▕ | Wagner Williams Ávlis*
“A necessidade de heróis de carne e
osso para sacrificar sua vida na [segunda grande] guerra criou a necessidade
da fantasia dos super-heróis” – Nildo Viana[1].
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Uma vez que sabemos a significação do gênero de
super-heróis nas HQs, que nada mais é do que a alegoria do apólogo, a questão que
se põe agora é de onde vem a noção primordial do super-herói. Antes de
passarmos a ela, cumpre dizer ainda que a noção
é derivada da aspiração, e não o seu contrário. A humanidade não formulou
primeiro uma noção do ser herói para depois nela se inspirar; foi o inverso:
primeiro nossa espécie sentiu a aspiração, para depois, concretizando-a,
formular a noção; é que a sublimação heroica está mais para uma questão
instintiva do que acessória, e, como instinto, acompanha o homem desde sua
primitiva aventura na Terra. Quaisquer das tribos hominídeas nas savanas da
África ou nos vales da Ásia se sentiam ameaçadas por perigos que davam curso à
seleção natural, por conseguinte, a sobrevivência, adversidades que, se de um
lado encurralavam os homens de Yuanmou[2]
para o medo, um dispositivo de autopreservação, por outro, oportunizavam alguns
poucos desses mesmos homens de Yuanmou ao impulso da coragem – outro
dispositivo de autopreservação, porém mais elevado –, coragem essa que, decerto, salvou vidas, senão
toda a tribo. Porque é a coragem
o atributo mais característico do herói.
Por isso o T-1000 em O Exterminador do
Futuro-III disse “a raiva é mais útil
do que o medo”, porque, de
inegável, a raiva leva à coragem. Foi a coragem inconsciente e intraduzível, mediante
a ausência de fogo, que fez três hominídeos do Paleolítico de 80.000 a.C.
heróis da tribo Ulan no premiado filme A
Guerra do Fogo (1981). Amoukar, Naoh, Gaw, enviados por um primata mais
velho, saem numa jornada em busca do fogo roubado por uma tribo caçadora rival.
Foi a coragem de Ulisses em querer regressar para sua esposa Penélope em Ítaca,
na Grécia do séc. XII a.C, que não só o fez regressar como enfrentar toda uma rapsódia
de desafios descomunais entre o Egeu e o Mediterrâneo melhor vista em A Odisseia, de Francis Ford Coppola (1997).
Foi a coragem de transmitir a divina revelação de Alá através de um anjo, em
meio à renhida luta de tribos árabes politeístas adversárias, além dos reinos
cristãos, como o da Abissínia e Bizâncio, que fez de Maomé um herói do Islã em
todos os sentidos. Em todos os atos de revanche, em toda jornada desafiadora,
em todos os messianismos, está subscrita a coragem, que faz de seus portadores
heróis, quer mártires, quer imperadores.
Coragem de realizar aquilo que o comum não faz ou que a maioria não conseguiria fazer: atributo do e o que faz ser um herói. |
A coragem, o primeiro ato de heroísmo, segue viva
no coração dos homens como uma nobre aspiração que, com o desdobrar do tempo,
derivou várias noções de super-herói. Dando um exemplo ainda arcaico, a noção de super-herói incorporou duas naturezas, uma espiritual, outra
marcial. A noção espiritual veio
das divindades salvadoras, das entidades infra-sobre-naturais do bem e do mal
(maniqueísmo), das criaturas de assombração das matas, dos semideuses e das
semideias, dos seres híbridos errantes, do mágico xamânico, da feiticeira, dos
profetas, oráculos, videntes, adivinhos, médiuns, necromantes; com a noção marcial vieram o rei, o faraó, o
guerreiro, o gladiador, o cavaleiro, o espadachim, o arqueiro, o viking, os
guardiões, os arcanos, o navegador descobridor de mares, o pirata, o
mercenário, a caçadora da tribo, a amazona, samurais, xoguns, ninjas, katanos. Entrementes,
numa roupagem mais contemporânea, essa noção do super-herói reconfigurou-se nos
tropeiros imperiais, no detetive, no policial, no bombeiro, no salva-vidas, nas
forças armadas, na enfermeira, no médico, no cientista, no investigador, nos
terroristas, nos serviços de inteligência, nas forças-tarefas de resgate, nos
esquadrões ostensivos, nos lutadores de artes marciais, nos atletas, nos artistas,
nos famosos, em personalidades eminentes da História, como atesta o crítico
literário francês Roland Barthes, esses são os novos mitos hoje[3].
Durante as etapas de sua história, cada
civilização, em geral em eras de extremos: ou no apogeu ou na decadência,
possuiu seu grande herói, fabricou-o com requintes linguísticos mais
elaborados, e no caso das culturas letradas até o registrou em documentos
literários com pretensões históricas, imortalizando-o. Gilgamesh da Suméria, Hércules
da Grécia, Sansão de Israel, Beowulf da Saxônia, Siegfried da Suécia, Cúchulainn
dos celtas, Quetzalcóatl do México, Brünnhilde da Germânia, Joana d’Arca da
França, Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda, da Inglaterra, são os
casos mais famosos de super-heróis de civilizações antigas notáveis. Mesmo
assim, a maioria desses super-heróis antigos era instável, não carregava sobre
si o ideal moderno de um herói, isto é, a projeção das virtudes como o bom, o
belo, a justiça, a verdade, a honra, a lealdade, a moral, a dignidade, a
esperança, o amor, a fé; não estava preocupada com um sistema ético canônico,
nem ser modelo virtuoso para ninguém, por vezes mentia, traía, saqueava,
torturava, sequestrava, assassinava quando lhe era conveniente ou oportuno[4].
Foi, sem dúvida, o Cavaleiro da Triste Figura – Dom Quixote de la Mancha (1605)
– o primeiro herói (bem como o primeiro romance) moderno, ainda que de forma
imaginária, satírica, paródica às novelas medievas de cavalaria. Para o mundo
imaginado de Quixote ele mesmo encarnava o ideal das virtudes, porém, quando
defrontado com a amarga realidade circundante, anti-heroica, apercebia-se de
que seu ideal era frustrado; “ao regressar a seu povoado, Dom Quixote percebe
que não é um herói, mas que não há heróis”[5].
É ou não é a antecipação das antíteses ideológicas que agora os super-heróis
quadrinísticos enfrentam, a chamada crise da razão e dos valores, vista, por
exemplo, em “Poder Supremo”, de J. Michael
Straczynski (2003), “Superman, Olho por
Olho”, de Joe Kelly (2001), “The
Authority”, de Warren Ellis e Bryan Hitch (1999), “Watchmen”, de Alan Moore (1986)?
Podemos dizer, com o advento do romance e do herói
modernos, que tem por epicentro Dom Quixote de Miguel de Cervantes, personagens
heroicos passaram a encarnar o ideal canônico das virtudes, às vezes com
purismo, outras com realismo multifacetado. De todo modo, mesmo um Don Diego De
La Vega, o Zorro de Johnston McCulley – na representação do arquétipo da
resistência contra colonos e governos tirânicos – ou um Tarzan de Edgar Rice
Burroughs – como arquétipo do mito do bom selvagem – é a representação de um
ideal de virtude (e muitas vezes de estética) o que de melhor subsiste no
homem ou na mulher, o potencial atingido que aspira se manifestar do âmago da
humanidade para melhorar o mundo. Esses heróis (ou super-heróis, se preferir),
além de transmitir, num primeiro plano, tais potenciais humanos, transmitem,
num segundo plano, lições de vida oriundas e subentendidas das adversidades, injúrias,
dos dilemas, obstáculos que sofrem ao longo de sua jornada, óbices que põem à
prova as virtudes heroicas desses personagens, mas que, de mesma sorte, põem à
prova o leitor, interpelando-o a se perguntar: “Se fosse comigo, eu teria a capacidade de agir assim?”. “O pensar, o agir, o sentir, o crer e o fazer
daquele personagem lembram o meu jeito?”. É neste ponto, a aferição das
virtudes na personalidade dos entes ficcionais, que se estabelece a identificação entre personagem e leitor
– um leitor que quer despertar o que é “super” dentro de si, seja para o bem,
seja para o mal, recaindo na noção da disputa por poder –, fator determinante para
a memória afetiva que, não raro, é responsável pelo sucesso de uma persona ou
da obra. Devido ao sucesso dos quadrinhos em nosso tempo, praticamente todos os
super-heróis do mainstream têm seus potenciais
e suas lições de vida explorados pela cultura pop de forma didática, para
crianças a adultos, a meu ver, um sinal positivo, se bem que embrionário, de
que a indústria começou a olhar os supers com a maturidade que lhes é própria.
Note quão distantes já estamos daquela medíocre
noção de um super-herói ser coisa de criança, ainda mais quando percebermos
que, num esforço hipercriativo, quando na pop art alienígenas eram sinônimo de
invasores exploradores do mal, e ser herói estava limitado à capacidade humana,
surgiu nos céus um herói que ambicionou reunir unicamente em si as virtudes,
façanhas e potenciais de todos os heróis até ali existentes na História. Um
herói que elevou o termo “super” às últimas consequências e que fez acontecer,
na prática, em todos os sentidos, o lema “para o alto e avante!”.
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WAGNER
WILLIAMS ÁVLIS – crítico literário da Academia Maceioense de Letras (reg.
O.N.E. nº 243),
professor de Língua Portuguesa, articulista e historiador do Homem-Morcego.
[1] Especialista,
mestre em Filosofia e doutor em Sociologia pela UnB. Professor da Universidade Estadual
de Goiás. Cf. Super-Heróis e Axiologia
(artigo). Revista Espaço Acadêmico nº 22, ano 2, março de 2003.
[2]
Homo Erectus Yuanmouensis foi uma subespécie
do homo erectus vivida em Yunnan, na
China, 1,7 milhão de anos atrás.
[3]
Ver “O mito hoje e a fabricação dos mitos contemporâneos”. In. ARANHA, Maria
Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires.
Temas de Filosofia, 3ª edição. São Paulo: ed. Moderna, 2005, pp.126-129.
[4] Dos
listados, exceto Joana d’Arc.
[5] Cf.
OLIVEIRA, Manoela Hoffmann. Dom Quixote como Primeiro Romance Moderno. XI Congresso Internacional da ABRALIC – Tessituras,
Interações, Convergências, USP, 2008.
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