A Língua Portuguesa foi a mais preciosa herança nos legada por nossos "descobridores". Aliás, foi, não : é. É a maior herança nos legada por eles.
A Língua Portuguesa valeu cada tora de pau-brasil decepada e transformada em vestes vermelhas para os nobres e para os reis. Valeu cada grama de ouro e cada gema de esmeralda subtraídos do território de Pindorama.
Frente a ela, a Língua Portuguesa, qualquer ouro é pirita, o ouro dos tolos; qualquer esmeralda é turmalina, a esmeralda dos tolos. Ouro e esmeraldas para quê? Só valem o que valem porque algum louco instituiu que assim fosse. Per si, são minerais inertes; não se prestam nem a antepasto. Fora os valores atribuídos arbitrariamente a elas, não são de nenhuma valia. Ah, o arbitrário... o supremo árbitro das ações humanas.
O índio tinha o som associado aos objetos e aos seres vivos, mas não tinha a palavra, a necessária interface entre eles. A palavra é a materialização da ideia, o seu arcabouço físico, necessário para que a ideia se mova pelo nosso mundo, físico. A palavra é o obstetra que dá à luz a ideia, o pensamento.
Não somos identificados e reconhecidos por uma palavra? Não nos identificamos e nos reconhecemos através de uma palavra, o nosso nome?
A palavra (que o português nos trouxe), em relação ao som (que o índio tinha), foi como se, de repente, a gostosa que você imagina ao tocar uma punheta, como que por mágica, se materializasse no seu banheiro, à sua disposição.
A herança portuguesa nos é uma herança tão valiosa que chega mesmo a compensar, a sobrepujar, a mais malditas das heranças lusitanas, a outra palavra, a Palavra do Senhor, o Cristianismo.
Mais ouro, madeira e pedras preciosas nos tivessem sido furtados, mais ela valeria. Pois ela vale o quanto é bela. E a Língua Portuguesa é a mais bela das Línguas. José Saramago disse isso. Ariano Suassuna disse isso. Miguel de Cervantes, que falava espanhol, e por isso insuspeito, disse isso.
A Língua Portuguesa é a Angelina Jolie das línguas-mães; é a Scarlett Johansson dos idiomas pátrios.
No
entanto, de uns tempos para cá - de umas décadas para cá, inclusive e
desgraçadamente - foram postos em prática e estão em franco andamento o
desmonte e o sucateamento da sociedade de uma forma geral, seus costumes
e valores morais básicos. E que maneira mais eficiente de demolir uma
nação que demolindo a sua língua materna, o idioma através do qual ela
se expressa, se comunica e entende o mundo?
Há décadas que, nas escolas de ensino fundamental e médio, está a ocorrer um verdadeiro estupro da Língua Portuguesa, a bela (e hoje inculta) última flor do Lácio.
Há décadas, os cânones da sintaxe, da regência, da ortografia, enfim, da alma da Língua Portuguesa vem sendo minados e solapados.
Há décadas, gerações de apedeutas vêm sendo “ensinadas” que não conhecer nem fazer uso das boas normas do idioma, que falar e escrever errado não só é aceitável como também tem de ser, obrigatoriamente, considerado como correto.
Não importa a forma culta e correta, garantem os linguistas. O que importa é se houve a transmissão e a compreensão da mensagem entre o emissor e o receptor. Para os tais linguistas, se o sujeito pedir dois "pão" e o que balconista lhe entregar coincidir com o que ele queria, está tudo certo, os dois "pão" estão valendo. Para o linguista, o "dois pão" vale nota 10 na prova bimestral. Supondo, é claro, que o analfa de pai e mãe peça os dois "pão" numa padaria, porque do jeito que as coisas vão, não seria difícil ele fazer o pedido numa farmácia. Ai é que eu queria ver a mensagem ser "entendida".
E
entendida, a mensagem, de uma forma ou de outra, sempre foi. Desde os
tempos da pintura rupestre, desde os tempos do gutural, do AA UU. O fato
de que as pessoas entendam uma linguagem truncada e mutilada só
confirma o desprezo com que o idioma vem sendo tratado. Uma ignorância
reconhece, abraça e acolhe a outra. Não significa - não pode significar -
que ela seja correta.
O linguista é o fariseu da Língua Portuguesa, o cara que morde e cospe na língua que o nutre. O linguista está para a Língua Portuguesa assim como o pedagogo está para a educação. Um diz que qualquer forma de escrever é correta; o outro, que qualquer merda que o aluno apresentar tem que ser considerada. E, assim, os dois, linguistas e pedagogos, cada um na sua senda, vão trabalhando em sinergia para a dinamitação da Língua Portuguesa.
Hoje, se um professor corrigir a fala de um aluno, ele está sujeito a ser acusado e quiçá processado por constrangimento e "preconceito linguístico". Sim, essa expressão, "preconceito linguístico", existe. A maioria dos advogados, é bem verdade, a escreve com "s", preconseito, mas que ela existe, existe.
E o motivo desse desmanche da Língua Portuguesa, não obstante canalha, não tem nada de misterioso, de sub-reptício; antes pelo contrário, é dos mais evidentes : acabando-se com as palavras, extingue-se também com a estrutura do pensamento, com as mínimas organização e hierarquia das ideias. É puro George Orwell! Mais 1984, impossível.
Quando é que um povo com um vocabulário de música sertanejo universitário poderá, um dia, se organizar como nação? Nunca. Jamais. Em tempo algum. Como lutar por suas necessidades, prioridades e urgências se não consegue bem verbalizá-las, botá-las no papel? Como reivindicar seus reais direitos e não ser enganado pelas migalhas que lhe são jogadas para lhe apaziguar os ânimos, as eternas esmolas?
Sem a palavra, só sobra o som, desordenado e caótico, só resta o barulho; à manada, só resta seguir em anuência o portador do berrante. Sem a palavra, à manada, só resta o mugido. E como gosta de mugir, a manada. Como fica feliz com isso.
O motivo de todo esse meu falatório é que, dia desses, eu, na sala dos professores, a cumprir uma "janela" entre a quarta e a quinta aula, peguei um livro que estava em cima da mesa, de Português, e passei a folheá-lo. Gosto de folhear livros de Português.
Ao abri-lo aleatoriamente, caí em capítulo que abordava justamente essa questão, a linguagem formal e culta versus a linguagem coloquial, que, desgraçadamente, nos últimos tempos, vem sendo consagrada pelo uso como correta.
Do meu "lado", também execrando essa avacalhação toda, estão ninguém mais ninguém menos que Ferreira Gullar, um dos maiores poetas, escritores e ensaístas brasileiros (falecido em 2016) e o filólogo, gramático e professor de português e latim Napoleão Mendes de Almeida, falecido em 1998, de quem recomendo demais, aos que gostam de bem falar e escrever, o Dicionário de Questões Vernáculas.
Ouçamos, primeiro, Ferreira Gullar, em um artigo escrito para o jornal Folha de São Paulo, em março de 2012:
Agora, mais mordaz e visceral, Napoleão Mendes de Almeida :
Pra finalizar, um verso da canção Língua, do Caetano Veloso : "gosto de sentir a minha língua roçar a Língua de Luís de Camões".
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