Há mais de vinte anos que eu vinha habilmente me safando, até que meus ardis e artifícios se esgotaram e eu me vi, sim, na semana passada, jogado na praia.
Na
verdade, não sei se foram meus talentos houdinescos de escape que se
extinguiram, ou se a minha disposição para pô-los à prática. Com a
idade, perdi a disposição para tudo. Até para me opor em fazer o que não
gosto. Dou cada vez menos importância à prevalência ou ao subjugo de
minhas vontades e convicções. A testosterona em baixa não mais me premia
com doses cavalares de júbilo e euforia ao fim de uma batalha.
Tornou-se mais satisfatório, simplesmente, ceder. Fazer, do que brigar
para não. É o caminho rumo à entropia. É a podridão, meu velho.
Mas
voltando à vaca fria, vi-me jogado na praia e, devo admitir, não foi
tão ruim quanto os meus prognósticos. Meus problemas não são exatamente
em relação à praia e ao mar. Não me enjoa o balanço e o vaguear
hipnótico das ondas. Não me incomoda a areia por entre os dedos dos pés.
Gosto de andar descalço, por quilômetros. O que não suporto são o sol
e, sobremaneira, gente. Não tolero ficar livremente exposto ao sol por
mais de cinco, dez minutos. Aglomerações humanas me afligem, dão-me
claustrofobia.
Por
que você detesta tanto ficar exposto ao sol?, perguntou-me, há tempos,
uma amiga num churrasco da faculdade à beira de uma piscina. Porque ele
queima, respondi. E por que detesta tanto gente? Porque vivem me fazendo
perguntas deste tipo.
Contudo,
como eu disse, foi bem melhor que o esperado. Dentro do cenário e do
contexto em que estava inserido, pode-se dizer que tive sorte. E
explico.
É
inverno no Brasil. Enquanto que, no sul e no sudeste, inverno é
sinônimo de baixas temperaturas, no norte e nordeste - para onde fui -
significa chuva, muita chuva. Não esfria por lá. Chove.
Choveu
em todos os dias em que lá fiquei. Chuvas curtas. Rápidas. Após as
quais era perfeitamente possível andar pela praia e entrar na água,
sempre morna. A chuva cessava, mas o sol, tirante na terça-feira, não se
abria a plena potência. Ficava toldado por oportunas e misericordiosas
nuvens. Mantinha-se apenas o mormaço. Assim, um de meus problemas, o
sol, foi amenizado e, a reboque, também o outro, gente. Com a ausência
do exibicionista astro-rei, um menor número de pessoas acorria às
praias.
A
experiência mais traumática foi, justamente, a da terça-feira, dia de
mais sol e mais gente, na tal Praia do Francês, a maior concentração
demográfica de vendedoras ambulantes do planeta, como já retratei no meu
homônimo poema-homenagem a este aprazível local.
A
mais compensadora, no sábado. Dia com menos sol e menos gente, na Praia
do Toque (nada a ver com o famigerado e temido exame), no pequeno
povoado de São Miguel dos Milagres, distante quase duas horas da capital
Maceió.
Por
lá chegamos às nove da manhã. Chovia. Uma chuva que deus Posseidon
mandava. Pouco antes das dez horas, a chuva deu trégua, mas durante todo
o tempo em que por lá fiquei, até as três da tarde, não surgiu nesga de
sol.
Mar
calmo. Ideal para crianças e pais paranoicos. Superfície lisa. Sem
ondas. Um espelho. Não um verde espelho, uma vez que um tanto quanto
embaçado e turvo pela recente chuva. Mas todos os espelhos não são mesmo
embaçados para e em quem a presbiopia avança a olhos vistos? Praia
plana. Bela pista de caminhada. O melhor : uma boa diversidade de vida a
ser observada em suas areias. Animal e vegetal.
Conchas
de moluscos de variadas formas, cores e tamanhos. Nenhuma, contudo,
exuberante o bastante para se guardar de recordação. As que havia em
maior profusão eram as conchas dos búzios. Muitas, mesmo. Pensei em
recolher um tanto delas, abrir meu terreiro e me dedicar à divinatória e
picareta arte do jogo de búzios. Espanei, logo, a ideia para longe.
Ainda ouriços-do-mar com espinhos roxos e caranguejos Maria-Farinha. Até
um pequeno caranguejo-ermitão. Este crustáceo não tem lá uma carapaça
própria muito resistente, que lhe garanta efetiva proteção. Assim,
invade, ocupa e toma posse de conchas vazias de moluscos mortos.
Conforme ele vai crescendo, vai se mudando para conchas maiores. Certeza
de que este bicho é integrante do MTST, o Movimento dos "Trabalhadores"
Sem-Teto. Companheiro de luta do safado do Paulo Boulos.
A
atração maior ficou por conta do reino vegetal. Uma ocorrência de
espécies de algas rara de se ver em um único local. De três das
principais divisões, pardas, verdes e vermelhas. Deu para matar saudade
das minhas aulas de Botânica I - Sistemática, dos tempos da faculdade. O
povo odiava sistemática. Pura decoreba. Chaves e mais chaves de
classificação. Tudo em latim. Na época, eu sabia mais latim que o Papa.
Das algas pardas, as feófitas, o gênero Sargassum; das verdes, as clorófitas, o gênero Caulerpa; das vermelhas, as rodófitas, o gênero Gorgonia; colocadas da esquerda para a direita na foto abaixo.
Depois, ainda achei um belíssimo e viçoso exemplar da famosa alface-do-mar, do gênero Ulva - Ulva,
não vulva. Lavei-a na própria água do mar e a comi, ante os olhos
atônitos da minha esposa, que exprimiam um misto de asco e de
preocupação de que eu passasse mal e lhe desse mais trabalho que o já de
costume. Disse-lhe apenas : ulva, eu como de qualquer jeito.
Mas
que porra é essa, Azarão?, poderão protestar os leitores machos das
antigas do Marreta. Prefere tirar fotos de plantinhas do que de
gostosas? Na verdade, não. Contingências, meus caros, contingências.
Primeiro
que tirar fotos de gostosas me traria sérias - e dispensáveis -
aporrinhações conjugais. Segundo que isso de gostosas em praia é pura
lenda. História de pescador. Só existem duas praias no mundo onde as
gostosas abundam e apeitam : na das novelas da Globo e na da série S.O.S
Malibu, peitões das antigas. Fora estas, tudo lenda.
Elas até existem, as gostosas. Porém, escassas e de aparições rarefeitas.
Para
cada gostosa, uma procissão de barangas paquidérmicas com bundas,
pernas e barrigas que são um combinado de gelatina com queijo suíço.
Para
cada gostosa, duas com cicatriz de operação de vesícula, quatro com de
apêndicite, três com de cesárea e uma com perna mecânica.
Para cada gostosa, uma excursão da terceira idade repleta de velhinhas coquetes, sacudidas e doidas para rosetar.
Ou seja, não vale a tocaia à espera da gostosa passar.
Vejo
mais gostosas no supermercado perto de casa no qual me abasteço do que
numa praia. Na sombra e com ar-condicionado. Aliás, para o tal me
dirigirei agora. Ainda estou em férias laborais, mas os afazeres
domésticos nunca entram em recesso. As obrigações do lar e o almoço de
amanhã urgem. Vou lá, comprar uns legumes, uns filés de frango, umas
latinhas e ver umas gostosas.
Tem lá uma promotora da marca Vigor,
com um uniforme azul e branco, bem colado ao corpo, de acrobata de
circo, que fica num balcão servindo torradinhas com requeijão - o
tradicional e o cheddar - para velhos babões, que é um espetáculo, ou,
como dizia o poetinha Vinicius, uma catedral de mulher.
Pããããããta que o pariu!!!!!
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