Não acredito em coincidências. Algumas sincronicidades involuntárias que acontecem conosco teimam em se disfarçar e se fazerem passar por tais, mas, de fato, não creio em coincidências.
Há cerca de uns 20 dias, limpando e organizando caixas, pastas, bolsas e gavetas antigas, dei de cara com um brinquedo de quando eu era molecote, dos meus 12, 13 anos de idade : as figuras de ação da Gulliver dos super-heróis Marvel.
Nem sei a empresa Gulliver de brinquedos ainda existe ou subsiste até hoje, mas, então, nas décadas de 1970, 80, 90, ela fabricava os brinquedos mais desejados pelos meninos machos de antigamente. Sua clientela-alvo era mesmo o público masculino. Na Gulliver, não tinha Susie nem Barbie nem boneca Mãezinha ou boneco que fazia xixi na fraldinha.
O brinquedo mais cobiçado de seu catálogo, e o mais caro, também, era o Forte Apache da Gulliver, com figuras dos peles-vermelhas a brandir machadinhas e tacapes e dos soldados ianques da 7ª Cavalaria. Tinha até figuras do cabo Rusty e do Rin-Tin-Tin. Hoje, com certeza, a militância cancelaria tal brinquedo, ele seria rotulado de indiofóbico ou coisa que o valha. Mas, na época, a gente não estava nem ai, saímos dando bordoadas e derrubando os índios do cavalo.
Famosos também eram seus times de futebol de botão e o Xadrez do Mequinho.
No entanto, para os fãs de gibis de super-heróis - o que se chama hoje de HQ, e põem um preço trinta vezes maior -, o Santo Graal a ser alcançado era a coleção completa das 10 figuras de ação dos super-heróis Marvel. Eram eles : Capitão América, Homem de Ferro, Falcão, Homem-Aranha, Thor, Príncipe Namor, Hulk, Visão, Surfista Prateado e Duende Verde (o único vilão entre eles).
Figuras de ação, é claro, era modo de dizer. Mais travados e catatônicos, os bonecos não poderiam ser. Em plástico ou borracha rígidos, sem nenhuma parte articulada e pés colados a uma prancha elíptica, que os mantinham de pé. Eram vendidos em duas versões, uma mais e a outra menos acessível aos bolsos sempre furados de nossas calças Rancheira e US Top.
Na versão mais barata, os dez bonecos eram vendidos num único pacote e confeccionados em plástico duro e monocromático; cada boneco era inteiramente da cor do plástico com que saíra da forja. Você podia ser premiado, a exemplos, com um Capitão América integralmente alaranjado, um Homem Aranha totalmente azul, um Duende Verde, amarelo, e assim por diante. E essas cores variavam de embalagem para embalagem.
Na versão mais "chique, os bonecos eram os mesmos, exatamente nas mesmas poses, porém, confeccionados em borracha maciça e pintados à mão. Eram vendidos em duplas numa cartela plástica. Vinham juntos : Capitão América e Homem de Ferro, Thor e Namor, Homem Aranha e Falcão, Hulk e Visão, Surfista Prateado e Duende Verde. Muito dinheiro de ônibus e de merenda economizado, cheguei a ter todos os coloridos, e também os monocromáticos.
No entanto, o que faltava aos bonecos em mobilidade e tecnologia de produção, sobrava-nos em imaginação. Quantas histórias e sagas eu já não "escrevi" a brincar com eles, sempre trancado em meu quarto para evitar os olhares maternos de reprovação? Sim, era uma época em que as crianças brincavam com seus brinquedos, à exaustão, inclusive, pois eram artigos caros e raros, que, com muita sorte, você só ganhava no aniversário ou no Natal. Não como grande parte das crianças de hoje, que deixam seus brinquedos de enfeite em alguma prateleira ou estante do quarto.
Havia uma brincadeira da qual eu gostava sobremaneira. Organizava uma espécie de luta livre dos bonecos, fazia-os duelar com a ajuda de um antigo gravador de fita cassete que possuía. Explico : para levantar a tampa do compartimento da fita cassete e trocá-la por outra ou, simplesmente, de lado, havia um botão alaranjado lateral à ela. Ao acionar o botão, ele, por meio de uma forte mola, catapultava a tampa para cima. O que eu fazia, então? Colocava um boneco na borda da tampa do gravador e outro na extremidade traseira do gravador, quase na borda do mesmo. Acionava o botão e o boneco na tampa era arremessado pelos ares, de encontro ao outro. A ideia era que um conseguisse jogar o outro para fora do "octógono" do gravador. Cada boneco tinha três chances para isso.
A liderança desse precursor do UFC oscilava entre a forma esguia e longilínea do Capitão e a massa bruta do Hulk. Claro que, por questão de peso, os bonecos de plástico não tinham a menor chance contra os de borracha. Então, aos moldes do que se faz no boxe, eu os separava em duas categorias, os de plástico e os de borracha. Às vezes, eu promovia lutas entre os bonecos de categorias diferentes, mas eram apenas lutas de exibição, não eram pra valer, não contabilizavam para o ranking do campeonato.
Desde que reencontrei os bonecos (apenas oito dos dez originais), fiquei a matutar num texto (que acabou por ser este) para postar aqui, mas a ideia estava empacada e, muito possivelmente, não teria vindo à furo, se não fosse por uma das tais sincronicidades que citei ao início.
Há uma semana, o Roniere, dono do blog U2 e Gibis, especializado em informações sobre o grupo irlandês e, principalmente, sobre gibis e tirinhas antigos, postou lá um texto sobre os bonecos Gulliver dos anos 80, ilustrado com fotos das figuras, porém, todas tiradas da internet, nenhuma do próprio autor. Na mesma hora, senti-me na obrigação de forçar a escrita do texto, até como agradecimento pelo belo material que ele posta regularmente, e mostrar-lhe as minhas figuras da Gulliver, já meio baqueadas e combalidas, mas com a pintura original.
Aliás, para quem gosta do assunto gibis antigos, o blog do Roniere é uma ótima pedida, imperdível, eis o link : U2 e GIBIS.
Abaixo, finalmente, as fotos dos meus bonecos Gulliver pintados à mão. Organizados dois a dois, como vinham nas cartelas. Exceto pela última dupla : na falta do Visão a fazer par com o Hulk e do Surfista Prateado a acompanhar o Duende Verde, uni os dois personagens esmeraldas.
O Visão teve sua estrutura deteriorada e esfarelada pelo tempo e pelo uso, acabou quebrando todo. Não me recordo do paradeiro do Surfista, não me lembro do que aconteceu com ele, simplesmente, ele sumiu, talvez perdido em alguma mudança de uma residência a outra. Ou, talvez, tenha conseguido romper a barreira invisível que o engaiolava à Terra e conseguido retornar a Zenn-La, seu planeta natal, para os braços de sua Shalla-Bal.
Em tempo : quando rascunhei o texto (nunca os faço direto ao computador), eu não sabia se a Gulliver ainda operava no mercado de brinquedos, então, ao ligar o computador para digitá-lo, dei uma pesquisada e vi que cheguei tardiamente ao seu funeral. Em novembro de 2023, a empresa, que estava em recuperação judicial, foi posta a leilão. Antes dela, capitularam também outras empresas de brinquedos nacionais, feito as Atma, Troll, Glasslite e Balila. Vítimas da combinação fatal entre o ofensiva chinesa e a criminosa carga tributária brasileira.
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