Sempre gostei de mexer, de lidar, de manusear bichos. Até os meus 14, 15 anos, tive a sorte de morar em bairros pouco habitados, com poucas casas e muitos terrenos baldios, extensos matagais. Depois da escola e das tarefas discentes cumpridas, eu me dividia entre jogar bola, bets e andar de carrinho de rolemã no asfalto e me aventurar em incursões exploratórias pelas matas adjacentes.
Capturava muitos insetos, sobretudo. Tive coleções - na verdade, muito mais "amontoados", uma vez que não obedeciam a nenhuma norma lineana - de besouros, borboletas, formigas. Capturava, vez ou outra, um ou outro passarinho em alçapões e arapucas. Capturava e soltava em seguida, depois de lhes surrupiar uma pena do rabo - colecionei penas, também.
Em um dos locais em que morei, as escavações para a passagem de uma nova tubulação de água e esgoto atingiu uma nascente d'água, e a vala aberta foi abandonada, criando ali um pequeno regato. Em pouco tempo, havia sapos, rãs e pequenos peixes. Ali, eu conseguia girinos, que deixava em um balde para lhes observar a metamorfose. Também guarus e lambaris garimpados com uma grande peneira. Cheguei a pegar um cágado em uma certa vez. Era inverno, e os répteis, em água fria, ficam em estado de grande prostração, foi fácil capturá-lo. Levei-o para casa, mantive-o uma grande bacia durante um tempo e, ao fim do inverno, libertei-o no riachinho.
Com os insetos, eu era particularmente sádico - acho que toda criança tem um quê de crueldade. Hoje, jamais repetiria os meus "experimentos" entomológicos. A exemplos : amarrar borboletas ou cigarras pelo abdômen com linha de costura e as empinar feito a pipas. Ou amarrar duas borboletas de diferentes espécies, uma em cada ponta da linha, e soltá-las para ver qual seria a espécie vencedora daquele cabo de guerra aéreo. Ou arrancar as patas de uma libélula e ficar vendo ela alucinada a tentar pousar e não conseguir.
Promovia verdadeiros MMAs de formigas. Coletava várias formigas de diferentes espécies - saúva, preta, doceira etc - e as jogava dentro de uma caixa de sapatos. Depois de um tempo, o grupo da espécie mais forte, não sem algumas baixas, dizimava o da espécie mais fraca. As pretas eram imbatíveis.
Pegava grandes besouros-rinoceronte - esses encouraçados potenkins da classe Insecta - e os lançava sobre formigueiros de lava-pés, que, para quem não conhece, são formiguinhas minúsculas, mas com uma poderosa toxina em suas mandíbulas que provoca forte sensação de ardor e queimadura, e que atacam sua presa às centenas. E eu ficava lá, vendo o besouro ser literalmente coberto pelas lava-pés, vendo-o sucumbir ao liliputiano exército. Uma vez dominado, ele era virado de barriga para cima e tragado às entranhas do formigueiro.
Testava também o fôlego dos insetos. Pegava formigas, gafanhotos, besouros etc e os submergia para ver qual aguentava mais tempo sem se afogar. Arremessava pequenos insetos em teias de aranha, e ficava a apreciar o elegante ballet aracnídeo a empacotar a presa em um novelo de seda, para, em seguida, injetar-lhe veneno proteolítico.
Capturava insetos mais perigosos, também. Abelhas, vespas, marimbondos. Eu esperava que eles pousassem e tentava atingi-los com jatos de álcool disparados de seringas descartáveis. Eu tinha uma eficiência de uns 60%, de cada dez, acertava uns seis, e depois os conservava em pequenos vidrinhos com álcool. Na época, era fácil encontrar pequenas embalagens cilíndricas de vidro. Todos os comprimidos vinham acondicionados nelas, com um chumaço de algodão dentro, não havia comprimido em cartela, em blister.
Eu era um verdadeiro Josef Mengele dos insetos.
Não havia bicho que me metesse medo. Ou melhor, quase. Meu calcanhar zoológico de Aquiles sempre foram os lagartos. Aqueles lagartos comuns, verdes, que não causam mal a ninguém. Até hoje não sei explicar o que sentia a me deparar com um. Não era bem medo, era mais uma repulsa, uma aversão. Era uma sensação de desconforto. Mesmo quando um gato macho que tivemos capturava algum lagarto e o deixava à nossa porta já morto, era difícil pra mim pegar uma pazinha de lixo e recolher o cadáver ofertado.
Minha mãe tinha uma explicação para isso. Conta ela que, certo dia, grávida de mim, sentou-se à varanda e lá deu uma cochilada. Quando acordou, havia um lagarto verde a correr pelo piso da varanda e ela levou grande susto. Não acredito em vidas passadas, mas em memória intrauterina, ainda que no nível do subconsciente, sim. Ela conta também que teve muito desejo de goiaba durante minha gravidez, fruta da qual ela nunca gostara antes. Vontade provocada pela propaganda de um doce de goiaba em lata. Na época, a TV era em branco e preto, mas minha mãe jura que ela via a goiaba vermelhíssima na telinha. A goiaba é uma de minhas frutas favoritas. Outro hábito que ela nunca tivera antes da minha gravidez, e perdeu-o após me parir, foi o de tomar vinho. Durante minha gestação, ela tomava um cálice de vinho todo dia. Aí, admito, não era culpa dela. Aí, já era eu a pedir pelo álcool. Puta que pariu, a gente tá lá, todo encolhido dentro do barrigão, nadando no próprio mijo, sem porra nenhuma pra fazer : aguentar aquele tédio todo sem ao menos um goró é castigo que ninguém merece.
Porém, de uns tempos para cá, percebi que esse meu desconforto frente à visão de um lagarto começou a diminuir. Quando via um lagarto a cruzar a calçada, eu estacava, mas acho que muito mais pela lembrança da sensação ruim de antigamente do que pelo sentimento de agora.
Então, hoje, logo pela manhã, a caminho da escola, passei em frente a um terreno abandonado, já tomado pelo mato, e dele saíram dois lagartões verdes. Eles pararam na calçada, à minha passagem, e ficaram a me fitar. Fui me aproximando. Sem aquela repulsa de antes, sem nenhum desconforto. Cheguei a poucos passos dos dois e me agachei para tocá-los. Claro que eles, rapidamente, bateram em retirada. Sou muito mais perigoso a eles que o oposto.
Não senti nenhum desconforto, nenhuma vontade de me afastar.
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