Já parou pra pensar que no passado tudo era diferente, inclusive a etiqueta? Alguns livros antigos revelam que as coisas eram bem mais rígidas do que parecem, principalmente na era Vitoriana, da qual eu sou fascinada. Ainda hoje a etiqueta não só é necessária para o bom convívio em sociedade, mas também para a plena satisfação com si próprio.
Separei aqui algumas regras interessantes e outra totalmente sem noção de uma era em que tudo deveria ser correto e decente, sem esquecer de ser pudica também. Mas antes vamos entender o que era a educação naquela época, já que livros de romances e filmes nos mostram muito pouco. O trecho a seguir foi retirado do livro “The Ladies' Book of Etiquette” (O livro de etiqueta para damas) escrito por Florence Hartley em 1860.
.
.
Educação não é hipocrisia, frieza no coração ou indelicadeza disfarçada. Tem pessoas que sorriem para suas vítimas e falam bem enquanto as machucam, enganam ou traem. E tomam o crédito para si mesmos, já que tudo foi feito com cortesia; cada tom, olhar e ação está em perfeita consonância com as regras da boa educação. (...) Falsas cortesias como estas perecem sempre!
Educação não é subserviência. Se fosse, um servo russo seria um modelo de educação. É bem possível que as pessoas sejam subservientes e aduladoras sem se ter um único átomo de educação e acontece que homens com uma tenaz autonomia de caráter são essencialmente educados em todas as suas palavras, ações e sentimentos. (...)
A verdadeira educação, na minha concepção, é a gentileza e a cortesia de sentimentos exercitados todos os dias. Isto compreende a boa vontade para com todos, de um completo e constante bom humor, um comportamento fácil e conduta benevolente. Cada pessoa que cultiva estes sentimentos e não toma cuidados em ocultá-los, irá necessariamente ser educada, mesmo que não saiba disso, enquanto que por outro lado, uma mulher essencialmente rabugenta e egoísta, seja qual forem suas pretensões, estará bem longe da verdadeira educação.
Com uma descrição tão genuína, só nos resta mostrar algumas dessas regras tão importantes da época e talvez possamos entender como elas conseguiram moldar a nossa sociedade. Vamos a elas:
1. Não fale em voz alta em um vagão de trem para que os seus companheiros de viagem possam ler seus livros ou jornais.
2. Não fale de óperas na presença daqueles que não as frequentam.
3. Não responda a comentários feitos a você com meros monossílabos. Isso é arrepiante, se não bastante ofensivo. Sempre tenha algo para dizer e o faça.
4. Sempre escolha bem as palavras para que as pessoas possam entender exatamente o que você está querendo dizer.
5. Não fale em voz alta, estridente e evite tons nasais. Cultive uma voz de peito. Aprenda a moderar o seu tom. Converse sempre num tom baixo, mas não muito baixo.
6. Evite qualquer ar de mistério ao falar com aqueles próximos a você. É falta de educação e de muito mau gosto.
7. Não use expressões sem sentido, como “Oh, meu Deus!”, “Oh, caramba”, etc.
8. Não chame cavalheiros de senhores ou pantalonas de calças. São vulgaridades indesculpáveis. Não chame colete de vestes e não use vestes para colete.
9. Não diga que este ou aquele tipo de alimento é sadio ou não, diga sempre saudável ou insalubre*.
*aqui fiquei um pouco confusa porque ele usa “healthy” e “wholesome” que em português teria praticamente a mesma tradução “saudável”, por isso usei “sadio”. Mas acho que deu pra entender, né?
10. "Isso me deixou de baixo astral, meu coração ficou tão pesado quanto chumbo." A maioria de nós sabe o que o é um peso no coração, mas esta não é a metáfora correta para se usar ao falar de um coração pesaroso.
11. Não diga mulher* quando quer dizer esposa.
* aqui ele usa “lady” que é “senhora”, mas ficaria estranho no português. Adaptei pra mulher porque aqui usam “minha mulher/minha esposa” e não “minha senhora” como usam na Grã-Bretanha, ou seja, “my lady”.
12. Nunca gesticule em uma conversa, a menos que você queira ser confundido como um comediante de quinta categoria.
13. Breves imitações de atores ou oradores públicos até são permitidas. Costumes nacionais e peculiaridades entre classes são permitidos também. Franceses frescos*, negociadores ianques e extravagâncias inglesas podem ser ridicularizadas por prazer. Você pode até mesmo imitar porteiros irlandeses, motoristas de taxi e irlandeses** desde que ressalte sua sagacidade e o faça com humor.
*aqui ele usa a palavra “French dandies”. Uma rápida pesquisa e descobri que dandies é uma palavra que descreve uma pessoa afeminada, metrossexual, às vezes até visto como “boiola”. Decidi colocar aqui como “frescos”, já que bicha francesa não cairia bem num livro de etiqueta.
**o texto original diz “bog-trotters” que é um insulto por parte dos ingleses aos irlandeses segundo o Urban Dictionary. É como se quisessem dizer que são a ralé, os almofadinhas, o bobalhões que vem da Irlanda. No português obviamente a gente não tem uma palavra pra isso, portanto optei por chama-los de “irlandeses” mesmo.
14. Nunca questione uma dama sobre qualquer coisa.
15. Se estiver acompanhado de damas, não use argumentos muito complicados e extensos. Elas não se importam e não se esforçarão muito em descobrir a verdade.
16. Nunca questione a veracidade de qualquer afirmação feita em uma conversa comum.
18. Pode ser provocante*, mas não há nada particularmente feminino em nunca olhar um homem nos olhos. Procure por um rosto que te confronte e aprenda que tipo de homem é esse que está na sua companhia e sociedade. Se ele se intimidar diante da inquisição, pior para ele. Se ele valer a pena para olhar, então vale a pena perder a visão.
*a palavra “coquettish” que ele usa significa uma pessoa que adora provocar, que não tem muito controle e acaba sendo até uma atração sexual para as pessoas. Aqui no caso seria uma mulher.
** “fellowship” é uma palavra que descreve amizade, sociedade ou companhia. Entretanto, a palavra anterior é company, então optei por usar “sociedade” me referindo exatamente ao “círculo de amizades” que uma pessoa pode ter.
19. Uma mulher nunca deve se aproximar de homens fumando na rua, a não ser que seja extremamente necessário. Se uma mulher se aproximar, o homem deve apagar o seu cigarro imediatamente. É inaceitável que se fume na presença de uma mulher. Evite também fumar depois do anoitecer.
20. Visitar um conhecido antes das três da tarde é extremamente rude e de mau gosto. Opte por visitar entre três e cinco horas da tarde.
21. Durante uma visita homens não devem deixar seus chapéus sobre uma cadeira ou no chão. É uma atitude inaceitável e visto como vulgar. Para visitas breves, o homem deve segurar o seu chapéu para indicar que ficará por pouco tempo e para visitas longas, o homem deve pendurar o seu chapéu no lugar apropriado da casa.
22. É aconselhável a uma mulher que evite se corresponder com cavalheiros por cartas, principalmente se você é jovem. Ainda sim, se for um amigo de longa data e seus pais ou marido permitirem, é prudente que não se recuse a enviar-lhe uma resposta. Porém escreva a carta como se ela fosse impressa nos jornais, de modo que não lhe cause aborrecimentos. Se for um amigo muito próximo, tome cuidado com suas expressões para que não se tornem veementes e evite assuntos confidenciais. Quando ele começa a insistir em perguntar sobre assuntos particulares, é hora de parar de se corresponder com ele.
23. Casamentos por afeto não são necessariamente incompatíveis com os casamentos formados por outros interesses, mas afeto mútuo não é considerado necessário em um primeiro momento.
24. Nunca fale com uma dama na rua sem pedir sua permissão antes.
25. Quando quiser convidar uma dama para acompanha-lo no teatro, ópera, um concerto ou qualquer outro local público de entretenimento, envie um convite um dia antes para avisá-la e escreva sempre na terceira pessoa. Se for a primeira vez que a convida, inclua sua mãe, irmã ou outra dama no convite.
26. Aceitar presentes de cavalheiros é uma coisa perigosa. É melhor evitar quaisquer destas obrigações e se criar uma regra para si mesma de nunca aceitar estes presentes irá evitar ferir os sentimentos de alguém e se salvará da perplexidade alheia*.
*aqui acredito que ele quis dizer que as pessoas ficariam chocadas de saber que uma mulher aceitou um presente de um cara, por isso usei a expressão “perplexidade alheia”. Naquela época as pessoas eram bem pudicas em público.
27. Um verdadeiro cavalheiro não apenas se abstém de ridicularizar os retardados, ignorantes ou enfermos como também nunca irá se permitir sorrir para eles. Irá tratar o tolo* mais rude com a mesma cortesia que trata outros cavalheiros refinados e nunca mostrará pelas palavras, olhares ou gestos que nota as falhas ou vulgaridade do outro.
*originalmente ele usa a palavra “clown” que significa palhaço, mas acho que na verdade quer dizer uma pessoa rústica, meio bruta e ignorante. Um caipirão sem educação, pra ser sincera. Adaptei para tolo, já que logo em seguida ele classifica como “rude”.
28. Não é educado colocar comida no prato de um convidado sem permissão e nem pressioná-lo para comer mais.
29. Durante um funeral entre silenciosamente na igreja e, a não ser que você seja enlutada*, espere que todos saiam antes de se levantar. Nunca tente falar com nenhum membro da família afligida. De qualquer maneira sua sincera compaixão não é bem vinda no momento.
*sim, essa palavra existe e obviamente significa que você está de luto. Originalmente ele usa a palavra “mourners” que tem o mesmo significado.
30. Neste país é absolutamente necessária atenção para o treinamento de criados, já que eles vem de classes mais baixas do campesinato* inglês e irlandês, o que os faz ter uma ideia de educação como um porco domesticado num chiqueiro**. Treine-os para responder à porta prontamente, falar educadamente com qualquer um, se desculpar se necessário, usar termos corteses com convidados ou, se você estiver em casa, que ele os leve para a sala, pegue seus cartões e volte rapidamente com a sua resposta.
*originalmente ele usa a palavra “peasantry” que seria campesinato, ou seja, de onde os camponeses vem. Já naquela época as pessoas tinham que sair da zona rural e vir pras cidades trabalhar, então eles não tinham muita educação ou noções de cortesia.
**aqui ele usa uma expressão no mínimo estranha para mim: “cabin of the latter”. Segundo o Urban dictionary, “latter” era uma expressão comum naquela época e hoje foi substituída pelo “it”, cujo significado é “ele/ela”, o que tira todo o sentido da expressão em português. Imaginei que o “cabin latter” talvez fosse uma expressão pra descrever onde o porco vive de forma mais sutil e educada, ou seja, o chiqueiro. Se bem que comparar uma pessoa ignorante a um porco domesticado não é nada educado! uashaush
Se você ler os livros, perceberá que o incrível é que muitas dessas regras continuam valendo até hoje como não falar alto, não falar de boca cheia, fazer silêncio na igreja, não sair esbarrando em todo mundo enquanto anda na rua, etc. Mesmo a sociedade mudando tanto, acho até que algumas regras deveriam ser implementadas nos dias atuais. Quem sabe a má educação e principalmente falta de noção diminuiriam?
Outra coisa interessante que notei e que você poderá notar também é que eles, apesar de se considerarem extremamente educados, satirizam de certa forma os russos, os irlandeses e as pessoas de classes sociais baixas (vulgo pobres). Naquela época era algo comum, infelizmente. Não que hoje não seja, mas não é bem visto pela maioria das pessoas principalmente por incitar as "fobias" e preconceitos como homofobia, xenofobia, desprezo para com os miseráveis, etc.
No final de tudo fica a pergunta: você conseguiria ser uma dama ou um cavalheiro de prestígio?
Saiba mais:
Há vários livros que contém dicas interessantes, mas obviamente todos são em inglês. A maioria pode ser encontrado online ou até mesmo comprado (o que eu acho legal pra caramba) e coloquei os links abaixo de cada título. Entre eles estão:
Don't: A manual of mistakes and improprieties more or less prevalent in conduct and speech - Oliver Bell Bunce, 1884.
Leia online na íntegra ou compre o seu!
The Gentleman's Book of Etiquette - Cecil Hartley, 1873.
Leia online na íntegra ou compre o seu!
The Ladies' Book of Etiquette - Florence Hartley, 1860.
Leia online na íntegra ou compre o seu!
Martine's Handbook of Etiquette and Guide to True Politeness - Arthur Martine, 1866.
Leia online na íntegra ou compre o seu!
Etiquette for Ladies - Lea and Blanchard 1840
Leia online na íntegra!
Etiquette: An answer to the riddle when? where? how? - Agnes H. Morton, 1899.
Leia online na íntegra ou compre o seu!
Peço perdão se alguma tradução ficou sem sentido ou se há erros. Por favor me comunique os erros para que eu possa corrigi-los. Peguei as regras de vários livros, a maioria está supracitada.
0 Comentários