Enola Holmes, o capítulo juvenil-sufragista da dessacralização de Sherlock Holmes

 




Nos últimos anos, Sherlock Holmes tem sofrido com bastante intensidade uma dessacralização. Não no sentido de ele ser sagrado, mas de uma destruição dos elementos que constituem minimamente sua mitologia. Entendo que isso é feito porque, quando um personagem é adaptado exaustivamente para outra mídia – no caso, o cinema e a TV/streaming –, é necessário inserir uns elementos novos, a fim de haver uma diferenciação.

Foi assim com Sherlock Holmes de Downey Jr., que é bem divisível; com Sherlock da BBC, que a maioria aprova, mas que é livre adaptação; com Elementary, que também é bastante divisível; e agora com Enola Holmes, filme disponível no catálogo da Netflix, ou "Lacraflix", dependendo da interpretação. O problema é justo o sobrenome "Holmes". Se fosse Enola qualquer coisa, estaria todo mundo cagando e andando, mas a intenção foi tirar uma casquinha do maior detetive de todos os tempos.


Também ocorre uma dessacralização ao criarem uma mãe e uma irmã de Holmes que nunca apareceram nos livros canônicos de Arthur Conan Doyle. No enredo, Enola é a irmã caçula de Sherlock, que vive com sua mãe, interpretada por Helena Bonham Carter. A mãe de Enola, Sherlock e Mycroft é excêntrica e criou a filha a seu modo. Ela também é envolvida com o movimento sufragista. Um dia, desaparece e deixa Enola aos cuidados de seus dois irmãos mais velhos, Sherlock e Mycroft. Sherlock, vivido por Henry Cavill, não tem porra nenhuma a ver com o dos livros. Sinceramente, não entendi porque o escalaram para o papel. Na verdade, entendo, sim. Cavill foi escalado para agradar a mulherada, uma vez que o público-alvo desse filme é constituído por meninas adolescentes e jovens adultas.







O Holmes de Cavill é mais galante e emotivo e tenta dar apoio moral a Enola, em contraponto ao Holmes mais frio e analítico dos livros de Conan Doyle. Fora isso, não faz muita coisa. Tanto que é o pior ator a interpretar Holmes que já vi. Até o Ratinho Detetive da Disney é melhor. Mycroft, interpretado por Sam Claflin, está pior ainda no filme. Ele, que é o mais brilhante dos irmãos, mais que Sherlock, ficou o mais burro, apenas se preocupando em mandar Enola para o colégio interno. Mycroft é mostrado como um conservador que quer manter o Reino Unido a salvo de mudanças sociais, contra o progressismo. Isso não tem nada a ver com o Mycroft dos livros, que praticamente governava a Inglaterra no lugar da rainha Vitória e era o cérebro pensante do governo e do Império Britânico, despachando no clube Diogenes.


Enola então foge de casa ao encalço de sua mãe, enquanto Holmes está atrás dela. O roteiro do filme é bem fraco, voltado para adolescentes mesmo. Como adaptação, é uma desgraça, nada tendo a ver com o cânone de Sherlock Holmes. Há pontos positivos? Há, sim. Um deles é a interpretação de Millie Bobby Brown, a Eleven de Strangers Things, que está bem à vontade no papel. Também merecem elogios a cenografia e os figurinos, que reconstituem a Inglaterra vitoriana. Há uns personagens negros no filme, o que causa certa surpresa, pois havia pouquíssimos súditos negros da rainha na época vitoriana na Inglaterra. A maioria estava nas colônias. Também tem uma cena nada a ver, de umas mulheres lutando caratê em Londres, em uma época em que ninguém sabia o que era essa arte marcial no Reino Unido. Maior dissonância temporal. Ocorre também romance implícito de Enola e um jovem marquês fugitivo, coisa bem de filme de adolescente mesmo. Há certo proselitismo feminista, o que acho que é o objetivo da película.


Enfim, não precisavam ter usado o nome de Sherlock Holmes nisso aí, mas a verdade é que Holmes vende. Ele é mais do que um personagem popular da literatura britânica e mundial. Ele é um ícone da cultura pop. Visto que foi criado por Conan Doyle por razões pecuniárias, para fazer dinheiro, talvez seja certa hipocrisia reclamar disso, mas a verdade é que, desde que Holmes caiu no domínio público, fazem o que querem com ele. Nota 3 de 10.


 


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