Sempre fui um estranho no ninho. Desde que me entendo por gente, nunca possuí talentos, habilidades ou interesses que me fizessem ser caro a um grupo, a um bando. Nem, e muito menos, eles - os bandos -, atributos e atividades ou assuntos que me despertassem a vontade de a eles pertencer, congregar-me.
Fui
assim em criança, em adolescente, em jovem adulto. Não seria agora - eu,
um pujante pré-envelhescente - que a situação pudesse ser diferente.
Sou um conservador assumido em relação à moral, aos costumes, às
tradições e à política. Um conservador que vive num covil de
esquerdistas.
Sou
professor do ensino médio. De escola pública. Antro e reduto de
esquerdistas de boutique, de Ches Guevaras e de Fidéis de diretório
acadêmico de faculdade. Furna de comunistas revolucionários, que só se
rebelam, só promovem gritaria e balbúrdia, greves e paralisações por
terem a garantia de que nenhuma punição significativa lhes recairá sobre
o lombo, só por terem a certeza de que não correm nenhum risco real às
suas carreiras : são funcionários públicos com estabilidade no emprego
garantida por lei. Fossem funcionários de empresas privadas, duvido que
se rebelassem tanto assim.
São, esses professores esquerdistas de escola pública, bem como nos diz o gênio Belchior em sua canção "Dandy" : "Mamãe
quando eu crescer/Eu quero ser rebelde/Se conseguir licença/Do meu
broto e do patrão/Um Gandhi dandy/Um grande milionário socialista/De
carrão chego mais rápido à revolução".
São
metidos a "justiceiros sociais", esses professores; sempre a favor de
todo e qualquer privilégio para os "coitadinhos" desse nosso Brasil
dantes mais varonil, de toda e qualquer regalia para os "excluídos",
para os "sem oportunidade" desta triste e preguiçosa terra de Pindorama.
Bolsa
Família, Bolsa Escola, Bolsa Detento, Bolsa Ditadura, cotas para vagas
na universidade, em concursos públicos, em sorteios de habitações
populares etc etc. Gozam, esses professores, ao defenderem tais
"conquistas sociais".
E
não é que hoje, numa semifria terça-feira, que nada prometia além de
ser mais um costumeiro dia de trabalho inútil, fui brindado, logo pela
manhã, com uma inesperada e esfuziante alegria?
Abrindo
um breve parêntese, digo-vos que adoro o Tempo. O Tempo, por ter todo o
tempo do mundo, é o mais paciente dos deuses. E o mais implacável,
também. O Tempo não precisa promover genocídios, pragas e hecatombes
feito o deus cristão para punir os pecadores. O Tempo só precisa
dar-lhes tempo. Tempo para que se contradigam e se autopunam. Tempo para
que mordam a própria língua e morram pela própria peçonha. Fecho o
parêntese e volto à vaca fria.
Cheguei
na escola por volta das dez para a sete da manhã - como sempre chego - e
enquanto me organizava para mais um período letivo, pegava os diários
das salas do dia, abastecia minha caixinha de giz etc, ouvi,
involuntariamente, de canto de orelha, um docente a praguejar em voz
alta contra a prova de um concurso municipal para vagas no magistério
que ele havia prestado - docente que não
direi se é homem ou mulher, nem que disciplina leciona, ou seja,
contarei o milagre, mas não direi o nome do santo, só direi que pertence
a tal área das "humanas.
Até
então, tudo normal. O tal docente é destes de esquerda, "politizado",
"engajado" e "militante" das causas sociais, vive mesmo revoltado com
tudo e o tempo todo. Não sabe falar em voz baixa. Tudo o que diz, diz
gritando. Como se estivesse em perpétuo palanque, em perene estado de
comício, a discursar e a panfletar para as massas desvalidas.
Supus
que ele estivesse a deitar impropérios contra alguma maracutaia no
concurso, contra alguma manobra escusa que estivesse, por exemplo, a
favorecer "protegidos" de algum político em detrimento de quem
honestamente fez a prova do concurso. Tipo de falcatrua muito
corriqueiro em concursos municipais.
Qual
o quê, meus amigos... qual o quê? Ele, eterno defensor das minorias
oprimidas pelo homem branco heterossexual, estava a maldizer, a cuspir
marimbondos de fogo - pasmem, leitores do Marreta -, contra o sistema de
cotas adotado pelo tal concurso. Sim, criticando o sistema de cotas,
meus caros.
Segundo
ele, em concursos públicos, a porcentagem usual de vagas destinadas a
negros, pardos, indígenas e deficientes físicos perfaz 20%, ficando 10%
para negros, pardos e indígenas e 10% para deficientes físicos.
Pois
a Prefeitura organizadora do concurso, desta vez, resolveu ir mais
longe na justiça social. Destinou 20% das vagas para deficientes físicos
e outros tantos 20% para negros, pardos e indígenas, ou seja, uma
reserva "social" de 40% do total de vagas.
Ele,
que foi muito bem classificado, e que, ideologias idiotizantes à parte,
é profissional dos mais capazes e competentes que já conheci, porém
branco(a), ficou de fora. Ganhou, mas não levou. Fossem os usuais 20% de
reservas, ele teria ingressado.
Adorei.
A ideologia da justiça social lhe saiu pela culatra. Ideologia no cu
dos outros é refresco. Quando é em nosso próprio ânus que ela adentra
ardida, já não nos parece mais tão divertida, já não nos parece mais tão
justa, né? O docente esquerdista foi vítima de "fogo amigo".
E
reclamava disso aos brados, sem nenhum pudor, de modo que todos o
pudessem ouvir. Deveria era ter ficado bem quietinho, até fugir de
comentar o assunto, deveria ter engolido calado, ruminado e digerido o
gol contra, a bola nas costas que levou da ideologia que tanto apregoa.
Bebido sua indignação junto ao matutino café amargo. Deveria ter tentado
passar despercebido; não fazer alarde de sua ululante revolta
contraditória.
Das
duas, uma : ou esse pessoal da esquerda não tem problema nenhum em se
assumir como hipócritas, ou nem se dão conta de sua hipocrisia, sua
burrice os impede.
Sou
homem de gostos módicos, de prazeres simples e frugais, mas vos digo
que nada poderia, hoje, ter me proporcionado maior prazer do que ter
visto um esquerdista ser discriminado pela ideologia perversa e
sub-reptícia que defendeu a vida toda. Nenhum júbilo poderia ter sido
superior ao de ver um esquerdista a reclamar do cuspe que disparou para
cima e que, agora, lhe pousa na cabeça. A se queixar da mordida da cobra
cuja boca ele sempre beijou.
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