Muito se incensa e se louva o papel e a importância do desenhista/argumentista Frank Miller na trajetória do Batman. De fato, com a excelente e lendária minissérie O Cavaleiro das Trevas, de 1986, Frank Miller definiu a imagem que temos do Batman até hoje em dia, tornou o filho dileto de Gotham em um personagem "adulto", colocou-o no rol dos homens sérios. Os Batmen de Tim Burton e Christopher Nolan jamais poderiam ter sido concebidos e realizados se não fosse a minissérie de Frank Miller. Eu próprio gosto pra caralho dos trabalhos de Frank Miller, também fui fã de carteirinha do sujeito na minha época de leitor assíduo de quadrinhos, na minha fase nerd, que nem se chamava nerd então; chamavam a gente de CDF (cu de ferro), ou de retardados, mesmo. Era uma época mais honesta.
Eu
também já achei que o Batman tinha mais era que erguer um altar a
Miller na sua bat-caverna e rezar e agradecer a ele todos os dias, de
joelhos, em profunda contrição. Hoje, porém, do alto de meus cinquenta e
poucos anos, considero que a outro se deve o rito de passagem de
Batman, a transição de um personagem mais adolescente, digamos assim,
para o adulto soturno e ranzinza. Na verdade, a outros, a outros dois. O
argumentista Denny O´Neil e o ilustrador Neal Adams.
Denny
O´Neil e Neal Adams são quadrinistas das antigas. Dos que sabem
escrever e desenhar. Requisitos não obrigatórios para as gerações atuais
de quadrinistas. Foram os argumentos de Denny O´Neil que,
paradoxalmente, salvaram e tiraram o Batman das trevas. Das trevas da
vergonha, do rídiculo e, até, de sua união homoafetiva com Robin. Foi
Denny O´Neil, e não Frank Miller, quem fez Batman virar homem. Ou voltar
a ser homem. E explico.
Batman
fora concebido por Bob Kane como um personagem taciturno, grave,
sombrio, obstinado, obcecado. Um personagem que viu os pais serem
assassinados à sangue frio e passou a se vestir de morcego para combater
o crime. Um sujeito deste não tem nada de leve, de engraçado, de
bonzinho. Não tem nada de amigável, alegre e festivo. Tem é de louco de
pedra. Tem parafusos a menos, ou, no mínimo, soltos. O Batman de Bob
Kane não tinha bat-corda no seu cinto de utilidades, nem repelente de
tubarão. Tinha era um revólver, uma pistola 9 mm com a qual, já em sua
história de estreia, O Caso do Sindicato dos Químicos, publicada na mítica Detective Comics nº 27, mandou um balaço nas tripas e matou um dos bandidos.
Nada
a ver com o Batman colorido, companheiro e gregário daquele desenho
antigo da Liga da Justiça, que brinca de salvar o mundo com seus
amiguinhos. Menos ainda, e aí chego onde quero, com o Batman de Adam
West, aquele do POW!, SOCK!, BIFF!, QUNCKK!, e do uniforme lilás.
Dois fatores transformaram o morcego de Bob Kane na libélula psicodélica de Adam West.
Primeiro
que o bicho tava pegando para o lado dos quadrinhos de ação, mistério e
terror na década de 1950. Reinava o macarthismo, termo que fazia
referência aos senador estadunidense Joseph McCarthy, uma série de
medidas linha-dura para combater a " segunda ameaça vermelha". Tempos de
censura braba e de muito dedo-durismo. Milhares foram acusados de
comunistas, antipatrióticos, subversivos e corruptores. Sobrou para os
quadrinhos, acusados de serem, principalmente, corruptores de menores.
Editores e roteiristas de quadrinhos passaram a ser perseguidos e
enquadrados na lei de McCarth. Teve até livro de psiquiatra alertando
para o mal causado pelos quadrinhos às desavisadas e puras mentes do
jovem americano, A Sedução dos Inocentes, de Fredric Wertham.
Os quadrinhos precisavam passar pelo escrutínio da censura e receber um selo de aprovação, o Comic Code Authority.
Se não recebessem o selo, nada feito. Assim, para sobreviverem, as
editoras passaram a suavizar os personagens, torná-los mais bonzinhos. É
desta época a Liga da Justiça que citei anteriormente. O Batman passou a
ser um superamigo, amigo dos Super Gêmeos, ativar, e do macaco Glick.
Pãããããta que o pariu!!!
Mas
o macarthismo, como eu disse, foi apenas o primeiro fator da
descaracterização do Batman, o fator inicial. A cereja do bolo viria uns
anos depois, em 1966. Para coroar a humilhação do Homem Morcego, para
jogar o nome do Morcegão na lama por quase todo o sempre, veio a série
televisiva Batman, da rede ABC. Deu-se que havia na emissora um
roteirista contratado que odiava super-heróis, todos eles. Calhou,
justamente, de a ele ser dada a incumbência de escrever a série. Como
funcionário da empresa, não poderia se negar ao serviço, mas pensou num
modo de se livrar rapidinho do abacaxi. Escreveu o episódio piloto mais
ridículo, cafona e burlesco que conseguiu imaginar; estava seguro da
desaprovação da emissora, que cancelaria a série e, assim, Batman
morreria no ninho. Antes assim tivesse se dado. Acontece que o piloto
foi ao ar e foi um puta dum sucesso. O americano médio, medíocre e
infantiloide adorou aquele Batman afrescalhado. Resultado : o roteirista
foi obrigado a amargar mais três temporadas, num total de 120
episódios. Ao longo dos mais de três anos de duração da série, o tal foi
fazendo seu estrago, foi avacalhando com a imagem do Batman a cada
episódio.
Pois
foi justamente deste lodo de desmoralização total, de descrédito
absoluto, de reputação duvidosa e de ruína moral que Denny O´Neil tirou o
Batman. Denny O´Neil resgatou o Cavaleiro das Trevas das trevas do
ultraje, da desonra e do opróbio. As histórias de Batman escritas por
Denny O´Neil, magistral e inigualavelmente desenhadas por Neal Adams,
levaram Batman de volta ao lar, às suas raízes sombrias. Voltaram a ter
mistério, violência, trabalho de detetive, técnicas forenses e até
elementos sobrenaturais.
O
Batman atual não teria sido possível sem Frank Miller, verdade. Frank
Miller não teria sido possível sem Denny O´Neil e Neal Adams.
Se
Bob Kane foi o pai de Batman, Denny O´Neil foi o tutor que o adotou e o
acolheu, o preceptor que o reconduziu ao bom caminho. Frank Miller? O
tio, irmão do pai. O tio que ensinou algumas coisinhas ao Batman. O tio
que nos ensina a beber, que nos leva à zona etc.
Morreu hoje, aos 81 anos, Denny O´Neil, o segundo pai de Batman.
Será velado na bat-caverna, de onde o féretro seguirá em cortejo ao Cemitério de Gotham.
Uma revoada de 21 morcegos em sua honra e homenagem.
Uma revoada de 21 morcegos em sua honra e homenagem.
Denny O´Neil
1939 - 2020
Uma
estranha coincidência : Denny O´Neil nasceu em maio de 1939; sabem qual
foi a data da criação do Batman, da sua primeira aparição? Maio de 1939.
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