Quando eu contava com quinze, dezoito, vinte anos, sei lá, ia a pé para tudo que é lado, andava muito. Nada de carro, motocicleta; tampouco era habilitado a dirigir tais engenhocas.
Também lia muito, muito de lendas, folclores, sobretudo dos grego e nórdico. Livros e adaptações para quadrinhos. Bem mais quadrinhos.
Confissão: não tenho um cisco da cultura da qual me julga contendor a maioria das pessoas. Noventa por cento do meu conhecimento vêm dos quadrinhos. Ah! E das palavras cruzadas, nível difícil. Mas como as pessoas não lêem nada – nem quadrinhos - e quando preenchem palavras cruzadas é na revista Caras do cabelereiro, médico ou dentista, eu engano bem.
Locomovia-me a pé, ficava exposto às adversidades do tempo, aos hormônios e humores do clima. Por vezes, eu a meio do meu caminho, com muito chão ainda pela frente – ou já com um tanto às costas que impossibilitava um retorno às pressas -, o céu se armava, grávido de temporal. Nem sei quando fiz isso pela primeira vez, mas nessas urgências costumava mentalizar um pedido a Thor, o deus nórdico do trovão, para que ele segurasse, contivesse a chuva por mais uns tantos minutos. Eu era sempre específico, pedia quinze, vinte, quarenta minutos, ou tantos quantos meus cálculos apurassem ser o suficiente.
Não era bem eu quem pedia. Quem caminha sabe do que vou dizer. A gente que caminha não tem o que fazer entre o primeiro e o derradeiro passo, a não ser pensar. Apreciar a paisagem urbana? Tá certo! Praças sujas de merda de pombo, um povo que, apesar de não, também parece sujo de merda de pombo, lojas e mais lojas, barracas de ambulantes, todas a vender merda de pombo.
O escape é pensar. Em minhas andanças, já ergui cordilheiras e fiz naufragar continentes, vivi e desvivi romances, esquiei por catástrofes, fui mártir, verdugo, povoei planetas, espalhei jardins de pteridófitas, fiz minar mares de urina radiativa, beijei cada boca peçonhenta do cabelo da Medusa, reescrevi a biblioteca de Alexandria.
Dito isso, era um personagem, um alter ego meu, amigo de Thor, quem pedia. E pedia não porque acreditasse, antes pelo contrário : para desafiar a impossibilidade da existência de qualquer deus; muito menos pedia em tom de oração, sim de quem solicitava mesmo um favor a um amigo, como quem tomava um disco emprestado, um filme pornô, uma resposta esquecida (não estudada, mesmo) de uma prova, a república emprestada no fim de semana para economizar no motel.
Coincidência ou não, costumava funcionar, umas oito em cada dez vezes.
Beiro os cinqüenta anos, hoje. Continuo indo a pé para tudo que é lado. Nada de carro, motocicleta; tampouco sou habilitado a conduzir tais estrovengas.
Leio menos, pouco, quase nada. Hoje, bebo.
O céu já peidava chuva naquele sábado quando pisei o asfalto e a noite me recebeu com seu bafio azedo e sincero, acariciou-me com seu mau-hálito de amante recém-desperta.
Preferia ter ficado em casa – sempre prefiro -, tenho um estoque de bebidas que me permitiria resistir calmamente a um inverno nuclear. No entanto, o bar, volta e meia, é necessário, é salutar. O bar impõe limites, preserva a saúde mental, no que lhe obriga a ouvir outras vozes que não o eco de sua própria a reverberar pela caixa craniana; impõe-lhe a beber todas menos uma, aquela que lhe derrubaria, você sabe que precisará das pernas para tornar à casa. O bar é a ante-sala da demência, a sala de espera da loucura. Beber sozinho em casa, não. É pior. É ter com a loucura sem hora marcada.
As ruas estavam lavadas, mas fediam ainda mais pungentes. Uma tromba d´água vespertina havia engasgado os bueiros e eles regurgitaram toda a sujeira humana empurrada suas goelas abaixo. O cheiro da cidade fica pior quando ela toma banho.
Seis quarteirões descidos retos, quebrei à esquerda e dei com o primeiro monturo de gente a uns trinta metros. Um bar encravado na confluência de cinco esquinas, três das quais entulhadas por suas mesas, cadeiras e vozes a obstruir o passeio público. Se eu fosse prefeito, colocaria, à rua, um esquadrão de fiscais para multar tais ocupações ilegais do espaço público, vetaria o funcionamento de bares em calçadas. Especialmente como é o caso desses bares freqüentados por um razoável poder aquisitivo. Nesses bares todas as mulheres são gostosas ou, no mínimo, bem-tratadas, cheirosas, com os 32 dentes, desejáveis, na pior das hipóteses. A cerveja é sempre gelada e daquela que a atriz famosa faz comercial, as garçonetes freqüentam faculdades, os suores são todos de quem trabalha em escritórios com ar condicionado. São uma afronta, esses bares. Um ultraje aos que passam e não podem por ali ancorar. Seja por falta de dinheiro, beleza ou de suores refrigerados. São vitrines dos prazeres dos bem-sucedidos e bem-nutridos. E toda exibição de prazer é obscena.
Nessas conjeturas e eu já estava uns dois quarteirões além, prestes a transpor uma das pontes do rio que corta a cidade, margeado por uma de suas avenidas mais caudalosas. A cidade inundou o rio. Se é que ainda lhe concerne tal designação. Um leão com as garras arrancadas, dentes limados e posto a saltar por aros de fogo ao estalar do chicote, ainda é um leão? Um pau por onde o sangue não mais dá cabriolas é ainda um pau? É ainda um homem quem o carrega penduricalho? Se afirmativas as três respostas,então, sim, é um rio o choroso fio d´água a manquitolar pelo leito de cimento em que lhe aprisionaram. Têm uns 30 anos que atravesso quase que diariamente o dito rio. No início, mente e corpo quase imberbes, eu me impressionava da tanta vida a insistir por lá. Musgos e algas em seu tapete, samambaias parasitando seus canos de esgoto, tilápias, cascudos, um sem-número de cágados se aquecendo em suas pedras de meio-dia e até eventuais brancuras em forma de garças. Como a vida poderia resistir a tanto lixo? A maioria se impressiona até hoje, eu, não! A natureza gosta da confusão, da sujeira, prima pela desordem, pelo barro, pela imundície. Não surgiu a vida de um lodo primordial? A assepsia e a ordem são conceitos humanos, nada é puro na natureza, os elementos rodopiam em plena promiscuidade pelo planeta. O açúcar refinado é uma aberração humana.
Pensei em dar uma parada na loja de conveniência de um posto de combustíveis à saída da ponte, ficar por lá uns quarenta minutos, tomar umas duas latas. Porém uma caminhonete estacionada às portas da loja me fez desistir. Veículo fálico, com portas escancaradas, que mugiam a plenos pulmões um falso country num volume que devia dar pena capital e quatro imbecis rodopiando à sua volta, executando movimentos (executar é o termo exato) que julgavam ser dançar. Só não digo que são o pior tipo de imbecis que existe – com seus chapéus, botas, fivelas do tamanho de tampas de privada e calças a rachar-lhes o saco – porque imbecis das mais sortidas modalidades são o que não faltam nessa cidade, há imbecis para todos gostos. Contudo, os do tipo cowboy urbano conseguem congregar tudo o que eu desprezo no ser humano, e olha que muitas são as coisas que eu desprezo nos humanos.
(continua...)
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