1984 ou A Distopia de Orwell
Depois de 1º de janeiro de 2021 a obra de George
Orwell se tornou de domínio público, significando que não será necessário pagar
direitos para publicar seus livros, todos podem editar e lançar com as
melhorias, comentários, materiais adicionais e das formas que quiserem, mas
qual a importância disso? É a de que versões melhores e mais acessíveis dos
trabalhos desse grande escritor falecido em 1950 virão para a luz do dia,
expandindo mais ainda o conhecimento sobre a visão desse homem que pode ter
dimensionado um muito possível futuro da humanidade.
1984
é o seu livro mais conhecido, escrito entre 1947 e 1948 foi seu último romance
sendo publicado em 1949. Nele somos levados ao mundo da Oceânia para
conhecer Winston Smith, um funcionário público ao serviço de um
estado extremamente opressor, vivendo no futuro distópico e sufocante do ano de
1984 onde todos vivem sob a vigília do Grande Irmão, o supremo líder que a tudo
vê e tudo ouve, não existe espaço para liberdade de expressão, as palavras,
músicas, qualquer material exibido para as pessoas ou acessado por elas é para
disciplinar e controlar seus dias, seus movimentos, suas opiniões, suas
existências colocando-os em total submissão às regras do estado.
Para o protagonista o
simples intento de iniciar um diário, colocar seus pensamentos em uma folha de
papel, é um esforço sobre-humano, por causa do medo de ser descoberto, de ser
punido pela vontade de se expressar de forma independente, sabendo que tal
atitude poderia levá-lo para a cadeia ou pior, pois nenhuma forma de
comunicação fora a do Partido era permitida. Mas como expressar uma vida que
nunca conheceu fora a do regime? Constantemente ele e seus companheiros de
trabalho passavam por exibições de programas dedicados ao Grande Irmão e a
incitação ao ódio contra o inimigo do estado, um homem chamado Emmanuel
Goldstein, tido como um perigoso revolucionário e traidor que visava derrubar o
domínio absoluto do regime propondo a união com as nações vizinhas e eternas
inimigas: Eurásia e Lestásia. Como em um processo de lavagem cerebral, as
pessoas eram levadas ao extremo do ódio contra esse inimigo, acreditando que
apenas seu governo sabia o que era bom para elas. Porém no seu interior,
Winston sente que algo não está certo, que sua vida poderia ser diferente se
ousasse pensar de outra maneira, ele tem dentro de si a necessidade de mudar,
de sentir um mundo fora da opressão do Grande Irmão, é quando essa fagulha de
rebelião aumenta e os problemas do nosso pobre herói realmente começam.
Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força
Essas
três frases são o slogan do partido, dando o significado para o regime da
Oceânia: uma cidade imersa em constante estado de guerra, levando seu povo a
crer que seu líder é o grande herói que luta constantemente para manter seu
povo livre das garras dos supostos vilões que simplesmente são aqueles que
pensam e ousam agir contra as regras do regime. Normalmente interpretam a obra
de Orwell como uma crítica ao nazismo, ao Stanilismo e a qualquer forma de
governo totalitária, mas é muito mais abrangente: sua ficção tem um tom de
aviso para qualquer povo que se sujeitar à obediência cega de um líder ou de um
grupo político, a decisão de abrir mão do livre pensamento, do questionamento
ao status quo em troca da falsa segurança proporcionada pela
escravidão disfarçada de controle popular.
O ambiente do
futuro de 1984 é desenhado em cima da premissa de como seria a realidade
dominada por esse sistema. Pessoas divididas em sistema de castas, os mais
simples relegados a funções básicas sobrevivendo de um minguado ganho do
governo, uma classe média mais abastada de funcionários do governo que tem
condições de vida melhores por serem fervorosos aliados do sistema, provando
sua lealdade vigiando e entregando qualquer um que tivesse a ousadia de
expressar seu descontentamento ou intenção de apoiar uma rebelião e os
dominantes membros do partido, praticamente todas as situações de suas
vidas eram controladas e ditadas, casais eram formados de acordo com escolhas
feitas baseadas em suas condições genéticas ou financeiras, tentativas de falar
ou divulgar material contra o governo eram rechaçadas pela Polícia das Ideias,
a gestapo do
Grande Irmão, constantes desfiles e paradas militares aconteciam para mostrar
que o seu poder frente às nações inimigas continuava inabalável graças ao
trabalho contínuo de sua massa proletária. Enquanto as sementes do
descontentamento cresciam em Winston, mais um golpe do destino o leva a
questionar e enfrentar sua realidade: amor, ele se apaixona por uma moça colega
de trabalho, o caso dos dois começa temoroso e tímido, em pouco tempo se torna
paixão, proibida e condenada pelas regras do governo e, deixando sua situação
cada vez mais perigosa, desconfia que outro colega de trabalho é um
revolucionário disfarçado, corajosamente ele busca descobrir se mais pessoas
também querer sentir liberdade longe daquele mundo cinza. Durante a leitura do
livro somos guiados através desse turbilhão de acontecimentos na vida de um
simples homem que ousou olhar para cima e viu que poderia encontrar emoção,
felicidade, pensamentos independentes em meio ao horror da opressão do governo apenas
para descobrir, no seu triste final, que sonho era ilusão e que a realidade
pertencia ao Grande Irmão.
Dois e Dois São Cinco
Nós
temos a liberdade de dizer para qualquer um que a afirmativa acima é errada,
mas no mundo de 1984 essa é a demonstração da força do partido em lhe obrigar a
aceitar que isso é possível pelo simples fato de que ele afirma ser. A citação
não foi criada por Orwell para o livro, ela já existia e foi mencionada por
Dostoyevsky e Vitor Hugo como um meio de dizer que possuímos o livre arbítrio
de julgar a realidade. Quando lemos os trechos finais onde o protagonista é
levado a ser recondicionado para perder qualquer vontade de ter pensamentos
independentes depois de ser descoberto, ficamos com a sensação de que vivemos
em tempos privilegiados por podermos divulgar críticas ao governo, aos artistas
ou a qualquer um que quisermos contanto que limites sejam respeitados, pois até
que se prove o contrário, vivemos em democracia, o Brasil sentiu esse tipo de
repressão durante a Ditadura Militar, época em que quase vivemos nosso próprio
1984, milhares de brasileiros morreram, desapareceram ou tiveram que fugir por
não concordar com os ditames de um governo militar que durou 21 anos.
A Novafala e o Duplipensamento
Além de criar essa realidade opressora, Orwell também inseriu que a forma de pensar pregada pelo partido levaria a criação de uma linguagem nova: Novafala. Em um processo longo e metódico a língua de Oceânia seria totalmente substituída por essa até o ano de 2050, culminando no controle total do Grande Irmão: ele não teria somente a ideologia sobre o seu domínio, a linguagem também seria determinada por ele. Aqui eu percebi outra sacada do autor, as mudanças na forma de pensar levam a adaptações na linguagem, isso não é novidade, nossa língua mudou bastante através do tempo e continua mudando para atender às necessidades mais atuais de comunicação, prova disso é o crescimento do internetês, a linguagem criada para as salas de bate papo da web que passaram a fazer parte do dia a dia, ficou cada vez mais comum vermos as pessoas escrever ‘vc’ abreviando ‘você’, ‘blz’ no lugar de ‘beleza’ e por aí vai, o risco nisso é o de a forma culta e correta de escrita ser cada vez mais colocada de lado em favor dessa mais rápida e prática, sendo usada de forma indevida nos lugares e horas erradas.
Assim somos levados a
outra lógica criada pelo autor: o ato do duplipensamento, quando
somos levados a acreditar que duas coisas contraditórias estão e sempre foram
corretas, algo como aceitar que a cor preta é igual a cor branca e vice-verso
como se isso fosse uma verdade inquestionável desde o princípio, é o modo do
partido realizar seu controle sobre os pensamentos e a realidade, uma das
passagens do livro que mais me impressionou é quando afirma que:
“Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente controla o passado.”
Eis
a verdade assustadora sobre o Grande Irmão e o partido, eles tem a própria
história sobre o seu comando, se eles afirmam que algo aconteceu daquela
maneira, isso se torna verdade inquestionável pois todo o registro de que foi
de forma diferente é apagado e reescrito para afirmar que eles estão certos.
Vivemos em tempos muito parecidos com as fake news na internet, se não tomamos
cuidado em buscar a verdade sobre algo afirmado por qualquer entidade, somos
levados a crer que o dito era real, que o que não existiu sempre existiu sem
que fosse preciso comprovar sua veracidade, pelo simples fato de crermos na
fonte de informação de maneira cega e irresponsável.
George Orwell não
escreveu um simples romance de ficção para criticar os regimes que sempre
desprezou, o texto de 1984 carrega uma poderosa mensagem de que nas mãos
erradas, o poder pode nos tirar toda a liberdade para sempre, pode acontecer em
2022, 2030 ou no fatídico ano de 2050 previsto por ele como sendo o ápice do
domínio do Grande Irmão, não importa se a obra seja lançada em livro, HQ ou
filme (aliás em 1984 o livro parou nas telas do cinema com John Hurt no papel
principal), o importante é que ele não seja adquirido somente para figurar em
uma coleção de obras literárias como artigo cult, é para ser lido com atenção,
pois suas palavras podem estar acontecendo nos nossos dias e só daremos conta
disso tarde demais.
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