Primeira aula do dia. Aula dupla. Noventa minutos de duração. O mesmo tempo de uma partida de futebol.
Pior : sem um intervalo de vinte minutos entre os dois tempos.
Pior : no futebol, nenhum jogador corre o tempo todo, ou tem que jogar em todas as posições. Tem sempre alguém parado, descansando. O goleiro só se mexe no caso de uma ofensiva mais contundente do adversário; idem para os zagueiros. O meio de campo, como o nome diz, só faz o meio de campo, só pega a bola e a repassa adiante. O ataque, parece-me, talvez seja a posição que denota uma maior atividade e correria; mesmo assim, os dois ataques não funcionam simultaneamente, ora um se mexe, ora outro. Não é o caso do professor. O professor tem que correr os noventa minutos. E jogar, como ficou instituído de uns tempos para cá, em todas as posições : professor, educador, conselheiro, mediador de conflitos e até carcereiro - sim, muitas escolas recebem "vítimas" recém-egressas dos sistemas "correcionais" juvenis, Febem, Fundação Casa etc, haja vista que nenhum juiz ou promotor da Infância e Juventude que ordenam as matrículas dos anjinhos possuem filhos, netos ou quaisquer entes queridos nos bancos das escolas públicas.
Óbvio que eu não concordo, que eu repudio toda essa pluralidade de funções do professor, toda essa polivalência que foi sendo sutilmente imputada ao professor de umas duas décadas para cá, polivalência para a qual, claramente, ele não está preparado e, mais claramente ainda, pela qual ele não recebe paga, tudo um presente e obra da peidagogia moderna. Pior : e tem muito professor que abraça a bronca, que enche a boca pra dizer que é um "educador". Sim, professor é burro, em sua grande maioria.
Sete da manhã. Soa o sinal. A sirene. Muitos dizem que as sirenes das escolas são parecidas com as de prisões e penitenciárias. Antes fossem. Prisões e penitenciárias operam com muito mais disciplina que uma escola. E seus agentes tem ainda alguma autoridade.
Sete da manhã. Soa o sinal. Na sala, nem metade dos alunos; a maioria ainda a conversar e a circular em algazarra pelo pátio, a esperar que o inspetor os ponha para dentro, feito bois a aguardar pelo vaqueiro que os tanja para o curral.
Antigamente, eu dava uma tolerância de cinco minutos, ao fim dos quais, fechava a porta e fim de papo. Os retardatários que entrassem na segunda aula. Hoje, não. Espero cinco, dez, quinze minutos. Procrastino em cima da procrastinação alheia. Se isso não é se aliar ao inimigo, eu não sei mais o que possa ser. Se isso não é me tornar o meu próprio inimigo, não sei mais o que possa ser.
Turma nova. Primeira aula com ela.
Começo a minha fala, inútil; ninguém quer saber dela; apresento-me e à minha disciplina, idem. Coloco no quadro, e peço que copiem, o conteúdo programático do primeiro bimestre. Colocar o conteúdo programático no quadro, ao invés de, simplesmente, começar a trabalhá-lo de pronto, é uma das estratégias clássicas para enrolar uma aula. De fazer cera, como se diz no futebol. Assim como o que vem na sequência, o chamado Contrato Pedagógico, no qual estabeleço a que tipos de avaliação o aluno será submetido (ele não estudará para nenhuma delas) bem como as regras mínimas de conduta para a convivência em sala de aula, regras que eles teimarão em não seguir e que eu não terei forças para manter por mais que duas, três semanas, um mês.
A essa altura, mal se passaram trinta ou quarenta minutos. Valho-me, então, de uma outra tática de enrolação, mais nova e recente que a transcrição conteúdo programático, mas já tão clássica e eficiente quanto ele : a avaliação diagnóstica. Cujo "objetivo" é fazer uma sondagem do que o aluno se lembra da série anterior através de um questionário, mapear os seus pontos fracos a serem revisados e reforçados.
Ora, porra! O aluno não se lembra nem do que comeu no café da manhã, entretido e bestificado que estava pela tela de seu telefone celular enquanto engolia seu café com pão com margarina. Vai lembrar da matéria da série anterior? Só outra sugestão da peidagogia para matar o tempo de aula, para ir empurrando com a barriga, a tal avaliação diagnóstica.
Passo as questões e os deixo à vontade para respondê-las.
Alguns poucos, uns quatro ou cinco, de espíritos mais indômitos, até tentam iniciar a atividade, mas logo desistem frente ao barulho e ao bate-boca da maioria e logo se juntam a ela. Sacam de seus celulares e vão compartilhar memes, vídeos engraçados, tirar fotos fazendo boquinhas de cu e poses de manos, enviar mensagens com palavras truncadas e carinhas idiotas.
Olho para eles. Eles nem sabem mais que eu estou ali. Olho para eles. E estão todos satisfeitos. Na maior alegria. Felizes da vida. Como eu jamais me lembro de ter estado um dia.
Pior : diferente do futebol, não há vencedores, muito menos campeões.
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