"(...) — Por que vocês me inventaram?
— Pois bem, não é uma pergunta simples. Vocês tem Cinema, lá de onde você veio? Imagens em movimento? Entenda, hoje mantemos uma relação estranha com nossa Ficção. Às vezes receamos que ela venha nos dominando. Às vezes imploramos que domine… Às vezes queremos ver o que ela tem dentro. (...)"
in: Planetary
Volume 2
Editora Panini
pag. 66
Inomináveis Saudações a todos vós, Realistas Leitores!
O trecho acima pertence à história Planeta Ficção do Capítulo Nove de Planetary, escrita por Warren Ellis e ilustrada por John Cassaday. Nela, uma equipe de cientistas coordenada pelos antagonistas dos Arqueólogos do Impossível, Os Quatro, cria um Mundo Ficcional para explorar todas as possibilidades disponíveis dentro do Universo Imaginativo. Mas, quando eles trazem ao Mundo Real um dos personagens criados pelos Ficcionautas enviados para moldarem os parâmetros daquele Mundo, tudo dá errado. Somente lendo, vocês poderão saber o desenvolvimento anterior e posterior dos acontecimentos dentro da história após a citação no início deste artigo (não entregaria, jamais, spoilers aqui). Tomando como base, então, a citação, tomemos como base para nossa reflexão em conjunto o quanto nossa ligação com obras ficcionais nos influencia e define em nossas individualidades.
Por que escrevi "história" e não "estória" ao falar do Capítulo em especial da série do falecido selo Wildstorm da DC Comics cujo trecho é o ponto inicial da premissa deste artigo? Porque nossas tendências, muitas vezes, são a de tornar aquilo que vemos, lemos e consumimos como estudo ou entretenimento como eventos reais. Nós, homens e mulheres consumidores dos produtos advindos do Mundo Ficcional somos assim, como sonhadores transportados aos mundos de todos aqueles que admiramos dentro de todas as histórias que nos chegam. É imperativo, em demasia, que nos sintamos dentro das histórias, carregando cada uma com as tintas de nossas próprias imaginações, exagerando muitas vezes e encarando a realidade fora delas como medíocre, monótona e vazia. Isto não é esquizofrenia, é Imersão, alcançar todas as profundidades possíveis das mais diversas camadas de um filme, de um livro, de uma revista em quadrinhos, de uma série, de um a peça teatral, seja o que for advindo da Ficção. O encanto se vale da humana capacidade de sonhar e de imaginar. E se paramos de sonhar, se paramos de imaginar, não podemos nem mais nos classificar como verdadeiros entes dotados de sensibilidade, racionalidade e lógica. Sensíveis por sentirmos o que a Ficção nos dá. Racionais por adotarmos uma fuga da diária loucura que não nos enlouqueça dentro das viagens pelas perspectivas dos quadros ficcionais. Lógicos por sabermos traduzir as linguagens interpretativas de tudo que nos toca nos ambientes ficcionais.
Os que acessam este blog são navegantes virtuais de ambos os sexos. Façamos agora um breve exercício de transporte para possibilidades existenciais que todos nós já experimentamos no contato com a Ficção. Quem nunca se sentiu um Superman querendo detonar na porrada Darkseid e casar com uma mulher culta e inteligente como a Lois Lane? Quem nunca quis ser uma Buffy caçando Vampiros e se impondo como uma guerreira ativa contra todas as Forças do Mal à espreita em uma Sunnydale da vida real? Quem nunca quis ser como o Flash, acessar a Força de Aceleração, viajar através de diversas Linhas Temporais e, até mesmo, modificar a própria história existencial? Quem nunca quis ser como a Xena, "Uma Guerreira Forjada No Calor Da Batalha", combatendo com fúria todo tipo de inimigo, de mercenários a imperadores e Deuses, acompanhada em suas viagens por uma gata como a Gabrielle? Quem nunca quis ser Fox Mulder e Dana Scully, descobrindo que A Verdade nem sempre está "lá fora", mas bem perto de nós? Quem nunca quis ser o Batman, envergando aquele icônico uniforme, protegendo uma cidade como Gotham City e enfrentando o Coringa (a cara-metade antagônica) e tendo nos braços a Mulher-Gato (a cara-metade romântica)? Quem nunca quis ser como a Mulher-Maravilha, bela, majestosa e soberana, um símbolo acima da heroína que ela é, a heroína acima do mito que ela é? Quem nunca quis ser como o Thanos e acabar com um estalar de dedos com metade da vida do Universo? Quem nunca quis ser como a Viúva Negra, fatal, sedutora e excelente na porradaria? Quem nunca quis ser Bruce Banner e se transformar no Hulk? Quem nunca quis ser como a Michonne, durona, autoritária e uma espadachim muito foda? Quem nunca quis ser como o Lex Luthor, senhor de uma sublime inteligência e o Ser Humano que mais vezes peitou o que podemos considerar quase um Deus, o Superman? Quem nunca quis ser como Sayaka Nagisa e Sara, heroínas de Changeman e Flashman aliando beleza, personalidade e uma capacidade de luta grandiosa? Quem nunca quis ser como Itto Ogami e Daigoro, vivenciando aventuras sanguinárias no Meifumadou por onde quer que o Caminho Da Espada os guiasse? Quem nunca quis ser como cada personagem cujo valor afetivo e expressividade se incorpora como a heroína, o herói, a vilã ou o vilão com os quais nos identificamos?
Nossas relações com a Ficção são muito mais significativas, profundas e dinâmicas do que nós imaginamos. Consumimos anos após ano o que nos dá cada vez mais o poder de sonhar e imaginar. Consumimos pelo prazer de transitarmos pelos diversos mundos fantásticos que sempre hão de nos seduzir e nos encantar. Consumimos pelo efeito de nos encontrarmos com mundos melhores do que o nosso, onde tudo, muitas vezes, nos é feio, grotesco, imundo, insosso e insano demais. Não importa se somos taxados pelos que não compreendem nossas integrações com a Ficção, seguimos acima das críticas, dos ataques e das zombarias nos impulsionando cada vez mais para as histórias que nos são mais do que válvulas de escape. Olhamos para dentro de cada uma delas e queremos ficar nelas; é muito comum isto, vocês todos conseguem perceber isto? O olhar se torna cada vez maior e mais amplo com o passar dos anos, nos fazendo sentir sempre jovens, sempre nascidos de novo, a tudo que nasce da Ficção nas mãos de autoras e autores ininterruptamente. Dentro de cada história queremos ficar, viver mais do que por um momento aquelas existências ficcionais que nos maravilham, absorvem e começam a conduzir nosso próprio existir aqui neste mundo supostamente real. Como apreciadores de realidades melhores do que a nossa, encontramos motivos para residir nas mesmas mesmo após o fim de uma viagem por dentro delas. Este é o motivo principal, segundo a minha visão, que impulsiona cada um que chega à idade de 60 anos, por exemplo, colecionando Quadrinhos com o mesmo entusiasmo de um adolescente de 16 anos. Aqui quem vos escreve é um cara de 44 anos que aprendeu a ler a partir dos cinco anos com revistas do Hulk no início dos anos 80. E é sempre a sensação de novidade e encantamento totais o meu apreciar de obras dessa Arte em específico, assim como tudo que ficcionalmente nos é dado pelos intérpretes do que está no Mundo Da Imaginação como Conceito, Possibilidade e Realidade. Estes três se materializam em todas as Artes Ficcionais e seus infindáveis conteúdos maravilharão os existires de nossos descendentes.
No Capítulo 27 de Planetary, ao dar uma opinião acerca do destino do Ser Ficcional trazido ao Mundo Real após os eventos acima detalhados brevemente do Capítulo 9, Elijah Snow assim expressou-se:
“(...) Vivemos todos em planos bidimensionais de informação, lembre-se disso. O fato de vivermos e respirarmos em 3D é um efeito colateral do universo. Talvez, hoje ele viva em outras histórias, transitando entre páginas quando são viradas. Surfando por uma estante de livros.(...)"
Separadas as distinções entre O Ficcional e O Real, nós somos como tal Ser. Transitamos entre todas as histórias que chegam até nós das mais diversas formas, das impressas às audiovisuais. Navegamos pelas ondas de todas as marés ficcionais que nos afogam nas profundezas de oceanos dos quais não queremos (e nem tentamos) escapar. Fazemos parte de tudo que se cria, assistindo um filme recentemente lançado, lendo uma revista nova de nossa apreciação ou efetuando qualquer atividade ligada ao Mundo Ficcional. O próprio ato de acessar este blog, ler cada postagem sobre os temas ficcionais (ou os reais, que acabam se tornando narrativas crônicas do mundo onde vivemos) é parte desse transitar pelas infinitas histórias transportadas de diversos modos para o nosso terrestre habitat material. Como Flex Mentallo saindo dos espaços em branco das revistas, estamos dentro das mais diversas criações que a Imaginação possa ao nosso mundo doar. É uma relação estranha realmente a que temos com a Ficção, como dito na citação inicial deste artigo. Procuremos manter sempre assim esta relação. Porque se procurarmos nos aprofundar mais, nos lançaremos em abismos infinitos dos quais nunca poderíamos sair. Quanto mais profundo penetramos na Ficção, mais nítida se torna nossa preferência por ela mais do que pelo que possuímos fora dela. Acham que estou exagerando? Então, olhem para vocês, para bem dentro de vocês, vasculhem bem buscando o que mais lhes afetou desde a infância… Vasculhem sem pressa, sem medo, sem em momento algum julgarem como horrível o que possam encontrar… Pode ser que alguns descubram que estou exagerando, que a Ficção não tenha tanto Poder assim sobre si. Pode ser que alguns descubram que as pessoas reais que passaram ou são partes de suas vidas não são mais importantes do que as pessoas ficcionais. Façam a experiência, se assim desejarem, se esta minha sugestão lhes for inquietante. Alguma descoberta bastante estranha pode ocorrer.
No entanto, tudo que é verdadeiramente estranho não é mais fascinante do que todas as coisas comuns dos que não se deixam abraçar pela Ficção?
Saudações Inomináveis a todos vós, Realistas Leitores!
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