Leia antes que sumam de novo: 5 HQs que merecem ser redescobertas

 


Nos anos 90, os quadrinhos adultos viveram um tipo de explosão que hoje parece improvável. Depois de Watchmen, Cavaleiro das Trevas e Maus, o mercado percebeu que “gibi não era só coisa de criança”. Foi aberto um espaço pra uma enxurrada de títulos que tentavam entender o mundo a partir do caos. A Vertigo virou símbolo desse período, com nomes como Sandman, Hellblazer, Monstro do Pântano e Preacher se tornando quase sinônimo de quadrinho “inteligente”. Só que, ao redor desses gigantes, existia uma leva de obras que ficaram à margem — às vezes por serem experimentais demais, outras por virem de editoras pequenas, com pouca distribuição ou pouca paciência do público.

Eu só fui conhecer boa parte dessas HQs muito tempo depois, já no fim dos anos 2000, garimpando fóruns, blogs e scans que pareciam perdidos em hard drives de gente que lia com devoção e compartilhava por pura teimosia. Às vezes eu me pego invejando quem encontrou essas revistas nas bancas, ainda com cheiro de tinta fresca, sem saber que estava levando pra casa algo que quase ninguém mais lembraria depois. Era outro tipo de relação com o quadrinho — uma leitura feita sem hype, sem expectativa, movida só pela curiosidade e pela sorte. Quando eu leio essas histórias hoje, sinto que tô abrindo uma garrafa lançada ao mar há trinta anos, e cada uma delas ainda tem alguma mensagem flutuando intacta ali dentro. São essas mensagens que eu quero resgatar agora.

 


1. The Nazz (Tom Veitch e Bryan Talbot, 1990)

The Nazz nasceu da mesma febre filosófica que tomou os quadrinhos adultos do final dos anos 80, mas foi esquecida no meio do caminho. A história é sobre Michael Nazareth, um homem comum que atinge um estado de iluminação espiritual e descobre que o mundo não está preparado para um novo messias. Li essa HQ pela primeira vez quando ainda achava que todo personagem precisava ter uma mensagem, e o que encontrei foi uma perturbação. Bryan Talbot desenha a loucura da transformação com um senso de desconforto que poucos artistas conseguem. O corpo do protagonista vai se distorcendo até ficar irreconhecível, e a linha entre milagre e delírio se apaga.

Quando reli anos depois, The Nazz me pareceu mais atual do que nunca. A busca obsessiva por significado, o culto à autoajuda, o narcisismo espiritual — tudo está ali, antecipando a era dos “gurus” digitais.



2. Marshal Law (Pat Mills e Kevin O’Neill, 1987–1993)

Enquanto Alan Moore e Frank Miller estavam desconstruindo o herói com seriedade quase acadêmica, Pat Mills e Kevin O’Neill resolveram arrancar o verniz e mostrar a podridão por baixo. Marshal Law é o oposto da reverência: um caçador de super-heróis que odeia tudo o que o gênero se tornou. Conheci essa HQ tarde, em uma pilha empoeirada de revistas de sebo, e lembro da sensação exata ao folhear as páginas — era como encontrar um panfleto proibido no meio da missa. A arte de O’Neill vibra com raiva; cada traço parece feito por alguém que não apenas quer criticar, mas demolir o mito do heroísmo.

A história se passa em uma realidade decadente, onde os “heróis” são veteranos de guerra com poderes genéticos, psicologicamente destruídos. Mills não tenta esconder o nojo que sente dessa cultura de idolatria. Ele escreve como quem grita contra uma parede coberta de pôsteres de Capitão América. E é justamente por isso que Marshal Law funciona tão bem — porque entende que a violência do gênero não é um desvio, é o centro. É uma HQ sobre poder, fetiche e mentira, e talvez por isso ainda soe tão atual.

Quando li pela primeira vez, o choque foi estético. Depois, veio o incômodo moral. A figura de Law, com seu uniforme sádico e suas tiradas de justiceiro, não tem nada de nobre. Ele caça super-heróis porque se vê como o único que pode julgá-los, mas o que ele realmente faz é projetar o próprio ódio no mundo. Ler Marshal Law é perceber o quanto o discurso de “coragem e justiça” pode ser só uma desculpa para a barbárie. E o pior é que, mesmo sabendo disso, a HQ continua divertida, ácida, irresistível.



3. Skreemer (Peter Milligan e Brett Ewins, 1989)

Pouca gente leu Skreemer, e é uma pena.

Peter Milligan criou uma ficção científica que parece ter sido escrita durante um sonho ruim. É um futuro distópico, mas não no estilo de Blade Runner — aqui o mundo já acabou, só ninguém contou pras pessoas. A história mistura crime, política e existencialismo, e tudo gira em torno de um homem tentando entender por que ainda vale a pena lutar quando o poder já corrompeu até a lembrança de quem você foi.

Lembro de ter lido numa fase em que eu mesmo andava obcecado por finais de ciclo. Skreemer me marcou por ser uma HQ sobre envelhecer num mundo que já passou do ponto. Brett Ewins enche as páginas de sombras que parecem engolir os personagens. Há uma cena em que o protagonista observa um pôr do sol num cenário devastado, e o silêncio daquela página diz mais do que qualquer diálogo. É o tipo de história que te faz fechar o gibi e ficar quieto por um tempo.



4. Saint Sinner (Clive Barker e Ed Scliar, 1990)

Muita gente nem lembra que Saint Sinner foi publicada pela Marvel. É uma das tentativas mais curiosas da editora de fazer quadrinhos adultos antes da linha MAX, e acabou esquecida justamente por não se encaixar em nada. O roteiro é de Clive Barker, que na época ainda surfava a fama dos filmes de horror, mas aqui escreveu algo bem diferente: uma história sobre um homem dividido entre o instinto e a fé, o corpo e a alma. Philip Fetter não é herói, nem anti-herói. É um sujeito comum, atormentado por forças que ele mesmo não entende, tentando manter algum tipo de sanidade enquanto o bem e o mal brigam dentro dele.

Quando li pela primeira vez, o que me chamou atenção foi o clima — pesado, quase sufocante. Barker escreve como quem está mais interessado na dúvida do que na salvação. Lembro de uma cena em que Philip tenta ajudar uma mulher possuída, e quanto mais ele se envolve, mais percebe que o problema não é o demônio dela, é o dele. Essa inversão é o que me pegou: a história não fala de monstros lá fora, fala daquilo que a gente carrega e tenta negar.

O desenho de Ed Scliar reforça isso. Ele enche as páginas de rostos deformados e cenários que parecem em decomposição. A arte é crua, às vezes até feia — mas é o tipo de feiura que combina com o que a HQ quer dizer. Tudo parece sujo, doente, humano demais. Você sente que o personagem está preso num pesadelo sem glamour, e que a salvação, se existir, não vai vir de nenhuma luz, mas de encarar a própria podridão.

Talvez Saint Sinner tenha sumido porque nunca foi feita pra agradar o leitor comum da Marvel. É uma HQ que incomoda, que não dá alívio. E justamente por isso deveria ser lembrada. Ela tentou abrir uma porta que o mercado ainda não estava pronto pra atravessar — a de um horror mais íntimo, mais espiritual. Se tivesse sido lançada anos depois, talvez ao lado de Hellblazer ou no selo Vertigo, teria virado um clássico cult. Hoje, vale a pena redescobrir porque mostra o Clive Barker escritor puro, sem filtro de estúdio nem preocupação em vender boneco. É uma HQ que parece feita pra poucos, mas fala de algo que todo mundo sente: a dificuldade de conviver com o que existe de pior e de melhor dentro da gente.



5. Wasteland (John Ostrander, Del Close e William Messner-Loebs, 1987–1989)

Wasteland é o tipo de HQ que só poderia ter existido naquela época específica — entre o fim dos anos 80 e o início dos 90, quando a DC ainda estava disposta a arriscar coisas estranhas. Criada por John Ostrander, Del Close e William Messner-Loebs, era uma antologia de histórias curtas que misturavam horror psicológico, drama existencial e humor desconfortável. Não havia heróis, nem cronologia, nem a sensação de que algo “importava” para um universo maior. Cada edição era uma experiência isolada, quase teatral. É curioso como a DC, que vinha de sucessos estruturados como Batman: Ano Um e Crise nas Infinitas Terras, tenha bancado algo tão caótico e autoral assim.

Descobri Wasteland enquanto procurava material de Hellblazer, e acabei presa por uma história chamada “Delirium”, sobre um homem que tem certeza de que o inferno é reviver o mesmo dia indefinidamente. É curta, mas ficou comigo por semanas. O clima era claustrofóbico, e o horror vinha de ideias, não de monstros. Ostrander (que muita gente só conhece como o roteirista de Esquadrão Suicida) mostra aqui um lado muito mais literário, quase filosófico. Ele escreve como quem está mais interessado no desconforto do que na catarse. Del Close, que vinha do teatro de improviso e era um nome importante na comédia americana, trazia um senso de imprevisibilidade para cada edição.

Talvez o motivo de Wasteland não ter dado certo comercialmente seja o mesmo que a torna tão interessante. Os quadrinhos, ao contrário da TV, nunca se deram tão bem com o formato de antologia. Séries como Além da Imaginação ou Contos da Cripta conseguiram transformar o imprevisto em identidade, mas o público dos gibis parecia precisar de continuidade, de personagens fixos, de uma linha que unisse tudo. Wasteland não oferecia isso. Era o tipo de revista que você comprava sem saber o que ia encontrar — e o mercado acabou punindo essa liberdade.

Mas artisticamente, ela é fascinante. As capas soam quase artesanais, com tipografia e ilustrações que pareciam pertencer a livros antigos de terror, não a revistas de banca. Algumas histórias são apenas diálogos longos, outras experimentam com formato, alternando quadros e colagens. Em uma das minhas preferidas, “A Moral do Espelho”, um professor começa a ver sua imagem refletida distorcida, como se outra versão dele tentasse tomar o lugar. É simples, mas o roteiro é tão bem amarrado que a história termina sem precisar explicar nada.

Revisitar Wasteland hoje é redescobrir um momento em que a DC ainda deixava autores trabalharem com temas como loucura, culpa e fé sem precisar vestir isso de superpoder. Foi uma tentativa rara de transformar o gibi em laboratório — e talvez por isso tenha sumido rápido. Ostrander mostrou que podia ser mais do que o cara do Esquadrão Suicida. Del Close, que nunca mais trabalhou em algo parecido, trouxe um experimentalismo que dificilmente veríamos numa grande editora depois.



O que fica depois do esquecimento

Eu quis escrever esse texto porque sempre gostei de encontrar coisas que pareciam esquecidas. Quadrinhos que ninguém mais cita, mas que em algum momento deixaram uma marca em mim. Seria muito fácil montar um texto com os mesmos pesos pesados de sempre... Mas as que eu trouxe aqui nasceram no mesmo terreno fértil e caótico, entre o fim dos anos 80 e o início dos 90, e acabaram soterradas. São quadrinhos que talvez tenham falhado em vender bem, mas nunca falharam em tentar algo diferente. E é isso que eu mais gosto nelas: a tentativa.

Eu sempre tive essa sensação de dívida com os textos que um dia me apresentaram a algo novo. Lembro de descobrir Skreemer num blog de aparência velha, com um texto enorme e nada convidativo. O autor falava sobre a melancolia de viver depois do fim, e foi o suficiente pra eu sair procurando a HQ como se fosse um tesouro. Foi um dos primeiros momentos em que percebi que o que me atraía nos quadrinhos não era só o traço ou o gênero, mas o olhar de quem escrevia sobre eles. Talvez esse texto seja minha forma de devolver o favor.

Essas HQs me lembram de quando ler era também garimpar.

Quando achar algo num sebo, ou numa pasta zipada perdida num fórum que já nem existe mais, dava uma sensação de descoberta que hoje a gente quase não sente. Eu queria trazer um pouco disso de volta. Se uma única pessoa ler esse texto, procurar uma dessas HQs e se surpreender, já valeu o esforço.

É curioso notar como todas essas histórias vieram de editoras grandes — Marvel, DC — mas respiravam o ar de outra época. Elas estavam nos cantos menos vistosos dos catálogos, nos selos experimentais, nos espaços onde ainda se podia errar. Algumas tentaram misturar públicos, como o caso de Saint Sinner, escrito por Clive Barker, ou o que o Scott Snyder fez anos depois com Vampiro Americano ao lado do Stephen King. Essas parcerias sempre prometem mundos, mas raramente conquistam leitores fora de seus nichos. Parece que quem lê romance continua com romances, e quem lê quadrinhos continua com quadrinhos.

Eu acredito que existam muitas outras obras assim, perdidas entre o prestígio e o anonimato. E é por isso que quero abrir espaço pra vocês que chegaram até aqui. Quais dessas vocês já conheciam? Quais outras vocês acham que mereciam ser lembradas numa parte dois? Que quadrinhos pouco falados vocês recomendariam pra mim?

Pode ser qualquer coisa: uma edição avulsa, um gibi de sebo, algo que vocês leram e nunca mais esqueceram. Porque talvez seja assim que a gente mantém essas histórias vivas: redescobrindo, um leitor por vez.