Sempre fui considerado e tido como um cara antipático e rabugento. Seja no ambiente familiar, dentro de meu restrito círculo de amizades, ou no local de trabalho, sou visto sempre como o sujeito azedo, ranzinza e mal-humorado. Sou o tipo de cara do qual ninguém se lembra de convidar para uma festa. E, a todos, por isso, secretamente, sempre agradeci. E, basicamente, por um motivo, este quadro de mim pintado : não gosto nem nunca gostei das convenções e dos ritos sociais inerentes a cada ambiente, não aprecio nem nunca apreciei os salamaleques do convívio humano, nem ao menos o convívio humano em si.
Sou visto
sempre como o chato e o estraga-prazeres. E o mérito disto, com grande
orgulho, é 100% meu. De fato, às vistas do "serumaninho" comum, seguidor
da manada, que gosta e que precisa se reconhecer no cheiro do cu à sua
frente e que precisa do focinho do outro a também se reconhecer nele,
sou mesmo pessoa das mais intragáveis e intratáveis.
Não dou bom
dia nem falo até logo ou até amanhã, se Deus quiser. Não compro rifas,
não entro em vaquinha nem em bolão. Não dou parabéns nem presto pêsames.
Não congratulo nínguém pelo "seu dia", seja o do professor, o da mulher,
o das mães, o dos pais, o das crianças, o do índio, o da árvore, o da bandeira.
De
fato : sou um ser social - até e tão-somente pela natureza intrínseca e
biológica de minha espécie -, mas jamais fui, ou serei, um ser
sociável.
E não é que agora, os cuzões que sempre me criticaram
por meu comportamento de caramujo, estão a dizer que eu sou um cara
legal? E não é que agora, durante esta pandemia, nesta hora em que a
porca está a torcer o rabo e a onça a se fartar de beber água, eu passei
a ser considerado um modelo de conduta social ?
Pelo menos, é o
que está a veicular e a apregoar um comercial de TV da Amil, empresa de
convênio médico. Vejam só uns trechos do comercial cujo vídeo colocarei
ao fim da postagem.
"Seja gentil com seus vizinhos. Não aperte as mãos deles". Pãããããããta que o pariu!!!! Eu nunca olhei nem cara!
"Seja generoso com seus amigos. Não se reúna com eles". Está pra indo pra mais de dois anos que me reuní com algum deles.
"Ame
seus pais. Não deixe eles se aproximarem dos netos". Eu só vou na casa
da minha mãe por Real Decreto Materno, quando sou convocado e conduzido
coercitivamente, e mesmo assim se for um domingão e tiver ou lasanha ou
feijoada ou dobradinha com calabresa e grão-de-bico para o almoço.
"Tenha responsabilidade. Lave suas mãos para tudo". E vocês não lavavam as mãos, não, seus pulhas?
"Seja sociável. Não saia de casa. Continue sendo a pessoa legal que você é". Valha-me São Roberto Carlos! Este cara sou eu!!!!
Agora eu sou legal, né, seus cuzões?
Eu, um antissocial assumido e juramentado, agora alçado à categoria de
cidadão padrão? Eu, eterno militante do isolamento social - do meu
isolamento -, agora posto como paradigma de consciência social? Eu, até
ontem um pária social, um esquisitão, aquele nunca escolhido pro time de
futebol da educação física (e, a todos, por isso, secretamente, sempre
agradeci), agora uma bússola, um guia, um líder, um guru e um Messias de
uma nova ordem mundial? A isto, prefiro ser derrubado pela Covid-19.
E
agora o esquisitão virou o cara legal? É a vingança do ermitão!!! E ela
só não é plena (não se preocupem, não citarei o filósofo Seo Madruga),
só não me dá inenarrável prazer porque nunca considerei o serumaninho
comum algo digno de minha vingança.
Covardes. Cuzões é o que todos
vocês são. Cadê a coragem, a hombridade, a famosa, e em falta, vergonha
na cara para continuarem a defender e a praticar seus frívolos, fúteis e
frenéticos modos de vida, dos quais até ontem tanto se orgulhavam? Cadê o
brio para se arriscarem em nome de suas (não tão) antigas certezas e
convicções?
Bastou o rosnar de um virusinho de merda para vocês
mudarem de ideia e acharem que o legal agora é ser como eu? Que o legal
agora são lives e não mais shows com milhares de idiotas aglutinados?
Que o legal agora é pedir comida em casa (eu ia dizer fazer a própria
comida, mas aí também já é pedir demais de vocês) e não mais ser parte
do dantesco espetáculo de centenas de bocas mastigando abertas em uníssono nas
praças de alimentação dos shoppings?
E
o sempre tão superestimado
contato humano, seus bostas? E a socialização e a integração, seus
boçais? Deixaram de gostar de tudo isso? Deixaram-se convencer fácil
demais para o meu gosto. São mais fracos e hipócritas do que sempre
julguei. A prepotente espécie humana, moldada à imagem e semelhança do
Criador, fugindo de um vírus feito baratas tontas? Até quando
continuarão entocados? Até, poltrões, terem a garantia de que o inimigo
se foi? O inimigo nunca se irá. Estará entre nós para sempre.
Sempre nutri grande indiferença pela espécia humana
como um todo; agora, germinou em mim um profundo desprezo. Covardes.
Assumimo-nos como uma espécie covarde.
A seguir, o comercial da Amil.
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