"Eu e meu filho vivemos no meifumadô e andamos à margem da vida e da morte no rikudô-shishô. Não somos samurais, não seguimos os seus princípios. Nem sequer somos pessoas."
Vou tentar transmitir pra vocês o nível da experiência que é acompanhar a série do Lobo Solitário. Mangá antigo, foi publicado no início dos anos 70. Se passa há mais tempo ainda, na época de samurais do Japão feudal. Itto Ogami é um ex-executor do governo que caminha por vingança como um andarilho, um lobo solitário. A sua única companhia é seu filho, a pequena criança Daigoro. A intenção deles é se vingar contra a organização de samurais que serve o governo e tem um poder virtualmente sem fronteiras.
(Vamos contando os itens em japonês? Se eu errar vocês me falam)
Ichi-Arte e artistas
O desenhista, Goseki Kojima, domina as ilustrações da primeira página até a última da série. Desde os mais diversos cenários da época até momentos dramáticos exagerados como já conhecemos de animações e filmes japoneses, ele faz seu trabalho perfeitamente. É frequente antes de partir para ações, a história focar em mostrar o ambiente onde elas se passarão, com vários quadros sem nada acontecer, apenas o ambiente normal, as partes da natureza e construções. O resto que ele faz merece ter seu crédito dividido com o outro colaborador que faz um dos melhores casamentos criativos possíveis, o roteirista Kazuo Koike.
O homem é de uma inteligência inegável (ainda está vivo, com 80 anos e escrevendo, o desenhista já morreu). No início você entra na jornada do Lobo Solitário que já começou. Ele trabalha como mercenário junto de seu filhinho, Daigoro, e vai completando seus serviços sempre de forma impressionante e inteligente, o que vai te manter cativado nas histórias. De pouco em pouco, sem nenhuma pressa (como certos filmes...) você vai conhecendo os detalhes da origem dos personagens e os detalhes sobre suas personalidades. Conforme tudo vai ficando mais claro, também vai ficando mais legal. Como outros bons anti-heróis, Itto pode estar fora do sistema, mas ainda mantém um código moral cujo sentido está fortemente ligado com suas experiências pessoais.
Ni-Curva de dificuldade
No mínimo você sabe que um mangá é lido de trás pra frente. Mas além disso, Lobo Solitário é uma série MUITO aprofundada na cultura do Japão da época, eu não me surpreenderia se fosse a mais aprofundada de todas. Então está cheio de termos japoneses que soarão estranhos, as edições contam sempre com glossários, mas pode ser meio chato ficar consultando o tempo todo. Os desenhos também podem confundir um pouco no início, tanto pela ordem na história, quanto pelos desenhos do Kojima em cenas de luta irem ficando melhores com o tempo. Mas eu garanto, que todos os estranhamentos não só podem, como devem ser superados para que você conheça essa história incrível.
San-Venha viajar no espaço-tempo
Você vai sentir que conheceu o Japão Feudal, não são só os desenhos e o contexto histórico, são os detalhes constantes. Dificilmente há algum personagem recorrente além do mercenário e seu filho, quase nunca, de resto são personagens secundários passageiros que habitam os lugares por onde ele passa. E esses personagens secundários sempre mostram detalhes diferentes da época. São pessoas que representam estilos de vida, profissões, classes sociais, religiões, ideologias diferentes, e também dramas subjetivos. Você tem personagens passando por lutos, crises existenciais, dilemas de honra, crises financeiras, problemas de administração, mulheres que foram estupradas e desejam vingança e mais uma enorme diversidade nas mais de cem edições da série! É incrível como logo no início ela mostra seu tom arrepiante e VAI FICANDO CADA VEZ MELHOR!
O autor parece se preocupar em explorar várias possibilidades sobre determinados temas, ao menos é o que dizem as introduções das coleções publicadas no Brasil, onde o editor sempre fala sobre como quando eles juntaram em volumes, cada volume parecia ter um tema específico, mesmo originalmente sendo publicações separadas. Só mais pro final são introduzidos dois personagens, que seriam vilões e inimigos de Ogami, que se tornam mais recorrentes. Até então são sempre apenas os dois protagonistas.
Chi-Abram alas pro Lobo Solitário!
É impressionante como se passam tantas e tantas aventuras com esse elenco tão limitado de dois personagens, mas eles são tão bem mostrados, tanto pelos textos quanto pelos desenhos, que sempre, seeeeeeeeeeeeeeeeempre é foda vê-los sendo introduzidos em uma história, até se você tá lendo uma atrás da outra. Itto Ogami para executar seus planos sempre te surpreende, com técnicas do livro "A Arte da Guerra" sendo abordadas, aparentemente como inspiração. Claro que os inimigos que ele enfrenta também estão à altura, senão não teria graça, e eles também apresentam sempre técnicas de luta e estratégias de ataque diferentes, o lobo e seu filhote se metem nas mais diversas situações perigosas. E ele sempre te impressiona por conseguir superá-las!
Ele tá na classe Chuck Norris, mas diferente de personagens pós-modernos como aquela Rey do Star Wars, que vence tudo você fica sem entender como, Itto Ogami poderia liderar a classe de personagens que são fodões. Porque ele é do tipo que te convence disso, então você vai ficando em escalas cada vez maiores impressionado com as habilidades do cara,
até
o
final.
Espero ter deixado meu ponto claro...
Ele é comparável com Batman, Justiceiro, Elektra e Mulher-Maravilha quando tão sendo escritos pelos seus melhores autores!
Go-Não é porque tem o Daigoro que é pra criancinhas
Além da curva de dificuldade e os temas complexos, outra característica que torna essa série não recomendável para jovens é a altíssima violência. Há mutilações, decepamentos, torturas e estupros. Mas nada é puramente apelativo em qualquer momento, a história conta sempre com inteligência, profundidade e criatividade. E há, principalmente, beleza, surpreendente beleza. Há intercalações entre toda a seriedade e desolação da jornada de Ogami, com a fofura e inocência da criança, isso traz trocas de clima como em nenhuma outra história, pois o autor faz ambos muitíssimo bem!!! É algo que não me lembro de ver em outro lugar, e é incrível como uma característica tão simples como o fato dos protagonistas serem um cara e seu filho levarem a uma das principais características da série, que a torna tão única. Além desse contraste, também há a simbiose dos dois estarem traçando a demoníaca estrada da pura vingança, então também é interessante como Ogami e uma criança tão pequena compartilham da mesma noção trágica de uma vida regada e significada unicamente por morte. Deve ser impossível não gostar de ambos.
Ho-Inspiração de um certo Frank Miller...
Desnecessário explicar a importância do Miller. Não sei dizer se foi antes de começar a série do Demolidor, quando ele era bem novinho, que teve contato com o Lobo Solitário, mas sabemos como ele era grande fã de ninjas e samurais, o que é refletido em vááários pontos da carreira, como a criação da Elektra. Houveram outros fatores, mas Miller foi um dos primeiros a trazer a cultura dos mangás para o Ocidente. De tanto que ele era apaixonadíssimo pelo Lobo Solitário, quando cheio de moral ele mesmo convenceu editores pra trazerem o material pro Ocidente, chegando a desenhar muitas das capas que foram colocadas nas publicações ocidentais. Lendo a série japonesa inteira agora, não conseguia deixar de imaginar quantos fatores que o inspiraram no seu trabalho, além da própria contextualização com ninjas e afins.
Digo além porque pra uma história sobre um samurai em vingança envolvendo violência e nudez, as chances de ser uma coisa estupidamente apelativa eram grandes, mas não é o caso! A filosofia oriental é constante, em sentidos de honra e espiritualidade, INCLUSIVE durante as lutas. Isso me fez lembrar as trocas de soco em que o Batman e o Demolidor se metiam, mas eram muito mais empolgantes do que outras lutas normais, afinal envolviam tantos temas que cada personagem representava e defendia... Me fez perceber que o Miller não tirou toda a sua fodalidade do nada... Uma parte considerável das batalhas do mangá têm grandes valores como plano de fundo além da medição de força e habilidade.
Roku-Impressionante, simplesmente impressionante
Há alguns anos atrás eu fiquei embasbacado e registrei quando acabaram as 36 edições da Mulher-Maravilha escrita pelo Brian Azzarello.
http://douglasjoker.blogspot.com/2014/12/fim-de-arco-da-mulher-maravilha-devia.html
Eu nunca tinha lido tantas e tantas edições que eram tão legais e pareciam ir se superando. Aliás, eu nunca tinha acompanhado enquanto lançava, porque já tinha lido boas séries longas, como 100 Balas e A Saga do Monstro do Pântano. Gente... Eu tinha ficado embasbacado com a Mulher-Maravilha... Lobo Solitário são CENTO E QUARENTA E DUAS EDIÇÕES! Matematicamente, dividindo 142 por 36, com Lobo Solitário eu fiquei 3,94x mais impressionado, admirado e embasbacado do que com a série da amazona, já que nessa CENTENA de histórias, elas também vão melhorando sempre, sempre, sempre... Pense como isso acontece no Cavaleiro das Trevas do Miller que são APENAS QUATRO EDIÇÕES. Pense em CENTO E QUARENTA E DUAS edições do que poderia ser considerado o sensei do Cavaleiro das Trevas. Você se sente confuso em como descrever isso? Acho que eu entendo, então vou tentar simplificar. Isso significa o monumental: Lobo Solitário é um daqueles clássicos obrigatórios.
Inteligência, sensibilidade, diversidade cultural, adrenalina, beleza, importância pra história dos quadrinhos no mundo, não vejo como alguém poderia se arrepender de embarcar nessa jornada que é ler essa grande série e chegar até o seu final. Eu realmente não cheguei a comprar, pois pude pegar todos emprestados, mas vi aqui que as recentes republicações podem ser encontradas por menos de 20 reais, um preço mais convidativo do que os super-heróis da Panini e os alternativos a la Pipoca&Nanquim e Veneta, e você pode ter a absoluta certeza que vai valer a pena. Itto Ogami e Daigoro, pai e filho são ícones e referências que agora compartilho com os outros felizardos que também acabaram essa série. Normalmente eu teria feito um texto bem maior falando sobre tantos pontos que tem uma série tão grande, mas estou com o tempo realmente escasso, então decidi resumir. É algo que me lembrarei e recomendarei até o último dia da minha vida, aqueles raros casos em que chega a ser admirável até pensar na capacidade humana de ter sido uma pessoa por trás das cortinas que criou tudo aquilo. Se quer uma referência de quando me sinto assim, acho que a última vez foi ao terminar a série de TV do Breaking Bad... É uma excelente sensação. Não me parece exagero algum avaliar O Lobo Solitário como mais uma narrativa que ficará pra história das jornadas épicas que começaram com Ilíada e Odisséia...
Eu terminando |
"Sinto o cheiro, o cheiro de um verdadeiro samurai. Um cheiro que há tempos não sinto mais."
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