Nadar contra a nostalgia?

 


Tem coisas que eu simplesmente não revisito. Não é medo bobo, é autopreservação. Revisitar é sempre um risco: você pode redescobrir camadas ou pode só despedaçar a aura que guardava. Eu aprendi isso na marra. Na pandemia, por exemplo, resolvi rever Smallville. Lembrava das tardes no SBT, da fase em que Clark ainda era só um adolescente descobrindo poderes, embalado por uma trilha emo que parecia traduzir a vida inteira. Quando pus de novo, só conseguia pensar: “como eu aguentava esses diálogos?”. O aconchego virou constrangimento.

Com Sandman foi parecido. Aos 20 anos parecia uma epifania, como se cada página me desse um código secreto pra vida. Quando reli, anos depois, percebi que não era tão impecável: tinha arcos inchados, ideias recicladas, falhas que antes eu ignorava. Continuava bom, claro, mas sem aquela força de revelação. E aí ficou a pergunta: o que eu tinha perdido — ou o que eu tinha ganhado de visão pra que aquilo já não me derrubasse?

É por isso que fujo de revisitar algumas coisas. Cavaleiro das Trevas Ressurge, por exemplo, nunca mais vi desde 2012. Não porque ache perfeito, mas porque quero guardar intacta a sensação de sair do cinema achando que tinha visto um fechamento definitivo do Batman. Sei que se eu assistir hoje, talvez só enxergue as falhas já dissecadas em mil vídeos de YouTube. E prefiro não corroer a lembrança que me ajudou a entrar nos quadrinhos.

Talvez seja isso: escolher quais memórias ainda podem ser mexidas e quais precisam ficar guardadas. Porque revisitar pode ser descobrir um novo sentido… ou destruir de vez o mito que nos formou.

Muita coisa ainda é melhor do que eu lembrava


Nem tudo é decepção, e esse é o lado bom da memória nos pregar peças. Quando reli O Longo Dia das Bruxas depois de mais de dez anos, achei que a arte do Tim Sale ia soar datada — e foi o contrário. O traço, que antes me parecia até meio esquisito, meio “distorcido demais”, hoje tem uma força absurda, quase cinematográfica. Eu já tinha visto animações e filmes tentarem adaptar essa história, mas nenhuma me entregou aquele peso visual que só a HQ dá. O mesmo aconteceu quando revi Cidade de Deus: eu já sabia as falas de cor, mas cada corte e cada escolha de câmera ainda me prendiam como se fosse a primeira vez. Foi até engraçado, porque percebi que na época eu só tinha olhado pro “choque” da violência, e hoje eu reparo mais no ritmo narrativo, no jeito como os personagens crescem dentro daquele caos. Outro caso foi Neon Genesis Evangelion: achei que seria impossível revisitar sem parecer um dramalhão adolescente, mas, revendo, eu entendi camadas que tinham passado batido. Algumas obras envelhecem melhor que a gente, e às vezes parecem até mais inteligentes do que lembrávamos.

“Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio”



Heráclito já dizia isso, e eu entendo cada vez mais. Eu não sou a mesma pessoa de quando li Watchmen pela primeira vez, adolescente encantada com qualquer desconstrução de heróis. Naquela época, parecia que Moore tinha aberto minha cabeça com um estalo: “olha, aqui os seus heróis puros”. Quando reli anos depois, já com outras leituras e cicatrizes, percebi que a obra ainda é grande, mas não tão revolucionária quanto parecia na juventude. Reparei em detalhes de enquadramento, na simetria das páginas, em frases que antes eu tinha ignorado, mas ao mesmo tempo já não tive o mesmo choque. A água mudou, e eu também. O mesmo aconteceu quando voltei a ouvir álbuns que marcaram época, como OK Computer, do Radiohead. Adolescente, aquilo parecia vir de outro planeta; adulta, eu ainda acho brilhante, mas já não me arrebata do mesmo jeito. É como reler Dom Casmurro: a primeira vez, você se perde em Capitu; a segunda, você já enxerga Bentinho como um narrador doente, quase ridículo. O impacto nunca é igual.

O fator do tempo certo


Existem obras que não são feitas para todas as fases da vida, e eu só percebi isso depois de insistir em algumas delas. Taxi Driver foi um desses: vi muito nova, achei “parado demais”, um homem calado rodando por aí, e larguei. Revi adulta, com mais quilometragem, e foi outra coisa, quase um soco no estômago. De repente, o isolamento do Travis não parecia só “chatice”, mas um espelho deformado de coisas que eu mesma já tinha sentido em noites vazias. O mesmo aconteceu com O Apanhador no Campo de Centeio: Holden Caulfield parecia só um chato reclamão; anos depois, entendi o vazio e a raiva contida, e o livro me pegou de jeito. Até jogos entram nisso: Shadow of the Colossus, que um dia eu achei só bonito e melancólico, hoje carrega uma poesia cruel que eu só consigo captar porque já enterrei coisas e pessoas que não voltam. Algumas obras exigem que você viva antes de poder entendê-las.

Quando dói mais rever do que deixar quieto



Tem obras que eu simplesmente não revisito, não porque ficaram ruins, mas porque sei que vão me machucar de novo. A Lista de Schindler é um exemplo: vi uma vez, e foi suficiente. Não preciso revisitar para lembrar da sensação sufocante daquela cena da menina do casaco vermelho, ou do silêncio final com os descendentes colocando pedras sobre o túmulo. Guardar a lembrança já dói o bastante. O mesmo vale pra Réquiem para um Sonho: tecnicamente brilhante, mas a espiral de destruição que ele mostra me deixa mal até hoje. Não quero ver de novo. Alguns discos também entram nessa categoria: The Fragile, do Nine Inch Nails, me acompanhou numa fase de buraco existencial; revisitá-lo inteiro hoje seria como abrir uma ferida. Melhor deixar quieto, guardado como um fósforo queimado: se você riscar de novo, só vai se queimar outra vez.

No fundo, revisitar é sempre um risco — mas é um risco humano pra caralho. A gente sabe que pode perder a aura, que pode descobrir que aquilo que parecia eterno não passa de um retrato mal iluminado de quem a gente já foi. Mas também existe a chance de achar camadas que antes nem percebíamos, porque simplesmente não tínhamos idade, cicatrizes ou maturidade pra enxergar. Então eu pergunto: o que dói mais? Descobrir que sua memória estava idealizada ou aceitar que nunca mais vai sentir o impacto de verdade porque prefere manter tudo congelado? Talvez a coragem esteja justamente em estragar, em revisitar sem garantias. Porque, se for só pra preservar um mito na estante, então a gente não vive — só acumula relíquias que já não dizem nada.