“Somos
ensinados [...] a olhar com horror para aqueles filhos de seus países que estão
prontos, irrefletidamente, para retalhar seus maiores em pedaços e metê-los no
caldeirão dos mágicos, na esperança de que, por suas decantações venenosas e
encantações selváticas, consigam regenerar a constituição paternal e renovar a
vida de seu país”.
Edmund Burke, Reflexões sobre a revolução na França
A MÍDIA é um grande
exemplo de instituição democrática, desde as proféticas afirmações de Marshall
McLuhan às de outros infalíveis mestres da comunicação. Uma de suas afirmações
é de que o meio é a mensagem. Outra, a de que a mensagem para atingir seus
objetivos deve ser contestada em suas metas. Isso é muito complicado. Porque
hoje tudo é informado, com o devido e
orgulhoso esforço dos âncoras, dos jornalistas investigativos e até dos
acidentais amadores com suas câmeras em celulares, gravadores e filmadoras
escondidos. Gatos e lebres são permanentemente confundidos como os urubus e os
louros também são. Os efeitos são apenas um pequeno detalhe. O princípio da
liberdade de expressão é levado a cabo ad
nauseam pela imprensa, em especial a televisionada – e vale essa
terminologia conservadora –, aquela que passa pelo viés fortemente anti-intelectual,
porque pretensamente mostra o que para ser descrito com palavras deixaria a
desejar ou levaria mais tempo e seria menos impactante. As informações que deveriam ser exclusivas dos órgãos de segurança,
das agências de controle de endemias, e outros departamentos oficiais, são
divulgadas como cães sem dono e, muitas vezes, provocando pânico pela forma
como são veiculadas e enfiadas goela abaixo do ouvinte e do espectador como se
fosse a sofisticada missão dos mentores da utilidade pública. O requisito de
clareza, a pretensão e a arrogância de quem transmite a notícia ou apresenta as
reportagens faz pensar no grande bem que se concentra na profissão e na prática
do jornalista, cujo dever é veicular à população tudo aquilo que se traduz por informação e deve ser acessado e
conhecido. Isso vem dar a entender que não há nada que não possa ser dito,
escrito ou mostrado, mesmo que venha causar um prejuízo exorbitantes. Além
disso, escutamos os apresentadores dos telejornais exercitando uma novilíngua
em que a gramática do português assume a simplificação da gramática inglesa,
suprimindo-se regras de regência, de concordância e as incursões na pronúncia
das palavras que se igualam à fala dos disléxicos. E esse enquadre de linguagem
é cuspida no espectador como uma língua nativa dirigida a receptores
analfabetos ou semianalfabetos ou cuja condição cultural é semelhante a do rato
de laboratório, sujeito a uma experiência de condicionamento operante.
Muitas
vezes, ligo a televisão e vejo um noticiário divulgando um novo dispositivo
para impedir que cartões bancários de débito e crédito sejam clonados, dando
aos bandidos interessados todas as pistas possíveis para que o dispositivo seja
burlado. O noticiário fornece todas as informações
necessárias acerca do dispositivo, seu funcionamento, constituição e aplicação.
Os bandidos agradecem, porque vão poder trabalhar seguros no planejamento de
novos golpes, têm chance de aprender mais e de pôr em prática suas habilidades.
Além disso, a mídia é a maior porta-voz da igualdade de oportunidades, da
igualdade de direitos para todos: brancos, pretos, índios, pardos, mulheres,
homens, gays e lésbicas. Mas, em sua urgência de equiparação, acrescenta a essa
lista os bandidos em suas mais variadas especialidades. Bandidos também podem
ser fortemente vocacionados para o que fazem, não somente os profissionais da
medicina, engenharia, pedagogia, psicologia e outras áreas de trabalho. E
também cometem erros como todos esses outros, que podem levar à morte, e aos
mais variados transtornos. Alguns ladrões demonstram tanta habilidade e talento
para arrombar cofres, de maneira tão especializada, que a polícia tem
excepcionalmente justificada sua própria existência e causam inveja aos mais
engenhosos cirurgiões.
A
liberdade de expressão se tornou irmã
do arbítrio, a utilidade pública já não qualifica mais as informações que correm nos jornais e telejornais, com o acréscimo
do potencial da internet que se tornou veículo de perpetuação de crimes
hediondos, da consagração de nulidades. Por essa via grandes idiotas passaram a
ocupar a categoria de mentores intelectuais. A mostra de dever cumprido se
estampa nos rostos dos repórteres sempre que uma denúncia é feita e confirmada
por alguma contribuição de um cineasta amador, de uma declaração de testemunha
ocular, de um passante na rua, de um informante que não tem sua identidade
revelada, protegido pelas distorções vocais e pelo encobrimento do rosto, o
que, muitas vezes, assegura a morbidez do que é dito e apresentado, derivando
uma incontável quantidade de opiniões.
A
mídia, entretanto, nada mais faz que copiar o modelo do Poder Público que
constrange os contribuintes em suas projeções para manter os vínculos de
domínio do governo ou do Estado e garantir o stablishment. A perversão domina uma estratégia de montagem em que
a recusa norteia toda a ação para
alienar a consciência e a percepção das pessoas vivas, embora se veja também o
intento de atingir as mortas. A realidade vem, assim, a ser paralela a outra
que se impõe como verdadeira, mas manipulável, impositiva. A recusa implica
essa distorção: trata-se de um paralelismo a toda prova que confunde e
desnorteia, mas que termina por privilegiar uma versão dos acontecimentos alvo
do mesmo processamento da mentira repetida que se torna verdade. Ou seja,
mente-se quando se diz a verdade e se diz a verdade quando se mente. Isso é
enlouquecedor.
A
mentira afronta a inteligência, o discernimento, mas há sempre, em grande
maioria, aqueles que se sentem confortáveis ao ouvir o que querem. Deve ser
cômodo partilhar opiniões e visões de mundo, ajustar o pensamento à completa
falta de justificativa ou demonstração comprovada. Até mesmo os fatos,
dependendo de quem os narra, enquadra uma percepção que pode estar aquém da
realidade presenciada. É o correlato
da suposta afirmação brechtiana de que se os fatos não se adequam ao modo como
os narro, pior para eles. Isso é uma paráfrase. Todavia, é preciso assinalar
que as opiniões só servem para quem as emite, só tem fundo de verdade para
aqueles que as têm, vigoram apenas na cabeça de quem as coleciona. Sua relação
com a realidade falha todas as vezes que se tenta um encaixe ou uma adequação
de fato. Não há nada que as sustente. Trata-se da conhecida falsa consciência
que engendra as pseudoteorias de tudo, embora projetem a acepção ordinária de
que as teorias precisam ser provadas. Considera-se, nesse caso, o que se
chamaria de proposições condicionais, mais ordinariamente conhecidas como hipóteses Porque, de fato, as teorias
são assim chamadas por serem já o resultado de comprovação.
Proliferam,
na televisão, os programas de entrevistas, ou aqueles que reúnem pessoas para
que opinem ou digam o que pensam e cujo teor explora a liberdade de expressão.
Supostamente, todos se sustentam numa pretensa experimentação e vivência
particular do mundo que têm vontade de partilhar. É como se fossem grupos de
aloajuda – oposto de autoajuda – reunidos para praticar a troca de opiniões ou
experiências que podem beneficiar o outro em suas dificuldades as mais
diversas. Discute-se tudo: da intimidade à política, do governo às
instituições, de como fazer o melhor café à qual pastilha sanitária deixa seu
banheiro mais perfumado. Ressalta-se, aí, a informalidade: as pessoas ficam tão
soltas que expõem, sem
constrangimento, a superficialidade profunda de suas concepções do mundo, de
suas opiniões, de sua expertise,
focadas no que existe de mais moderno e contemporâneo.
Junte-se
a isso as fervilhantes redes virtuais de comunicação – insistentemente chamadas
de sociais – que a internet
proporciona aos idiotas de plantão, fomento de ilusões, dando a pseudocerteza
de que as pessoas estão se relacionando socialmente, quando um programa e um
servomecanismo estão mediando a troca de informações
e opiniões entre elas. Parece que a vida se divide em canais inusitados, a
disponibilidade se multiplica e tudo se partilha: pensamentos, fotografias,
clipes, biografias, músicas, gostos em que se acentuam, principalmente, os
modos de ser mais espontâneos e originais
das pessoas. Supostamente, tudo é superado para a conquista de amigos, a
inclusão, a eliminação de todos os preconceitos. Supostamente. Porque se trata de forma anômala de realizar o
desejo, tendo como barra a distância, o que preserva tanto a defesa como o
ataque. Também não se está dormindo, mas acordado: todos querem se mostrar, se
firmar, se afirmar, opinar com base nas definições ideais, idealizadas,
ideologizantes, de amizade, de acolhimento, tolerância e humor.
Parece
que todo o empreendimento humano tem como base as melhores ou as piores
intenções, considerando quem empreende. Mas uma coisa sempre é certa: sejam
quais forem as intenções, todos os anseios individuais são rechaçados em função
dos pretensamente coletivos. É a alma
coletiva que se afigura como princípio e fim, alicerçada nos fundamentos
mais bizarros de nacionalismo, pureza, raça, cor, essas abstrações em que
baseiam todos os fascismos, totalitarismos et cœtera. Todos, à esquerda, à
direita e ao centro, caem nessas armadilhas que são traduzidas à vontade e
espelham as necessidades de afirmação e de glória, de êxito e lucro. Não é à
toa que as empresas mais estáveis e lucrativas, se muito bem administradas, são
as farmácias, os hospitais e os bares, salvo enganos que se possam apresentar a
partir da ambição desmedida, cobiça, ou seu extremo, o desinteresse. Todavia, as
mais lucrativas e estáveis são os grandes conglomerados da mídia, as que
reforçam os delírios e as aspirações de todos, com as promessas de felicidade
sob todos os pontos de vista em que se pode ir cada vez melhor.
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