Buraco negro é para onde está indo a língua portuguesa

 




Nas últimas semanas, tivemos outra “não polêmica” envolvendo nossa língua portuguesa, que foi a entrevista da Ministra da Igualdade Racial em que ela criticou algumas palavras pseudorracistas. Já escrevi um post sobre esse tema para este blog antes. Anielle é chapa da Dona Mandala da Escolinha do Professor Raimundo, que via racismo em tudo.

https://ozymandiasrealista.blogspot.com/2023/03/dona-mandala-ficaria-intrigada-sobre-as.html#google_vignette


A ministra disse que era necessário haver um “letramento racial” e que certas palavras deveriam ser proibidas. A primeira a que ela se referiu foi o velho verbo de guerra “denegrir”. Esse verbo que provém do latim denigare tem sido um dos mais criticados pelo movimento negro identitarista. Engraçado que se poderia até acusar “denegrir” de ser um verbo elitista, pois não é de uso muito corrente pelo povão, mas jamais de racista, visto que ele precede o período escravocrata e seu significado literal é “difamar”, “manchar”. Ao contrário do que os progressistas defendem, nem sempre cabe sua substituição. Por exemplo: quando dizemos “o governador denegriu sua imagem com as acusações de corrupção”, se substituirmos “denegrir” por “difamar”, a frase perde o sentido, pois ficaria “o governador difamou sua imagem”, o que é estranho, porque ninguém se autodifama. Além disso, “denegrir” é um verbo que já foi utilizado inclusive por autores negros de nossa literatura. É o caso de Machado de Assis em: “Ah! Meu amigo - dizia ele em caminho -, não imagina quantos invejosos andam a degerir o meu nome”. E também se nota isso no texto de Lima Barreto: Marramaque, poeta raté, tinha uma grande virtude, como tal: não denegrir os companheiros que subitam nem os que ganharam celebridade.”



No entanto, o grande plus da entrevista foi quando a ministra disse que “buraco negro” é uma palavra racista. Ela disse uma grande bobagem, porém entendi que ela não quis se referir ao buraco negro no sentido astronômico, que seria uma região do espaço-tempo em que o campo gravitacional é tão intenso que nada, nenhuma partícula ou radiação eletromagnética, pode escapar. Essa é a definição da astronomia. Porém, a expressão “buraco negro” no sentido figurado, a exemplo de “caímos em um buraco negro”, “o Brasil não consegue sair do buraco negro” etc. E essa expressão no sentido figurado igualmente não tem nada de racista; é apenas uma expressão como “não estou vendo a luz no fim do túnel”.



Entretanto, não quer dizer que essa expressão não seja problematizada, e não é de hoje: no meu ofício de revisor de textos, já conheci revisores que se incomodavam com essa expressão e, por exemplo, suprimiam o adjetivo “negro” de “buraco”, o que praticamente matava a intenção de hipérbole da expressão. Ou substituíam “buraco negro” por “buraco profundo”, o que também tira a força da expressão original.

Essa é uma falácia que os identitários empregam: de que uma palavra supostamente racista pode ser substituída por outra sem prejuízo de significado, o que não é bem assim. Tomemos por exemplo a expressão “mercado negro”. Já a vi sendo substituída por “mercado paralelo”, que na realidade é um eufemismo. Ela poderia talvez ser substituída por “mercado clandestino”, mas também não é o melhor dos sinônimos. Inclusive, apesar de criticarmos os EUA por terem inventado o identitarismo, estamos até piores que eles. Outro dia fui ao cinema, e, no filme, onde no original o personagem falava “black market”, na tradução ficava como “mercado paralelo”. Ou seja, até eles não estão nem aí para uma suposta conotação racista de “mercado negro”. Eles também não se importam com o uso de “buraco negro”, como o título da crítica do filme lixo de As Marvels mostra.

https://www.irishtimes.com/culture/film/review/2023/11/08/the-marvels-review-the-marvel-cinematic-universe-disappears-up-its-own-black-hole/


A ministra também falou outra sandice na entrevista que foi o uso de “escurecer” em contraponto a “esclarecer”. Quer dizer que “esclarecer” é um verbo supostamente racista? Sim, pior que para os identitários sim. Tanto que ele está na cartilha que o TSE publicou com palavras racistas que devem ser evitadas. Não apenas o TSE, mas também o Ministério Público do DF e de vários estados também tem sua lista de palavras racistas a serem evitadas. Isso a meu ver é muito sério, porque essas são instituições de Estado, e não de governo. E o governo é algo menor que o Estado, ou deveria ser, idealmente.

https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Novembro/em-encontro-tse-lanca-cartilha-expressoes-racistas-por-que-evita-las

https://www.mpdft.mp.br/portal/index.php/comunicacao-menu/campanhas-e-publicacoes/campanhas-menu/12074-campanha-elimine-o-racismo-do-seu-vocabulario


Na realidade, o próprio argumento de que determinadas palavras, ainda que não tenham origem racista, podem ajudar a perpetuar o racismo é falacioso, uma vez que é algo impossível de ser comprovado. É uma tese, e uma tese não pode ser comprovada. Pode ser considerada se tiver plausibilidade. Por exemplo, a teoria do Big Bang, de que o universo surgiu em uma explosão e está em constante expansão, não foi comprovada, porém muitos acreditam que ela pode ser plausível. No entanto, se eu defender a tese de que a humanidade surgiu do leite da vaca sagrada Bova, da mitologia nórdica, isso também não pode ser comprovado, mas também não pode ser negado, uma vez que é uma tese.

Outro argumento é que “se as pessoas se ofendem é melhor não usar essas palavras, pois mal não faz”, o que é outra falácia. Há um efeito negativo que é o empobrecimento do léxico e, consequentemente, da própria língua portuguesa. Muitas pessoas deixam de usar algumas dessas palavras não porque concordem que são racistas, mas para evitarem constrangimento ou para preservarem seus empregos, porque, como dizem, “quem tem cu tem medo”. Eu mesmo não considero essas palavras racistas, mas se no meu trabalho minha chefe disser que vou ter de alterá-las nos textos, vou obedecer porque trabalho é trabalho e manda quem pode, obedece quem tem juízo.



https://www.em.com.br/app/noticia/educacao/2020/08/06/internas_educacao,1173597/dicionario-muda-definicao-da-palavra-racismo-apos-estudante-reivindi.shtml#google_vignette


E, realmente, a tendência é de que essas palavras sejam eventualmente criminalizadas até no dicionário. Sei de casos de traduções de livros clássicos que sofreram processo de entidades e movimentos dos negros porque havia muitas palavras com “negro” e “escuro” com sentido negativo. Nos EUA, uma estudante questionou o significado do verbete “racismo” no dicionário, e este alterou o verbete. Agora racismo é apenas de brancos contra negros e outras minorias, e o contrário não existe, porque racismo só provém de quem está nas estruturas de poder.




Enfim, não pretendia voltar a escrever sobre esse tema, apesar de achá-lo um tema sério e interessante, mas ele sempre vai vir à tona. É uma característica de nossos tempos. Certamente, haverá mais alguém, seja do governo ou não, falando algo sobre palavras pseudorracistas ou de linguagem neutra, uma vez que esta é a era do terraplanismo linguístico. Em contrapartida, o Pânico ou o Brasil Paralelo provavelmente irão chamar a Cíntia Chagas para refutar. Entre parêntesis, Cíntia Chagas que é uma tremenda gata. Como conclusão, só noto que o que está indo para o buraco negro é apenas a língua portuguesa.

 

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