Última leitura. Finalmente, tive a
oportunidade de ler esse clássico dos mangás, essa verdadeira obra-prima, sem
exagero, que é Devilman de Go Nagai. A edição da NewPop está com um acabamento
para lá de caprichado, capa dura, com mais de quinhentas páginas e algumas
páginas coloridas; em suma, uma edição de colecionador para ninguém botar
defeito.
Devo dizer que estou surpreso de
Devilman finalmente ter sido publicado na Banânia. Na verdade, duvidava que
esse mangá algum dia fosse publicado por aqui, uma vez que a narrativa dele é
um tanto datada; característica dos mangás dos anos 70. Acredito que a exibição
de Devilman Cry Baby na Netflix deve
ter colaborado para a publicação do mangá em terra brasilis.
Devilman é na verdade o típico mangá de boomer. Não que não possa ser um mangá
atrativo para jovens, mas, tendo-se em conta a época em que foi feito e o
escopo de seu público-alvo, creio que esse seja mesmo o caso. E também,
venhamos e convenhamos, o acabamento luxuoso da edição, praticamente uma
Bíblia, cujo preço é quase R$ 100,00. E, para ser franco, vale cada centavo.
Se alguém tem dúvida do que é boomer, saiba que não são os bichos do
anime Bubblegum Crises. Boomer seria
o tiozinho de meia idade ou quase isso; pelo menos, é isso que é para os
jovens. A questão é que hoje existe um boomer
nerd, seja fanboy ou otaku, e
basicamente ele é o público-alvo dos produtos de consumo nerd atualmente, pois o boomer
trabalha e tem grana para gastar com suas nerdices, ao contrário da molecada.
Quanto ao mangá de
Devilman, é necessário saber que ele foi a resposta ao anime do personagem de
1972, que era bem infantil. O mangá começou a ser publicado naquele mesmo ano, mas
Go Nagai teve liberdade para fazer a história como realmente queria. É preciso
entender também que Nagai é um cara meio fudido da cabeça; ele não tinha freio
e testava os limites dos mangás. O próprio Devilman é um mangá que mistura os
gêneros shonen e seinen, mas não só. Por suas características, Devilman é uma obra
única. Nagai por vários anos refez e criou artes novas para o mangá, e podemos
ver isso nessa edição, em que sua arte é irregular. Por vezes, é mais elaborada;
por outras, é menos.
A obra inicia-se com um flashback que remonta aos tempos
pré-históricos. Em meio a dinossauros, anjos hermafroditas voam nos céus,
apenas para serem abatidos por uns demônios bestiais. Mas eis que chega um
campeão dos céus e começa a baixar o cacete nos capirotos. Quem é ele? Bom,
lendo o mangá, a gente infere. Logo no início da obra, Nagai não economiza na
violência e selvageria; quem é fraco de estômago é melhor parar de ler por
aqui. A cena corta para o início dos anos 80, em que um grupo de exploradores
está vasculhando o interior das montanhas do Himalaia e encontra uns capirotos
congelados. No entanto, as bestas soltam-se, e inicia-se um desabamento.
Em Tóquio, é apresentado
nosso protagonista, Akira Fudo. Ele é basicamente um bunda mole; um garoto sem
um mínimo de maldade e agressividade. Akira é basicamente um beta, um gado da
bela Miki Makamura, com cuja família vive, uma vez que os pais do jovem tiveram
de viajar para o exterior. Akira não tem aptidão para os esportes e praticamente
passa seu tempo livre lendo na biblioteca da escola. E o resto do tempo passa “gadando”
atrás de Miki, que o trata como um “amigay”.
Akira é tão bundão que,
quando ele e Miki são cercados por uns delinquentes do colégio, é a garota quem
os encara. O caldo engrossa e Miki quase seria molestada pela gangue, mas eis
que surge Ryo Asuka, o melhor amigo de Akira, que põe os maus elementos para
correr com uma arma. Ryo está claramente transtornando e exige que Akira o
acompanhe.
No caminho, enquanto
Ryo dirige com uma carteira de motorista forjada, ele conta a Akira que seu pai,
o professor Asuka, está morto; na verdade, suicidou-se, ateando-se fogo. Ryo
ainda conta para o assustado Akira que o corpo de seu pai tinha duas vezes seu
peso; ou seja, pesava por duas pessoas. Ryo então declara que recebeu de seu
pai uma herança aterrorizante.
Chegando à mansão de
Ryo, Akira é apresentado a um sinistro busto que o professor Asuka havia
encontrado em antigos territórios maias. Ryo faz Akira vestir o busto, e ele
enxerga imagens aterrorizantes de criaturas bestiais. Ryo conta a Akira que
esse busto é uma imagem de um demon,
antigas criaturas que viviam na Terra antes dos humanos e que foram congeladas
depois do cataclisma. Os demons no
universo de Devilman não são demônios na concepção clássica bíblica, cujo
objetivo é atentar os homens e tomar-lhes as almas. No mangá, os demons são os predadores naturais dos
humanos, e seu objetivo é comer gente, no bom ou no mau sentido, depende da
interpretação. Ryo conta que seu pai foi possuído por um demon e que eles têm a habilidade de se fundir com humanos. Ele admite
que escolheu Akira para se juntar a ele na missão de combater os demons e que eles terão de se fundir a demons, a fim de proteger a humanidade.
Akira, apesar de parecer hesitante, aceita se juntar à missão de destruição dos
demons.
Apesar da resolução de
enfrentar os demons Ryo e Akira
decidem começar sua cruzada no dia seguinte. Porém, no caminho de volta, são
emboscados por uma demônia, ou uma súcubo, que solta raios ultrassom pela
vagina, sim, pela pepeka mesmo. Na verdade, há uma distinção entre demônias e
súcubos; as segundas seriam demônias prostitutas, mas essa diferença é um tanto
tênue, pois, via de regras, as demônias são todas prostitutas, vadias, ou
existe demônia virtuosa? Eu desconheço. Exemplo de súcubos são Ellie das
histórias de John Constantine em Hellblazer
ou a Slan do mangá Berserk.
Outros demons se juntam à demônia da pepeka, e
Ryo e Akira têm de escapar e voltar para a mansão. Ryo diz que os demons descobriram que ele planejava se
insurgir e combatê-los e que agora eles são alvos. Os dois jovens conseguem
chegar até um cômodo secreto que leva a uma passagem secreta, subterrânea. Ryo
diz a Akira que agora não há mais volta e resolve fumar um cigarrinho do
capeta, maconha, tudo a ver com um mangá com tema de capiroto. Ambos os jovens
fazem um juramento de que se unirão a
demons, mas manterão seu coração humano.
Qual não é a surpresa
de Akira ao ver que a passagem subterrânea desembocava em uma boate, cheia de hippies, dançando, drogando-se e fazendo
sexo, a maior putaria. Um ensandecido Ryo diz a Akira que aquilo na realidade é
um sabá e que eles devem se unir à orgia, pois quanto mais loucos e selvagens,
mais fácil para acessarem sentimentos primários e fundirem-se a poderosos demons. Os jovens estão ficam muito
loucos, enchendo a cara com uísque calibrado com drogas. Akira está dançando
insanamente quando percebe Ryo cortou o peito de uma jovem com uma garrafa
quebrada. Sua intenção é causar uma briga selvagem com os hippies, com a finalidade de os demons
finalmente aparecerem. O plano funciona perfeitamente, e logo os hippies começam a se fundir com demons e a se transformarem em criaturas
bestiais.
Ao verem-se em perigo
real e imediato, Ryo e Akira ficam desesperados. Eles não conseguiram abandonar
a racionalidade por completo e serão devorados pelos demons. Em meio ao mais puro desespero, Akira sente-se tomado por
uma entidade poderosa, é um demon,
mas não qualquer demon; é Amon, um dos
grandes demônios. Naquele momento, surge Devilman, que se refestela em
selvageria e sangue. O prazer de matar é evidente. O inimigo dos demons e protetor da humanidade nasce,
mas o aterrorizado Ryo não reconhece seu amigo.
A partir desse ponto,
Akira tem uma grande transformação de personalidade; se antes era um moleque
dócil que não queria fazer mal a ninguém, agora tem uma personalidade muito
mais agressiva; não recusa briga com nenhum delinquente de sua escola. Para
ele, o prazer de lutar é orgástico. Deleita-se com a violência e com a sensação
luxuriante de aniquilar os demons.
Ele só volta a ser o velho Akira na presença de Maki, que também mudou de
sentimentos. Se antes, ela tratava Akira como “amigay”, agora fica horny; está doidinha por ele. Até senta
na cama de Akira toda insinuante, mas o rapaz fica desconcertado e não quer
nada com ela.
O clímax desse volume
ocorre no confronto com a demon
Serene, que é selvagem e visceral (literalmente). Akira também fica em dúvida
quanto à eficácia de combater os demons
e se eles realmente são nossos predadores naturais. Por sua vez, Ryo realiza
suas próprias investigações sobre os demons
e começa a suspeitar de algum segredo particular, que o envolve. Também fica
evidente que os sentimentos de Ryo por Akira ultrapassam a simples amizade,
principalmente por conta do ciúmes que o jovem tem de Akira com Maki.
Devilman é um mangá de
sua época; portanto, estão presentes em sua narrativa traços dos anos 70. Em
contraste com a ação e violência brutais, há gags de humor características dos shonens, como se dissesse que tudo é entretenimento; não é para levar nada tão a sério. No entanto, o gênero
terror também está bem presente, principalmente em razão das fortíssimas cenas
de violência e brutalidade. Tem gente sendo devorada, esquartejada, decapitada
etc. Os demons não economizam na selvageria.
Também há nudez e sugestões sexuais bem evidentes. Inclusive há uma nota
esclarecendo que o mangá foi publicado em determinada época e que muitas das
situações presentes não são aceitáveis hoje em dia e blá blá blá. No meu
entender, apesar de Devilman ser um mangá pesado e ter muita coisa controversa,
as bizarrices são características do próprio Go Nagai e não necessariamente da
época em que foi feito. O que talvez incomode a alguns leitores seja certo
machismo, mas esse machismo é característico da sociedade japonesa, que é bem
patriarcal mesmo. Apesar de que a personagem Miki tem personalidade forte e
destoa das mocinhas japonesas. O que talvez incomode as feministas para variar
é uma cena em que Maki fica pelada no banheiro dizendo o quanto é gostosa e
tal, o que no Ocidente caracteriza sexualização e objetificação da mulher,
coisa que era bem comum nos comics
nos anos 90, mas que agora é motivo de esperneio.
No que diz respeito ao
aspecto religioso, Go Nagai realmente não liga nem um pouco para isso, nem os
japas, de modo geral. Não é a religião deles; eles fazem o que acharem
necessário em prol da narrativa, como nos casos dos mangás e animes de Neon Genesis Evangelion e Hellsing, por exemplo. Entretanto,
Devilman ofende a religião bem menos que Preacher
e outras obras ocidentais, apenas para ter-se uma base de comparação. O
encadernado ainda tem uma história curta, em que Devilman volta ao passado e dá
uma força para Joana D’Arc contra os demons.
Se vale a pena ler
Devilman e a obra é relevante hoje em dia? Sim para as duas perguntas. Apesar
da narrativa e da arte datadas, Devilman é uma obra peculiar, única em seu
estilo. Óbvio que há defeitos, mas eles são desprezíveis perto do resultado
final. No aguardo do volume 2 dessa bagaça. Eu bem sei que a edição da NewPop
está muito cara e que não é qualquer um que está com grana sobrando para poder
comprar. Quem não tiver cupom de desconto na Amazon pode ir na boa e velha
biblioteca do Jack Sparrow e ir atrás dos scans.
Para quem souber ler em inglês, é melhor, pois pode ser mais fácil achar os scans de Devilman na língua de
Shakespeare. E também recomendo que assistam a Devilman Cry Baby na Netflix, pois é um excelente anime e que
complementa a experiência do mangá. Fujam do filme de Devilman live action, que é uma bosta. E minha
nota para o primeiro volume de Devilman –
Edição Histórica da NewPop é 10 de 10.
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