Crítica: O Cristal Encantado: A Era da Resistência



O Cristal Encantado: A Era da Resistência
por Joba Tridente
publicada originalmente em Claque ou Claquete

Creio que uma das minhas memórias cinematográficas afetivas mais significativas é a do fascinante filme O Cristal Encantado (1982), fantasia dirigida pelo mestre das marionetes Jim Henson (1936-1990), que também dirigiu o mágico Labirinto (1986) e diversos filmes para a tv e cinema das suas famosas criações: Os Muppetts e Vila Sésamo..., e por Frank Oz (Pequena Loja de Horrores, 1986; Os Safados, 1988; Nosso Querido Bob?, 1991; Será Que Ele é?, 1997; Os Picaretas, 1999; A Carta Final, 2001; Morte no Funeral, 2007, entre outros, incluindo séries para televisão).

A razão de tal memória é porque (na época) estava vivendo uma fase de pesquisas míticas (não confundir com místicas) e o surpreendente final da trama sombria (quando os urRu (bem) e os Skeksis (mal se fundem e voltam a ser unos e divinos UrSkeks) me levou a fazer uma analogia ao discurso de Aristófanes (447a.C.-385a.C.), proferido em O Banquete (385 a.C.- 380 a.C.), de Platão (428 a.C.-348 a.C.), sobre o amor/desejo, em que ele discorre sobre o mito da  unidade primitiva (ou o princípio uno dos seres humanos duplos de si mesmos) e sua posterior mutilação (separação), sujeitando o homem a passar a vida à procura da sua (cara) metade contrária e, ao encontrá-la, fundir-se novamente num só ser e reencontrar o perfeito equilíbrio com a natureza... Daí o meu entusiasmo com a série O Cristal Encantado: A Era da Resistência (The Dark Crystal: Age of Resistance, 2019), que mistura artesania da melhor qualidade na criação de bonecos belíssimos e tecnologia de ponta (CGI) nos detalhamentos para uma releitura deslumbrante do filme de  Henson e Oz.


A primeira temporada da imersiva série, já disponível na Netflix, em dez episódios dirigidos pelo francês Louis Leterrier (que melhorou muito desde os esquecíveis Fúria de Titãs e Truque de Mestre), e que conta com a inestimável participação do genial ilustrador inglês Brian Fround (O Cristal Encantado e Labirinto) na criação e arte das marionetes, expande maravilhosamente o universo do Planeta Thra..., onde sete distintos clãs de inocentes Gelflings e um de graciosos Podlings estão submetidos à “proteção” dos perversos Skeksis, guardiões do poderoso Cristal da Verdade, o Coração de Thra, enquanto a anciã e ex-guardiã Mãe Aughra perscruta o universo em seu potente observatório.

Além das espécies citadas, Thra está repleta de plantas e animais fantásticos. Porém, quando o planeta começa a apresentar sinais de desequilíbrio, escasseando a sua energia natural, afetando principalmente a vida dos Gelflings, e a verdade sobre as intenções malignas dos asquerosos reptilianos abutres Skeksis vem à tona, os pacatos elfos precisarão deixar as suas diferenças pessoais e ou tribais de lado e lutar pelo bem comum de todos os que vivem nos arredores da temível fortaleza dos dominadores..., sem saber se poderão contar com a ajuda do grande oráculo Mãe Aughra, mas cientes de que muitos deles podem não sobreviver. Acredite, algumas perdas você não vai se conformar de jeito nenhum.


O Cristal Encantado: A Era da Resistência que se passa antes dos fatos narrados no cultuado filme O Cristal Encantado, é potencialmente matriarcal e ou feminista. Cada clã é administrado por uma Gelfling Maudra e entre os três protagonistas Gelfings selecionados para encontrar uma forma de reequilibrar o planeta e derrotar os Skeksis, estão o intrépido guerreiro Rian (marionetista: Neil Sterenberg, voz: Taron Egerton , a erudita Princesa Brea (marionetista: Alice Dinnean, voz: Anya Taylor-Joy), com sua insaciável fome de saber e entender o mundo ao seu redor, e a adorável e inesquecível pacifista das cavernas Deet (marionetista: Beccy Henderson, voz: Nathalie Emmanuel). Os três, em performances incríveis de seus manipuladores e dubladores, divertem e emocionam profundamente o público. Não há como ficar indiferente à ingenuidade e ao pavor deles diante do mal desconhecido e da coragem inigualável para enfrentar a força maléfica dos Skeksis. Aí, em certos momentos íntimos ou sequências de ação espetacular, a arte dos bonecos é tão precisa que a gente, absorvido pelo contexto, nem lembra que quem está em cena são marionetes e não atores de carne e osso...


É claro que uma produção impecável, de cair o queixo, como essa, não ia deixar barato, e contratou os melhores marionetistas do mercado e um time de ótimos atores e atrizes jovens e tarimbados para dar vida e voz aos bonecos que, em algumas cenas, com poucos movimentos, interpretam melhor que muita gente por aí. Eles têm reações humanas, choram, e nas cenas de ação mirabolante até dispensam os dublês.

A mim, os mais expressivos são as inesquecíveis Deet (maravilhosa) e a impaciente ogro Mãe Auhgra. Mas, no geral, todos os bonecos são carismáticos, inclusive os literalmente repugnantes e por vezes divertidos (com seu humor negro) Skeksis. Como o elenco é imenso, caso se interesse, confira a lista de marionetistas e atores aqui e as características dos personagens aqui. A sinopse de cada episódio você conhece no próprio canal. Cada capítulo tem a metragem certa para o desenvolvimento da trama e dos personagens com suas inacreditáveis idiossincrasias.


Consciente ou não, o roteiro escrito por Jeffrey Addiss e Will Matthews, deixa escapar em suas entrelinhas, críticas ao sistema capitalista e ao consumo desenfreado de combustível fóssil, ao agronegócio, ao aquecimento global, à intolerância, ao fascismo e ao “analfabeto útil” que acata ordens sem (ter coragem de) questionar. Aqui, ainda não é o discurso de Aristófanes sobre a unidade que chama a atenção, mas o Mito da Caverna, do diálogo entre Sócrates (469 a.C.-399 a.C.) e Glauco em A República (380 a.C.), de Platão. No enredo da série, Deet sai da profundeza da caverna onde vive com seu povo, para conhecer a realidade e o desequilíbrio de Thra, enquanto a insegura e intransigente Princesa Seladon (marionetista: Helena Smee, voz: Gugu Mbatha-Raw), ignorando a realidade exterior, onde vive, penetra na caverna sombria dos dissimulados Skeksis em busca de uma verdade tranquilizadora...


Enfim, é preciso tomar cuidado ao falar de O Cristal Encantado: A Era da Resistência para não cometer algum spoiler, já que cada capítulo traz surpresas nas reviravoltas sensacionais do drama e revelações impactante da personalidade de cada personagem, principalmente dos imorais Skeksis, mexendo com os conceitos do espectador. Comenta-se que a segunda temporada, talvez mais trágica, já está acertada. Porém, independente dela ser realizada ou não, esta maravilha que está no ar e que faria Jim Henson se orgulhar dos filhos que tem e dos amigos artistas que cultivou em vida, esta fantasia sublime, de realismo impressionante e técnica irretocável, ao meu ver, merece todos os prêmios possíveis do ano. Ah, não deixe de assistir, grudado no último episódio, ao Making, que mostra todo o processo de criação da série, incluindo roteiro, cenários, bonecos, CGI, set, filmagem, figurino, trilha sonora etc. É isso! Me desculpe se adjetivei (ou filosofei) mais que resenhei!


*Joba Tridente: O primeiro filme vi (no cinema) aos 5 anos de idade. Os primeiros vídeo-documentários fiz em 1990. O primeiro curta (Cortejo), em 35mm, realizei em 2008. Voltei a fazer crítica em 2009. Já fui protagonista e coadjuvante de curtas. Mas nada se compara à "traumatizante" e divertida experiência de cientista-figurante (de última hora) no “centro tecnológico” do norte-americano Power Play (Jogo de Poder, 2003), de Joseph Zito, rodado aqui em Curitiba.

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