Sabe, quando Marvels saiu eu era uma coisinha desse tamanhinho. Fazia bem pouco tempo que eu tinha mergulhado nessa de HQ. Bom, minto vai, as histórias em quadrinhos reluziam feito ouro 18 aos meus olhinhos pequenos desde que me lembro de ter desenvolvido uma consciência pensante. Sou do tipo que lia desde antes de saber ler. Aos cinco anos estava lendo Cascão, Chico Bento e Magali, aos dez estava lendo X-Men, aos quinze estava lendo William Shakespeare e aos dezoito estava lendo A Interpretação dos Sonhos de Sigmund Freud. Então, eu lia desde antes dessa época, mas antes dessa época não lia o mainstrean da Marvel ou da DC, eu tinha minha pilha de gibis do Mauricio de Souza que davam plena conta de saciar meu apetite até ali. Um dia uma vizinha, amiga da minha mãe, me deu um presente, "Você gosta de ler, né? Vai adorar essa". E eu adorei MESMO aquela. Era uma revista do Capitão América da Editora Abril. Tinha 3 histórias. Na primeira o Capitão América voltava à mansão do Caveira Vermelha onde ele e os Vingadores haviam tido uma batalha final e decisiva na edição anterior, a qual culminou na morte do vilão. O Capitão volta em busca de pistas, mas um fantasma do Caveira o surpreende com uma armadilha mortal, 4 falecidos inimigos atacando ao mesmo tempo, os mais interessantes eram Modok e o Porco Espinho, os outros dois só completavam o quadro. O Capitão lutava, vencia e descobria que os "fantasmas" eram na verdade androides controlados de longe pelo Doutor Fausto, nenhum morto de verdade clamava por vingança ali. Mas ao final o Capitão partia levando Fausto preso e na mansão vazia reaparecia a forma fantasmagórica do Caveira Vermelha, nos deixando com a pulga atrás da orelha. A segunda história era Os Novos Defensores, Valquíria, Homem de Gelo, Fera, Gárgula e Nuvem se aliavam a uma heroína independente chamada Andrômeda para enfrentarem um inimigo comum, um vilãozinho chamado Sporra que visualmente não parecia mais do que um homem comum, mas tinha um belo exército de capetinhas para sujar as mãos por ele, tinha o dom de regenerar ferimentos, tinha algum recurso misterioso que lhe permitiu anular os poderes dos heróis e o mais importante, tinha cérebro suficiente para manter os Defensores ocupados enquanto seus outros capangas destruíam a cidade. O Doutor Estranho aparecia de forma breve e misteriosa, mas ele estava ocupado com seus problemas e não ajudou na luta, tanto não ajudou que a cidade foi toda destruída. No final os Defensores venceram, mas o preço foi alto. A terceira e última história era também a melhor de todas, o título era O Que Aconteceria se Thor Estivesse lutando com Odin por Jane Foster. Odin estava no título, mas quem ficou puxando as cordinhas escondido nas sombras e deu o empurrão pra tudo acontecer foi o Loki, e a coisa explodiu de um jeito que Thor levou os Vingadores com ele até Asgard para lutar contra os deuses. Na mansão dos heróis o sempre simpático Mercúrio afirma que sua preocupação é apenas com a Terra, e se o Thor arranjou encrenca não espere qualquer ajuda, ele que se vire pra resolver sozinho, enfim, Pietro sendo o Pietro. Assim Mercúrio fica e os outros vão, Capitão América, Homem de Ferro, Feiticeira Escarlate, Gavião Arqueiro, Vespa e Golias são fortalecidos com magia divina primeiro, e depois o pau come. O Capitão pegou o nobre Balder. Loki rouba o poder de Odin e enfrenta Thor no final, acabando morto, não pelo deus do trovão, mas sim pela Vespa que tenta ajudar e ataca com toda a sua força, esquecendo-se que havia sido magicamente elevada ao mesmo nível de poder dos deuses de Asgard e acidentalmente colocando um final definitivo nas tramoias do deus da trapaça. A batalha é vencida mas fica um clima triste, ninguém desejava que Loki morresse. Eu devia ter uns seis anos de idade e as 3 histórias fizeram os meus neurônios entrarem em combustão, fui contaminado pelo vírus do vício. Mas em algum nível eu sabia que aquelas histórias não eram destinadas a meninos de seis anos de idade, então fiz uma nota mental para mim mesmo, de voltar a procurar por aqueles super heróis quando fosse mais velho, e voltei ao Chico Bento, Magali e Cascão. Quatro ou cinco anos se passaram, um sábado perto da hora do almoço eu paro numa banca na cidade de São Paulo e retiro de uma prateleira um gibi que ostentava uma bela capa desenhada pelo senhor Jim Lee mostrando uma seminua Vampira abraçada a um Magneto de Capa esvoaçante ladeados pelo senhor Nick Fury de rifle de plasma em punho e por Kazar, o senhor da Terra Selvagem, de braços cruzados. Era o início da Saga do rei das Sombras/Saga Ilha Muir que trazia a volta do Professor Xavier, a volta de Colossus à equipe, a reintegração dos X-Men e do X-Factor como uma equipe só e início de todos os eventos que culminaram na criação das equipes Azul e Dourada e no lançamento de X-Men N°01 que até hoje figura no Guiness Book como o gibi mais vendido da história, com seus absurdos oito milhões de exemplares vendidos, tudo pelas lendárias mãos da dupla Chris Claremont e Jim Lee. E assim começou minha peregrinação.
Grant Morrison certa vez destacou com muita propriedade que em 90% do tempo a cronologia é dura feito adamantium. Mas se você não é desse meio, eu estou falando grego aqui. Cronologia? É o seguinte, uma coisa que todo jovem nerd tem que aprender é que essas histórias se passam num amplo universo compartilhado e que tudo está constantemente em mudança e em evolução. Se você começar a ler hoje e decidir ler absolutamente todos os títulos da Marvel ou da DC (humanamente impossível, e ainda que fosse você nem iria conseguir se divertir, existem dezenas de gibis que você iria ler e odiar, é pra isso mesmo que existe um cardápio, pra todo mundo não precisar comer a mesma coisa) ainda sim isso não seria o bastante, existe uma sequência nas histórias e muita coisa importante aconteceu meses antes de você começar a ler, e para ser inteiramente honesto, muita coisa importante aconteceu anos antes de você nascer, você nunca vai conseguir ter lido tudo o que precisa, viva com isso. Então se de repente na série de TV Arrow aparece o Conde Vertigo e você nunca ouviu falar dele, ou se a Marvel está lançando o filme novo dos Inumanos e por uma década você leu dez gibis da Marvel por mês e nunca viu esses sujeitos darem as caras, relaxe, faz parte, todos passamos por isso, um dos motivos das mega sagas é te mostrar que existem outros heróis além daqueles cuja série mensal você acompanha religiosamente sem perder um único número.
Então eu era uma coisinha desse tamanho quando lançaram Marvels. Ainda me lembro daquele anúncio "como seria a sua vida se os super heróis realmente existissem", e junto aquelas imagens, o rosto das pessoas comuns olhando assustadas, o rosto humano feito de carne por baixo da máscara do Capitão América, aquele Anjo levantando voo com a criança mutante no colo em meio à multidão enfurecida, aquele Tocha Humana. Aquele Tocha Humana... Era o bastante para fazer seus neurônios explodirem. Ninguém nunca tinha visto algo assim antes. Ninguém nunca tinha feito algo assim antes. Até então ninguém sabia quem era Alex Ross. Hoje, uma vida depois, a editora Salvat nos devolve essas histórias num encadernado em capa dura com excepcional acabamento gráfico e um precinho que você não vai achar igual em nenhum outro lugar. Fiquem de olho nessa coleção da Salvat, só tem coisa boa e nesse meio muita coisa que é difícil de achar ou quando você acha custa os olhos da cara. Eu sei que estou pegando muita coisa legal a um precinho inacreditável. Tipo Marvels. Kurt Busiek acerta no tom de um roteiro que todavia nunca funcionaria dessa forma nas mãos de qualquer outro artista. Sim, sim, essa rasgação de seda é o elogio mais, batido, gasto e repetido na história dos prefácios. Aqui, entretanto, é nada além da verdade. A história talvez nem precisasse de um texto, fossem só os painéis do Ross e teria vendido a mesma coisa e arrancado os mesmos elogios da crítica especializada. Mas existe um texto, e quão interessante ele é. "Como seria a sua vida se os super heróis realmente existissem?". Tantos anos depois todos os elementos e qualidades de Marvels foram copiados um sem número de vezes e explorados até a exaustão. Mas, sabe, eu nunca os vi funcionarem como aqui. Então eu era uma coisinha desse tamanhinho que mensalmente lia a X-force de Rob Liefeld, a primeiríssima passagem de Peter David no X-Factor e a Liga da Justiça da América de Dan Jurgens quando me deparei pela primeira vez com as páginas de Marvels, e dava para ver que elas não eram feitas do mesmo material. Aquela história era diferente. Imaginada para ser maior. Planejada para atingir outro nível. Feita para ser levada a sério. Em seu prefácio o sempre empolgado tio Stan destaca a qualidade do livro de competir favoravelmente com a literatura convencional. Aí está. Foi feito para ser artístico. Se for para falar de arte você quer falar da trinca de ouro, Frank Miller, Neil Gaiman, Alan Moore. Todos trabalharam e brilharam antes de Marvels, é verdade. Mas Marvels tinha uma coisa diferente. Diferentes dos outros, não precisava gritar para ser ouvida, era ouvida e ponto. Não precisava ser defendida nem explicada, sua mensagem era transparente e inequívoca. Visto hoje chega a ser ligeiramente estranho ver Alex Ross fazendo algo tão grande para a Marvel, ele que nos acostumou ao longo dos anos a vê-lo fazer tantas coisas para a DC. E fez muitas coisas boas, mas algo daquela magia do início nunca mais se replicou. Veja, não critico o que ele fez depois, longe disso, se Marvels foi ótimo, O Reino do Amanhã foi mais do que ótimo e aqueles álbuns em formato gigante foram um banquete. Mas aquele tom realista que era o grande trunfo em Marvels foi jogado pra escanteio. Aquele Namor de carne e osso lutando nos céus com um Tocha Humana cem por cento real, isso foi o que eu não vi mais. Quando Alex pinta o rosto do Superman ou da Mulher Maravilha é perfeito, mas a gente têm que fechar os olhos e fingir que aquele sujeito de carne e osso vestido num traje de Hal Jordan não parece absolutamente ridículo, quando parece. Desculpe Alex, mas aquele seu modelo vestido numa fantasia alugada de Flash não parecia a magia transformada em carne e osso, é apenas um cosplay ruim do tipo que nós nerds já vimos às dezenas. Em Marvels não tinha isso, a parte em que você tem que ter boa vontade de fingir que não deu errado. Você pode dizer que os uniformes dos mutantes ou do Quarteto nos anos 1960 eram igualmente carnavalescos, mas aí é que entra o foco da coisa, em Marvels o foco não era no herói, era um sujeito comum observando-os de longe, por isso funciona.
Quanto à história propriamente dita não sei se colocaria entre as minhas favoritas, se fosse só para o meu gosto eu teria que dizer que faltou um ápice explosivo estilo Guerra Civil. Mas essa não é uma história qualquer, é? Foi um marco histórico com repercussões e deve ser analisada dentro do seu contexto. Se você visse como foi quando saiu... Era como se alguém transformasse os quadrinhos num filme, numa época em que esse conceito era uma fantasia irrealizável. Então, quando foi feito, era algo onírico. Puramente mágico. Eis a razão pela qual não faria nenhum sentido o Ozymandias Realista ar qualquer outra nota que não seja dez.
Quanto à história propriamente dita não sei se colocaria entre as minhas favoritas, se fosse só para o meu gosto eu teria que dizer que faltou um ápice explosivo estilo Guerra Civil. Mas essa não é uma história qualquer, é? Foi um marco histórico com repercussões e deve ser analisada dentro do seu contexto. Se você visse como foi quando saiu... Era como se alguém transformasse os quadrinhos num filme, numa época em que esse conceito era uma fantasia irrealizável. Então, quando foi feito, era algo onírico. Puramente mágico. Eis a razão pela qual não faria nenhum sentido o Ozymandias Realista ar qualquer outra nota que não seja dez.
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