Nota do Ozy: Esse é nada
menos que o meu conto preferido, dos poucos que conheço de mitologia nórdica. O
releio de anos em anos, e a cada revisitação, seus ensinamentos se tornam mais
alicerçados. O livro do qual transcrevi, o “Livro de Ouro da Mitologia – Thomas
Bulfinch”, talvez seja o mais acessível a qualquer pessoa leiga sobre
mitologia. Até um semi-analfabeto como este que vos escreve conseguiu lê-lo.
Nota do Ozy 02: Post publicado originalmente em 03/06/19. Republicado agora com uma versão em voz do conto, narrada por Cléo Maria, do podcast "Lê para mim?":
CAPÍTULO
XXXIX, pág. 388 – 394:
Certo dia, o
deus Tor, com seu criado Tialfi e acompanhado por Loki, partiu para uma viagem
ao país dos gigantes. Tialfi era o mais veloz na carreira de todos os homens.
Carregava a mochila de Tor, que continha as suas provisões. Quando chegou a
noite, eles se viram numa imensa floresta e procuraram, em todos os lados, um
lugar onde pudessem se abrigar, chegando, afinal, a um grande palácio, com uma
entrada que ocupava uma de suas fachadas inteira. Ali se deitaram para dormir,
mas à meia-noite foram alarmados por um tremor de terra que sacudiu todo o
edifício. Tor, levantando-se, chamou os companheiros para procurarem, com ele,
um lugar seguro. A direita encontraram um aposento adjacente, no qual os outros
entraram, enquanto Tor ficava à porta empunhando seu malho, disposto a
defender-se se acontecesse alguma coisa. Ouviu-se, durante a noite, um terrível
rugido e, ao amanhecer, Tor saiu e encontrou estendido perto de si um enorme
gigante que dormia e roncava, produzindo o rugido que o assustara tanto.
Conta-se que, pela primeira vez, Tor teve medo de se utilizar de seu malho e,
como o gigante tivesse acordado, limitou-se a perguntar-lhe o nome.
— Chamo-lhe Skry
mir — disse o gigante. Mas não preciso perguntar teu nome, pois sei que tu és o
deus Tor. O que aconteceu, porém, com a minha luva?
Tor percebeu,
então, que aquilo que tomara, durante a noite, por um palácio, era a luva do
gigante, e o quarto onde seus companheiros se haviam refugiado, o dedo polegar
da luva. Skry mir propôs, então, que viajassem juntos e, tendo Tor concordado,
eles se assentaram para fazer a refeição matinal, depois do que Skry mir
arrumou todas as suas provisões em uma mochila, que atirou às costas, e pôs-se
a caminhar à frente dos outros, que só a custo acompanhavam seus passos
enormes.
Assim viajaram
durante todo o dia; ao anoitecer, Skry mir escolheu um lugar para passarem a
noite, sob um grande carvalho, e disse aos outros que iria deitar-se para dormir,
acrescentando:
— Ficai com a
minha mochila e preparai vossa ceia.
Dentro em pouco,
o gigante estava dormindo e roncando, mas Tor, tentando abrir a mochila,
verificou que Skry mir a amarrara tão bem que era impossível desatar um único
nó. O deus acabou se irritando e, agarrando o malho com ambas as mãos,
desfechou uma furiosa pancada na testa do gigante. Skry mir, acordando,
limitou-se a perguntar se havia caído alguma folha em sua cabeça e se eles
haviam ceado e já iam dormir. Tor respondeu que já iam dormir e, assim dizendo,
foi se estender embaixo de uma outra árvore. Não conseguiu, porém, conciliar o
sono e, quando Skry mir recomeçou a roncar com tanta força que o ruído ecoava
pela floresta, ele se levantou e, segurando o malho desfechou uma pancada com
tanta força no crânio do gigante que produziu uma profunda depressão.
— Que aconteceu?
— gritou Skry mir acordando. — Há pássaros empoleirados nessa árvore? Senti um
pouco de musgo dos ramos cair em minha cabeça. Que tens, Tor?
Tor tratou de
afastar-se rapidamente, dizendo que acabara de acordar, e que, como era apenas
meia-noite, ainda havia tempo para dormir. Estava disposto, porém, a chegar a
uma decisão, se tivesse oportunidade de desfechar uma terceira pancada.
Pouco antes do
amanhecer, percebeu que Skry mir dormira de novo e, mais uma vez, pegou o malho
e deu uma pancada com tal violência que o mesmo penetrou na cabeça do gigante
até o cabo. Skry mir, porém, sentou-se e esfregando a cabeça, exclamou:
— Uma bolota
caiu em minha cabeça. O quê? Estás acordado, Tor? Acho que já é hora de nos
levantarmos e nos vestirmos. Mas não tendes de andar muito para chegardes à
cidade chamada Utgard. Eu vos ouvi sussurrando uns para os outros que não sou
um homem de pequenas dimensões. Ao chegardes em Utgard, porém, vereis muitos
homens mais altos do que eu. Aconselho-vos, portanto, quando ali chegardes, a
não terdes confiança demasiada em vós mesmos, pois os seguidores de Utgard-Loki
não admitirão fanfarronadas de criaturinhas tão pequenas quanto vós. Deveis
seguir a estrada que segue para leste e a minha vai para o norte. Portanto
devemos aqui nos separar.
Assim dizendo,
atirou a mochila aos ombros e, virando as costas, entrou na floresta, deixando
Tor sem nenhuma vontade de detê-lo e pedir-lhe para continuar fazendo-lhes companhia.
Tor e seus
companheiros seguiram viagem e, por volta de meio-dia, avistaram uma cidade no
meio de uma planície. Era tão alta que eles foram obrigados a dobrar a cabeça
até quase os ombros para poder avistá-la até em cima. Continuaram a andar e
entraram na cidade e, avistando diante deles um grande palácio com a porta
escancarada, nele penetraram e ali encontraram um certo número de homens de
estatura prodigiosa, sentados em bancos, em um salão. Continuando a caminhar,
chegaram diante do rei, Utgard-Loki, a quem saudaram com
grande respeito.
— Se não me
engano, este rapazola ali deve ser o deus Tor — disse o rei, encarando-os com
um sorriso zombeteiro.
Depois,
dirigindo-se a Tor acrescentou:
— Talvez valhas
mais do que pareces. Em que tu e teus companheiros vos destacais, pois não tem
permissão de permanecer aqui quem não se destaca, desse ou daquele modo, sobre os
outros homens?
— O que sei com
perfeição — disse Loki — é comer mais depressa do que qualquer outra pessoa, e
estou disposto a oferecer uma prova, enfrentando qualquer um que seja escolhido
para competir comigo.
— Será uma
qualidade levada em conta, se conseguires fazer o que prometes, e vamos tentar
agora mesmo — replicou o Utgard-Loki.
Ordenou, então,
que se aproximasse e experimentasse sua capacidade, em comparação com Loki, um
homem que estava sentado na extremidade do banco e que se chamava Logi. Tendo
sido colocado no salão um recipiente cheio de carne, Loki colocou-se de um lado
do mesmo e Logi de outro lado, e cada um começou a comer tão depressa quanto
podia, até os dois se encontrarem no meio do recipiente. Verificou-se, porém,
que Loki comera apenas a carne, ao passo que seu adversário devorara tanto a
carne quanto os ossos. Assim todos os presentes proclamaram que Loki fora
vencido.
Utgard-Loki
perguntou, então, que façanha seria capaz de executar o jovem que acompanhava
Tor. Tialfi respondeu que correria a tal velocidade que ninguém seria capaz de
se emparelhar com ele. O rei observou que tal capacidade era algo que realmente
podia ser apresentado, mas que, para vencer a competição, o jovem precisaria
ser muito ágil. Levantouse, então, e dirigiu-se, com todos os presentes, a uma
planície onde havia um bom terreno para corrida, e, chamando um jovem por nome
Hugi, ordenou-lhe que disputasse uma corrida com Tialfi. Na primeira corrida,
Hugi ficou tão à frente de seu concorrente que o alcançou por trás, não muito
distante do ponto de partida. Correram uma segunda e uma terceira vez, mas
Tialfi não foi melhor sucedido.
Utgard-Loki
dirigiu-se a Tor: que façanha estaria disposto a executar para provar que merecia,
realmente, a fama que tinha? Tor respondeu que disputaria uma prova de bebida
com qualquer um. Utgard-Loki mandou seu copeiro buscar o grande chifre que seus
seguidores eram
obrigados a
esvaziar quando alguns deles cometiam qualquer falta que implicasse violar os costumes
do festim. Tendo o copeiro apresentado o chifre a Tor, Utgard-Loki explicou:
— Quem é bom
bebedor, esvazia esse chifre de um só gole, embora a maior parte dos homens o
esvazie de duas vezes, e os fracos só o consigam de três.
Tor olhou para o
chifre, que não era de tamanho descomunal, embora muito comprido. Como estava
sedento, levou-o aos lábios e bebeu durante o maior tempo que pôde, a fim de
não ser obrigado a tomar um segundo gole, mas, quando afastou o copo dos lábios
e o olhou, percebeu que a bebida mal havia diminuído.
Depois de
respirar com força, Tor tentou outra vez, com toda a energia, mas após afastar
o chifre da boca teve a impressão de que bebera ainda menos que da vez
anterior, conquanto a bebida já não respingasse agora.
— E então, Tor?
— exclamou Utgard-Loki. — Não deves te poupar; se queres esgotar o chifre no
terceiro gole, precisas beber muita coisa, e devo dizer que não serás considerado
aqui um homem tão forte quanto és em tua terra, se não executares outras
façanhas melhor do que estás executando esta.
Furioso, Tor
levou novamente o chifre aos lábios, e fez o possível para esvaziá-lo; mas, ao
olhar a bebida, viu que ela estava apenas um pouco mais baixa. Assim, resolveu
não tentar outra vez e devolveu a vasilha ao copeiro.
— Agora estou
vendo que não és o que julgávamos que fosses -disse Utgard-Loki.
Poderás, no
entanto, tentar outra façanha, embora me pareça que não tens condição para conquistar
qualquer prêmio.
— Que
experiência propões agora? — perguntou Tor. — Costumamos praticar aqui uma
brincadeira da qual participam somente as crianças — respondeu Utgard-Loki.
Consiste apenas em levantar meu gato do chão, e eu não me atreveria a propor
tal coisa ao grande Tor, se já não tivesse observado que não és, de modo algum,
o que esperávamos. Mal acabara de falar, um grande gato cinzento entrou no
salão. Tor segurou-o pela barriga e fez o possível para levantá-lo do chão, mas
o gato, recurvando as costas, tornou vãos todos os esforços do deus, que não
conseguiu levantar senão uma pata do animal. Vendo isso, Tor desistiu de fazer
nova tentativa.
— A experiência
deu o resultado que eu esperava — disse Utgard-Loki. O gato é grande, mas Tor é
pequeno em comparação com nossos homens.
— Pequeno como
sou — retrucou Tor —, deixa-me ver quem de vós, agora que estou enfurecido,
estará disposto a lutar comigo.
— Não vejo
ninguém — disse Utgard-Loki, olhando para os homens sentados nos bancos — que não
se julgasse diminuído lutando contigo. Deixarei, contudo, que alguém vá chamar
a velha Elli, minha ama, e Tor lutará com ela se quiser. Ela já lançou ao chão
muitos homens como tu, Tor.
Entrou no salão,
nesse momento, uma velha desdentada, a quem Utgard-Loki deu ordens de lutar com
Tor. Não é preciso dizer que, por mais que Tor se esforçasse, não conseguiu derrubar
a velha. Depois de uma violenta luta, Tor começou a ceder terreno, e afinal
caiu ajoelhado. Utgard-Loki disse-lhe, então, para desistir, acrescentando que
Tor não teria mais oportunidade de lutar com outra pessoa e que já estava
ficando tarde; levou Tor e seus companheiros para os aposentos em que eles
passaram a noite.
Na manhã
seguinte, ao nascer do dia, Tor e seus companheiros vestiram-se e preparam-se
para partir. Utgard-Loki mandou servir uma mesa repleta de iguarias e bebidas. Depois
do repasto levou os hóspedes até a porta da cidade, e, antes que aqueles
partissem, perguntou a Tor o que achava de sua viagem e se havia encontrado
algum homem mais forte do que ele próprio. Tor respondeu que não podia negar
que se sentia envergonhado.
— E o que mais
me aborrece — acrescentou — é que podeis me chamar de uma pessoa de pouco
valor.
— Não — disse
Utgard-Loki. — Agora que estás fora da cidade, posso dizer-te a verdade:
enquanto eu viver e mandar, jamais entrarás aqui de novo. E, palavra de honra,
se eu tivesse sabido antes que tinhas tanto vigor e me levarias tão perto do
revés, não teria permitido
que aqui
entrasses desta vez. Fica sabendo, portanto, que te iludi durante todo o tempo,
com minhas artimanhas. Primeiro, na floresta, amarrei a mochila com arame para
que não pudesses desamarrá-la. Depois, tu me deste três pancadas com teu malho.
A primeira, embora a mais fraca, teria terminado com meus dias se me tivesse
atingido, mas deslizei para um lado e tuas pancadas atingiram a montanha, onde
abriram três fendas, uma das quais de grande profundidade. Lancei mão de
recursos semelhantes, nas provas que disputastes com meus homens. Na primeira,
Loki, como a própria fome, devorou tudo que tinha diante dele, mas Logi era, na
realidade, nada menos que o Fogo e, portanto, consumiu não apenas a carne mas o
osso que a sustenta. Hugi, com quem Tialfi disputou a corrida, era o
Pensamento, sendo impossível para Tialfi correr na mesma velocidade que ele.
Quando tu, por tua vez, tentaste esvaziar o chifre, executaste uma façanha tão
maravilhosa que, se eu a não tivesse visto, não teria acreditado. De fato, uma
das extremidades daquele chifre ia dar no mar, que tu não conseguiste esgotar,
mas, quando chegares à praia, perceberás quanto do mar foi por ti bebido.
Realizaste uma façanha não menos maravilhosa com o gato e, para dizer-te a
verdade, quando vimos que
uma de suas
patas estava acima do chão, nós todos ficamos horrorizados, pois o que julgavas
ser um gato era, na realidade, a serpente do Midgard, que rodeia a Terra e foi
tão distendida por ti
que mal
conseguiu rodeá-la entre sua cabeça e sua cauda. A luta com EUi não constituiu
façanha menos admirável, pois jamais houve um homem ou haverá que, mais cedo ou
mais tarde, não acabe sendo vencido pela Velhice, e era isso que Elli era
realmente. Agora, porém, que vamos nos separar, deixa-me dizer-te que será
preferível para nós que jamais te aproximes de mim novamente, pois, se assim
fizeres, defender-me-ei, outra vez, por meios de artimanhas, de modo que
desperdiçarás teus esforços e não adquirirás fama lutando comigo.
Ouvindo tais
palavras, Tor, enfurecido, levantou o malho e teria desfechado uma pancada, se
Utgard-Loki não tivesse desaparecido. Quando voltou à cidade para destruí-la,
Tor nada encontrou além de uma verdejante planície.
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