contra o fundamentalismo? É
mais um arriscado a morrer. Não por atentado à bomba, mas sim por
gangrena de tiro de hipocrisia dado no próprio pé.
Será que veremos uma campanha, uma mobilização pelas redes sociais : #Je suis Porta dos Fundos?
Pois eu digo : Je suis qui, visage pâle?
Agora,
é aguardar. Aguardemos. Aguardemos para ver, agora que a convicção e a
coragem do Porta dos Fundos foram postas à prova por este batismo de
fogo, o quanto isto se refletirá em seus textos. Será que o tom e a mão
de seus esquetes religiosos manterão o mesmo peso e virulência? Ou se
intensificarão em resposta ao atentado? Ou ficarão mais comedidos, mais
leves, trocarão o humor pelo "engraçadinho", e sua virulência se tornará
em simples resfriado de estação?
Aguardemos
para ver o resultado do atentado nos futuros trabalhos dos humoristas
do Porta dos Fundos, agora que eles - se antes não sabiam - sabem que
suas palavras podem, sim, ferir e que paus, pedras e coquetéis molotov
cristãos continuam sendo capazes, sim, de quebrarem os seus ossos.
O
choramingas Gregório Duvivier, que viveu o Cristo gay, que passou
quarenta dias no deserto dando o cu pro Diabo e que, agora, está com o
dito cujo na mão.
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