Texto da tag “Escritor
Convidado”, escrito por Neófito,
publicado originalmente em: AQUI. https://www.blogdoneofito.com/2019/09/onde-os-velhos-nao-tem-vez-romance-de.html
No meio do deserto texano uma negociação milionária de heroína marrom dá errado. Todos morrem. Um veterano do Vietnã - Llewelyn Moss - está caçando na região, depara-se com a cena e leva para casa mais de dois milhões de dólares. Em seu encalço, é enviado Anton Chigurh. Sua função é recuperar a grana. O cartel, com medo da atuação solitária e talvez inconsequente de Chigurh (Sugar?) contrata Carson Wells para entrar na busca. E, seguindo os rastros de todos, está o Xerife Bell (Ed Tom para os íntimos), homem deslocado de seu tempo e assustado com a natureza dos crimes que vêm despontando à sua volta e até mesmo no aparentemente pacato condado onde reside com a esposa Loretta. E esse "deslocamento" tem a ver com título original da obra (No Country for Old Men), obviamente. Mesmo assim, gostei da tradução brasileira para a adaptação cinematográfica: Onde Os Fracos Não Têm Vez. Achei mais abrangente para a história de uma sociedade acuada e bestificada, cada vez mais consumida pela violência gratuita ou por motivos torpes. Quando o livro saiu pelo selo Alfaguara, o filme dos irmãos Coen ainda estava em produção. Acredito que, se já estivesse ao menos em fase de exibição, a editora Objetiva teria optado pelo título cinematográfico brasileiro.
O que mais
chama nossa atenção ao primeiro contato com o livro é sua estrutura formal
confusa. Parece roteiro mal escrito de cinema. Dentro de um parágrafo
narrativo, falas surgem abruptamente sem travessão ou aspas. Numa sequência de
diálogos, citações são organizadas sem auxílio de pontuação regular. Se o
leitor não ficar atento, acaba se perdendo em meio à bagunça. Contudo, não
chega a ser uma dificuldade hercúlea como já falaram por aí. Basta, somente,
compenetração com a leitura, nada mais. Acredito que deve ter dado trabalho à
escritora Adriana Lisboa na tradução. A prosa é curta (em torno de 250 páginas,
com fonte e espaçamento generosos) e dá para ler tranquilamente em duas noites.
O papel amarelado similar ao pólen também auxilia bastante a ler tudo
rapidamente sem cansar a visão.
Acho que um
grande mérito (são tantos) do romance é a "construção vazia" do
pistoleiro Anton Chigurh, muito bem interpretado na película por Javier Bardem
(Friendo?). Levando consigo um tanque de pistola pneumática para matar gado e
uma carabina de alto calibre com silenciador, deixa rastros de sangue sem dó
por onde passa. E, quando não tem arma à mão, vai com essas limpas mesmo, como
na primeira execução da trama: algemado, por estrangulamento. Ele não age por
grana. Seu interesse é meramente profissional. Sua profissão é sua filosofia de
vida. Isso fica mais evidente no romance, onde conhecemos até mesmo o destino
dado ao dinheiro recuperado e à outra passagem também suprimida no filme: como
ele foi preso inicialmente, o que o levou a ser detido por uma simples patrulha
local para fugir logo em seguida. O personagem contraponto é o Xerife Bell.
Assim como Chigurh, ele também é exímio profissional, e tenta ser o melhor no
que faz: aplicar a lei, atuando de forma ética em respeito a cada centavo pago
pelo contribuinte de seu condado. Seu código moral é rígido: honrar a memória
de seu falecido pai, fazer sempre o correto, manter elevados valores
conservadores atualmente tão em baixa (adiante falarei melhor disso). Não foi
mostrado no cinema, mas o personagem possui um fantasma do passado o sufocando
desde que retornou da Segunda Grande Guerra. E esse detalhe só engrandece ainda
mais o personagem.
Tanto no
livro quanto na adaptação, vemos o Texas como o principal personagem de toda a
trama. Isso me lembra um pouco o nordeste brasileiro. Num determinado momento,
o tio Ellis comenta como aquela terra é cruel e, mesmo assim, todos a amam.
Quanta ingratidão! A religiosidade texana está presente no xerife Bell, em seu
temor divino como fundamento de disciplina, na crença de que toda a violência
crescente possui contornos apocalípticos.
Sem dúvidas, é uma grande obra. Vale a pena tê-la na estante para reler. Até
onde sei, não teve reimpressão desde 2006. Vi que em várias livrarias já está
rareando. Então, se você pensar em comprá-lo, o faço logo. A não ser, claro,
que possa ler a versão original em inglês ou goste da plataforma
eletrônica. Meridiano de Sangue (romance considerado por
muitos sua opus magnum) esgotou. Entretanto, informaram que teria
reedição para logo. Talvez façam o mesmo com Onde os velhos não têm vez.
Mas... uma curiosidade: de McCarthy possuo apenas este livro na
estante. Li A Estrada (adaptado para o cinema com Viggo
Mortensen no papel principal) e Meridiano de Sangue no formato
eletrônico. Esta postagem é republicação de alguns anos e, até hoje, não vi
tais relançamentos. Então já sabem, né? Alguns livreiros estão pondo a brochura
de Meridiano de Sangue à venda por até trezentos reais! Depois
ficam com a edição encalhada e se queixam da queda de vendas nos sebos.
Como falei
acima, Ed Tom possui valores ético rígidos. Isso fica evidente a cada linha.
Ele não é um fanfarrão. É honesto mesmo. Algumas pessoas acreditam que Cormarc
McCarthy denuncia o genocídio indígena do oeste americano em Meridiano
de Sangue. Ele não denuncia nada. Ele apenas narra fatos e tem conhecimento
de que não haveria expansão ao pacífico mediante diálogo com nativos. Estes,
aliás, tão sanguinários quanto seus opositores. A América pertencia às nações
indígenas assim como pertencia aos filhos e netos americanos do que chegaram
ali para colonizar. É só História de um tempo de expansão e mudanças. Não há
marco sem sangue. E, no princípio, Caim matou Abel - a um custo alto. Para quem
acredita que o maior escritor vivo americano quer "denunciar",
"problematizar" ou, pior, mudar o mundo a todo custo (ao invés de
compreendê-lo e fazer sua parte), transcrevo o trecho abaixo, onde o Xerife
Bell responde a uma progressista o que o futuro lhe reserva. Cormarc McCarthy
é, essencialmente, um conservador descrente no porvir.
Há um ano ou dois eu e Loretta fomos a uma conferência em Corpus Christi
e eu me sentei ao lado dessa mulher que era esposa de alguém mais ou menos
importante. E ela ficou falando que a ala da direita isso e a ala da direita
aquilo. Não tenho nem mesmo certeza sobre o que ela queria dizer. As pessoas
que conheço são na maioria gente comum. Gente simples. Eu disse isso a ela e
ela me olhou de um jeito estranho. Achou que eu estava dizendo uma coisa ruim
sobre as pessoas, mas é claro que isso é um grande elogio na minha parte do
mundo. Ela continuou e continuou. Por fim ela me disse o seguinte: não gosto do
rumo que este país está tomando. Quero que a minha neta possa fazer um aborto.
E eu disse bem minha senhora não acho que precise se preocupar com o rumo deste
país. Pelo que eu vejo não tenho muitas dúvidas de que ela não só vai poder
fazer um aborto como vai poder fazer com que sacrifiquem a senhora. O que mais
ou menos encerrou a conversa.
Os monólogos
a seguir também são interessantes.
Loretta me disse que escutou no rádio sobre o percentual de crianças
neste país sendo criadas pelos avós. Esqueci qual era. Bastante alto, achei. Os
pais não queriam criar. Conversamos sobre isso. O que nós pensamos foi que
quando a próxima geração vier e eles também não quiserem criar seus filhos quem
vai criar? Seus próprios pais vão ser os únicos avós disponíveis e esses pais
não quiseram criar nem os próprios filhos.
(...)
Tinha um questionário perguntando quais eram os problemas em dar aulas
nas escolas. (...) Os maiores problemas eram coisas como conversar em sala de
aula e correr nos corredores. Mascar chicletes. (...) Quarenta anos depois.
Bem, eis que chegam as respostas. Estupro, incêndio criminoso, assassinato.
Drogas. Suicídio. Então eu penso sobre isso. Porque boa parte das vezes em que
eu digo qualquer coisa sobre como o mundo está indo para o inferno as pessoas
meio que sorriem e dizem que estou ficando velho. Que esse é um dos sintomas.
Mas meus sentimentos a esse respeito são que alguém que não saiba a diferença
entre estuprar e assassinar pessoas e mascar chicletes tem um problema maior
que o meu.
Bem...
pessoas de movimentos sociais psicopáticos não gostam muito quando encontram
trechos como os acima na obra de um grande autor contemporâneo, ainda vivo.
Incomoda saber o óbvio, para onde toda a atuação de grupos cada vez maiores de
pessoas sem o menor resquício de espiritualidade (logo, de humanidade) está nos
levando. E, vejamos: a trama se passa no início da década de '80, com primeira
publicação em 2005. Diferentemente do escritor, não me considero um completo
conservador em amplo aspecto (social, político etc.). Mas, como ele, sou
descrente na maioria das vezes. Acho que, por mero medo e preguiça, não podemos
mais recuperar o que perdemos. Acabou.
Em todo o volume, encontrei apenas um erro. Não de tradução (até porque nem
tenho parâmetros para isso), mas de digitação e, logo, revisão. Está no
primeiro parágrafo da página n.º 233, onde se repete a passagem "Xerife Bell, ele disse" uma vez.
No cinema, chama atenção como a beleza árida presente nos romances
de Cormarc McCarthy foi transportada, o que nos surpreende logo na cena
inicial (vídeo abaixo), em brilhante trabalho do diretor de fotografia Roger
Deakins, vencedor do Oscar por Blade Runner 2049.
Basicamente,
é isso.
Abraços e
até a próxima, friendos.
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